Mstislav Rostropovich |
Se no passado os músicos oficiais eram badalados
e reverenciados pelos governantes, o mesmo não se pode dizer de outros tempos mais
recentes. Após a revolução bolchevique de 1917, a União Soviética foi um dos responsáveis
pelo êxodo de judeus para os EUA, país que os acolheu antes, durante e depois
de duas guerras mundiais, colaborando para consolidar definitivamente a posição
norte-americana, perfilada ao mais alto cenário da música de concerto internacional
– acrescente-se aos inúmeros violinistas, Schönberg, compositor, Horowitz, virtuose
do piano,
Rostropovich, violoncelista, e muitos outros.
Rostropovich, violoncelista, e muitos outros.
Igor Stravinsky |
A lista de imigrantes, a incluir temporários e
não-judeus, é enorme: passa também por compositores como Mahler, Strauss, Bártók, Dvorák, Toscanini,
Stravinsky, Hindemith, Hovhanness... A maior parte, com certeza, dos grandes
nomes do século 20. Rostropovich perdeu o visto de saída soviético em 1970,
após ter escondido em sua casa o escritor dissidente Soljenítsin (O Arquipélago Gulag). Em 1974, por fortes
influências políticas nos EUA, Slava, seu apelido, conseguiu visto permanente nos EUA e
se fixou em Washington, DC, onde foi regente da National Symphony.
Picasso: um retrato |
Igor Stravinsky (1882-1971) nasceu filho de
músicos em Oranienbaum, na Rússia. Em 1917, em plena revolução, foi para a
Itália, onde conheceu o artista plástico espanhol Pablo Picasso. Naquele ano,
tentou cruzar a fronteira levando consigo um retrato seu feito pelo grande
pintor. Quando a polícia se deparou com o quadro, não aceitou a explicação de que
se tratava de um retrato do próprio compositor: poderia ser um croqui ou
estratégia de espionagem camuflada, obsessiva paranoia comunista e anticomunista daqueles tempos. De posse do quadro, Stravinsky pernoitou em
Chiasso, mandando o retrato para a Embaixada Britânica em Roma, de onde um poderoso
amigo, Lord Berners, remeteu a obra para Paris via mala diplomática, inviolável
aos policiais curiosos e ignorantes. Uma vez recuperado o precioso quadro,
Stravinsky adotou de vez o Ocidente, terminando por naturalizar-se
norte-americano.
Horowitz: altíssima introspecção |
Outro dos que se auto-exilaram nos
EUA foi Vladimir Horowitz (1904-1989), nascido perto de Kiev, na Ucrânia.
Considerado o maior gênio do Piano, era pessoal e insuperável a cada interpretação.
Dizia que nunca tocava uma obra da mesma maneira duas vezes. Chegou a ser alvo
do implacável crítico Virgil Thompson, que o considerava um distorcedor,
deturpador de músicas. Ora, dane-se, deve ter pensado o mago do teclado. Talvez
exatamente por sua personalidade ímpar, sua introspecção personalíssima ao
tocar - pouco ao gosto dos que, como o ‘comissário do povo’ Jdanov, exigiam
fidelidade ao chamado ‘realismo socialista oficial’ -, Horowitz foi perseguido.
Nicolau II e família (assassinados pelos bolcheviques) |
Ainda jovem, chegou a ver seu piano
atirado de uma janela durante a invasão de Kiev pelos bolcheviques, em 1918. Mas
enganam-se os que pensam que antes da revolução de 1917 a vida era um chão de
estrelas para os músicos: o Czar Nicolau II soltava contra eles a tropa de choque
do poder, querendo forçar os compositores a escreverem peças pueris e insossas,
ao seu próprio gosto.
Horowitz: Carnegie Hall em êxtase |
Apesar de virtuoso incontestável, Horowitz
somente alcançou glória, como tantos outros, depois de mudar-se para Nova Iorque,
em 1928, já que se casara com Wanda, filha do mito Arturo Toscanini (o grande
maestro tornou-se uma espécie de protetor do pianista). A carreira de Horowitz
como concertista nos EUA foi tão fulgurante que talvez nenhum pianista tenha
conhecido tamanha glória. Em 1965, sabendo das enormes filas de pessoas que se
digladiavam para comprar ingressos para um recital no Carnegie Hall, uma
multidão de curiosos aglomerou-se, e, com tanta gente na rua, correra o boato
de que se tratava de um show dos Beatles.
Família Toscanini: Jazigo |
Em 1986, Horowitz voltou à Rússia,
mãe ingrata. Apresentou-se diversas vezes, teve seu talento finalmente reconhecido,
e terminou endeusado. Mas não foi um retorno definitivo: conforme seu desejo
expresso, quis o destino que ele se juntasse à família Toscanini, em Milão,
onde passou a repousar para sempre ao lado da esposa e filha do maestro - amada
cuja morte havia sido responsável pelo único período improdutivo e silencioso
da vida do pianista, mercê do infortúnio que quase o levara à loucura.
As perseguições contra a música e os músicos, em
sua quase totalidade, sempre foram políticas. No Brasil, os censores enxergavam “subversão”
em tudo, sob a falsa bandeira do perigo comunista, coisa que via nos
inofensivos Chico Buarque e Vandré e tantas outras ‘potenciais ameaças’. Eu
mesmo, antes de um simples festival estudantil (de 2º grau!) de colégios, sofri um
veto por causa de uma frase, uma simples frase: “um grito vivo de verdade”. O
que viram naquelas cinco palavras, não sei. Porém, corriam perigo apenas as letras
das músicas, pois de estética os ‘nossos’ censores não entendiam lhufas.
Bolcheviques |
Outras ameaças atacaram impiedosamente a estética, principalmente
a do regime soviético, caindo sobre a chamada música clássica, isso para não
falar de outras formas de arte, como a pintura e a literatura. (Lembra “eles não falam
do mar e dos peixes / nem deixam ver a moça, pura canção / nem ver nascer a
flor...” do Milton). Era o chamado realismo socialista – não falo dos
social-democratas que hoje carregam o rótulo de socialistas e comunistas no
peito. Rezavam que a arte deveria apenas retratar a crítica social (aos
capitalistas, claro) e enaltecer a perfeição do então ‘novo’ regime. E isso se
espalhou como prática até nas células dos PCs do mundo inteiro. Mas nós, músicos, sobrevivemos a tudo isso, e prosseguiremos!
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