Trovadores de Berlim |
No Brasil, assim
como na maior parte da Europa, a música de concerto sempre esteve - e, parece,
deverá permanecer - atrelada à tutela oficial. Uso a expressão ‘música de concerto’
porque erudito é palavra que implica em saber profundo, o que não costuma ser o
caso. A música dos trovadores, por exemplo, assim como depois as valsas e
polcas, era essencialmente popular, mas hoje é vista pela ótica clássica,
porque já é história.
Duke Ellington e Orquestra |
E clássica, em si, é
designação que deveria se restringir a um período específico da história da música
ou a compositores da música popular imortalizados pela qualidade, como Tom
Jobim, Duke Ellington, Beatles e Glenn Miller. Esse “erudito” tem razão
histórica aqui no Brasil, e já abordei o assunto antes, mas cabe ressaltar que
palavra tão estranha, que afasta o público leigo, não tem correspondente em
outro idioma que não o tupiniquim. Vide classical
music, musique classique, klassische Music e musica classica, em inglês, francês, alemão e italiano.
Pedro II |
Desde as suas origens,
a música de concerto no Brasil tem dependido das benesses do poder público. É o
Estado que banca a quase totalidade das orquestras sinfônicas que ainda teimam
em sobreviver. No Império, D. Pedro I tinha grande interesse musical. Tanto que
compôs o Hino à Independência: "Já podeis da pátria filhos" (que costumam
pronunciar "fi-ílhos")... Participava regularmente como primeiro - como
não poderia deixar de ser - clarinetista da orquestra da Corte, e estudou com
os melhores nomes da época: Padre José Maurício, Marcos Portugal e Neukomm (ex-aluno
de ninguém menos do que Haydn). Apaixonado pelas artes, D. Pedro chegou a mandar
alguns nobres viverem no andar de baixo do palácio, depois que os músicos
reclamaram de suas instalações. Aos ilustres despejados, o Imperador disse que
com uma penada (ainda não havia sido criada a caneta, e por conseguinte a
canetada) fazia um barão, mas nunca um artista.
Salão Imperial de Música - Petrópolis (detalhe) |
No Palácio Imperial de
Petrópolis, hoje Museu Imperial, turistas apinham-se para observar as relíquias
de nosso Império (principalmente os norte-americanos, embasbacados diante de
coroas e cetros, inconformados por não terem tido um rei, à imagem e semelhança
de sua pátria-mãe, a Inglaterra). Entre móveis e utensílios, têm lugar de
destaque no Museu cravos, espinetas e harpas, uma vez que não havendo sequer
uma vitrola, à época, à nobreza restava curtir ao vivo nos palácios as últimas
do hit-parade europeu - fidalgos e
viajantes mais abastados traziam partituras em suas bagagens. A tradição imperial
parece quase ter continuado: o jovem Dom Joãozinho de Orleans e Bragança fez
prova para ingresso (era crooner de
boate) na Ordem dos Músicos junto comigo, nos idos de 1971, com direito a loas: era o “sangue azul” na entidade.
Brasílio Itiberê |
O Império, é verdade,
foi um grande mecenato (com o chapéu do povo). Entre os músicos amparados pela
Corte está um quase desconhecido do grande público, o paranaense Brasílio
Itiberê (1846/1913), autor da famosa composição Sertaneja. Inicialmente, o
Imperador premiou Itiberê com uma carreira diplomática, mandando-o à Prússia e
depois à Itália, para aprimorar seus estudos musicais. Depois de algumas viagens
pela América Latina, Itiberê morreu em Berlim, sufocado pelo carma das medalhas
e galardões de sua vida: teve um acesso de insolação, durante um interminável
desfile militar sob sol escaldante, caindo duro e fechando o paletó bem perto do
kaiser Guilherme II.
Mário de Andrade |
A irreverência do povo brasileiro
não respeita sequer os símbolos pátrios. Todos conhecem paródias infames do
Hino à Independência ("Já podeis da pátria filhos" vira "Japonês
tem quatro filhos") e do Hino Nacional Brasileiro (o popular “virundum”),
de Francisco Manuel da Silva (1795/1865). Logo na introdução o cinismo
tupiniquim já começa a avacalhar:
"Laranja da China, laranja da China, laranja da China / abacate,
limão doce e tangerina". O grande Mário de Andrade, verdadeiro mecenas de
coração (e só, porque o bolso não ajudava) e guru estético-cultural da primeira
metade do século, já dizia que, dada a índole preguiçosa do povo brasileiro,
aquele ritmo com notas pontuadas do nosso Hino (que cacófato!) Nacional, de
caráter enérgico, marcial, é transformado em colcheias - indolentes,
preguiçosas, sempre atrasadas colcheias.
Francisco Manuel da
Silva foi prolífico compositor de hinos para bajular governantes de todos os
tipos: chegou a escrever mais de uma dúzia deles, e com esperteza os adaptava para
diversas ocasiões. Em 1832 compôs seu Hino ao Sete de Abril (data da abdicação,
em 1831), estraçalhado em crítica por Justiniano José da Rocha, e, a partir
dele, o Hino Nacional da República. E Francisco não era lá flor que se
cheirasse, pois em 1844 passou a integrar o corpo de censores do Conservatório
Brasileiro de Música.
Maestro Tulio Colacioppo (centro) |
Um episódio trágico envolvendo
o Hino Nacional aconteceu durante uma apresentação da Sinfônica Municipal de
São Paulo, regida pelo maestro Túlio Colacioppo na cidade paulista de Americana,
em março de 1993. O episódio pareceu um felinesco palco desmoronando pela incompetência
dos que o planejaram, montaram e reformaram. Uma lástima! Músicos feridos, instrumentos
pessoais danificados. Para quebrar o gelo dessa tragédia, lembro que o
divertido Colacioppo saiu-se com essa em ensaio de uma sinfonia de Tchaikowsky
com a Osesp: pediu à orquestra que fizesse um bom concerto. Afinal, disse, "tá
fazendo cem anos que a bicha morreu". (Continua com Colaccioppo e os Hinos
na próxima semana. Abaixo, um vídeo da tragédia de Americana, notícia no mundo
inteiro).
Nenhum comentário:
Postar um comentário