(Cont.)
Certo dia estávamos em plena aula de Folclore, quando irrompeu pela porta o diretor-general.
Como falávamos sobre certo tipo de flauta que indígenas de algumas tribos
confeccionam com ossos humanos, o interventor não resistiu e começou a fazer
comparações entre as primitivas flautas dos índios, homens que não escondia considerar
inferiores, e aquelas transversais, feitas de ligas de prata com outros metais,
utilizadas em nossas orquestras sinfônicas, manifestações artísticas “superiores”.
Tentei, em vão, argumentar que não havia "arte superior" e "arte
inferior", cada uma representa culturas e tradições diferentes.
Irritado,
o general se retirou da sala, batendo a porta. Mas voltou, entreabriu-a e apontou
o dedo em riste para mim: "...e você aí, cuidado, hein... cuidado para não
virar flauta!" (referiu-se, com certeza, à matéria-prima humana utilizada
na confecção daqueles instrumentos pelos nossos indígenas). Não muito tempo depois,
início do desmoronamento do regime, o general Graça já estava felizmente
reformado, exonerado e sem graça, enquanto o outrora maldito prédio da UNE, na
Praia do Flamengo, fora demolido para dar lugar a um indecente estacionamento,
para bem sei lá de quê ou de quem.
Com
poucas saudades dos velhos tempos em que militava, até mesmo a ex-atriz,
ex-deputada e atriz novamente Bete Mendes, Secretária de Cultura do Estado de
São Paulo na gestão Orestes Quércia, dava-se ao luxo de permitir certas
práticas que em outros tempos ela mesma consideraria indecorosas, enquanto “revolucionária”:
na espera para uma reunião, em seu gabinete, eu e os demais integrantes da
Associação dos Músicos pudemos perceber um microfone cuidadosamente disposto sob
o tampo da mesa, deixando-nos intrigados. Não se pode garantir a finalidade dos
apetrechos. Talvez, por sermos músicos, alguém possa ter pensado que fôssemos cantar
alguma peça a cappella, talvez alguma
preciosidade musical a ser gravada sigilosamente. Mas se nada há a temer, nada há
que se esconder.
O
nome da Bete Mendes Bete Mendes cruzou meu caminho uma terceira vez (a primeira
foi na peça Gota D’Água, de Chico Buarque e do saudoso Paulo Pontes, em 1975,
no Rio de Janeiro na qual trabalhei: Bete fazia a inocente Alma, filha de
Creonte e amor de Jasão). Por volta de 1990, já diretor da
Escola Municipal de Música de São Paulo, recebi a visita de uma senhora que tentava, a todo custo, ver seu filho como professor em uma das classes de Piano; o garoto seria dono, conforme a própria mãe repetia, de um talento invejável, a marca do gênio (francamente, não foram poucas as
vezes em que pais ou mães abusaram de adjetivação semelhante para qualificar as habilidades de seus filhos).
Escola Municipal de Música de São Paulo, recebi a visita de uma senhora que tentava, a todo custo, ver seu filho como professor em uma das classes de Piano; o garoto seria dono, conforme a própria mãe repetia, de um talento invejável, a marca do gênio (francamente, não foram poucas as
vezes em que pais ou mães abusaram de adjetivação semelhante para qualificar as habilidades de seus filhos).
Ante
minha negativa, como era de praxe (já pude receber a visita de um Secretário de
Educação, com carro oficial, segurança e tudo!), a mãe de um pequeno gênio
informou que conhecia a deputada Bete Mendes, se isso não ajudava. Diante de
tamanha cara de pau eu menti que sim, mas que deveria ter o pedido por escrito.
Poucos dias depois, recebi um documento, em papel timbrado da Câmara dos
Deputados, que solicitava a inclusão do menino no quadro dos alunos da Escola. Guardo-o
com carinho. Aquele ofício deu inúmeras voltas do primeiro ao último escalão da
Prefeitura, junto com um memorando em que eu informava que "tem gente que
ainda não entendeu nada"... Entre inúmeras dessas tentativas de jeitinho para
favorecimento de conhecidos, tão peculiar no Brasil, cheguei a ser visitado por
uma senhora interessada em espremer seu talentoso filho em uma vaga da escola,
enquanto no estacionamento aguardava outra vez um autoridade, com direito a
carro oficial e seguranças. Sem sucesso, é claro.
Digna
de menção é uma verdadeira pérola de poesia. Uma velha senhora conhecida da
então secretária do prefeito, insistia em empregar seu filho, Valnei (omito o sobrenome
por cautela), como professor na Escola Municipal de Música (apesar de ele não
saber quase nada e de nunca ter dado uma aula). Ante minhas escorregadelas pela
tangente, enviou ao gabinete do alcaide um pequeno poema-oração, da lavra de
seu talentoso filho e devidamente anexada ao processo, o qual passo a
reproduzir literalmente logo abaixo (detalhe: apesar da “puxada”, o pedido de
emprego não colou e nem o gabinete insistiu, era praxe apenas repassar o que
chegava): “Maluf nosso que estás no auge / glorificado seja o teu nome / venha
a nós o teu comando / seja eleita a tua pessoa / assim em São Paulo / como em
Brasília / (...) e não nos deixeis morar embaixo da ponte / mas livrai-nos dos
marajás / Amém”.
Reichstag, Berlim, de longa história |
A ideia
de disciplina trazida pelas orquestras deve, e muito, impressionar os
profissionais da política: vários poderosos adorariam ver seus súditos curvados
ante sua própria sensibilidade, incógnitos e, massa perfeita, organizados como
no Reichstag? Melhor ainda, subordinados às oscilações de sua vaidade e seu
próprio temperamento apaixonado e onipotente?
Mas
a aparente disciplina das orquestras, apesar de impressionar os que assistem
atentos a um bom concerto, não costuma ser tão canônica quanto parece. Nos
bastidores, a situação chega frequentemente ao cômico e não raro à baderna - o
que não é exclusividade dos músicos de hoje: já no século XVII, os músicos de
Nuremberg receberam ordem de ensaiar na própria Prefeitura, sob a vigilância de
um subprefeito que entendesse de música, para que os instrumentistas não
burlassem seu dever de funcionários públicos. (Continua)
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