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sábado, 24 de fevereiro de 2018

ERAM OS MÚSICOS ASTRONAUTAS? III



(Cont.) Voltando ao Michael Jackson e sua Disney particular, o garoto Jordan Chandler, um dos vários menores que frequentaram aquele parque de diversões exclusivo, declarou que ele, Michael, “mais parecia uma vaca”, aludindo às manchas de vitiligo espalhadas pelas regiões íntimas do cantor. Isso tudo dito em juízo e publicado. Por outro lado, Jackson permitia e estimulava que a imprensa divulgasse, com sensacionalismo, sua obsessão por câmaras hiperbáricas, dento das quais costumava se fechar de corpo inteiro para absorção completa de oxigênio puro. Fora o uso de máscaras e luvas – que, segundo ele, teriam o condão de evitar contato com bactérias e vírus de todas as espécies, petrificando-o para a eternidade com aquela aparência de quando era o pequeno astro afro-light, o mais novinho do famoso conjunto Jackson Five. Sobre Michael, aliás, o sarcástico e irreverente jornalista Paulo Francis, de língua solta e ferina, disse que deveriam deixam o cantor em paz: “Michael não quer ser homem nem mulher, nem negro nem branco – ele só quer ser bonita”. Causou, como se diz na gíria de hoje.
Manuel de Falla
Em um golpe de mestre, Michael casou-se com Lisa, filha de Elvis e Priscilla Presley. Com suas núpcias, conseguiu abocanhar ainda maiores espaços na mídia, ao mesmo tempo em que tentava dissipar a imagem de sedutor de meninos vulneráveis, trazida à baila após sucessivas acusações de que ele foi réu na Justiça americana. Livrou-se, e seu LP Thriller acabou vendendo mais de 47 milhões de cópias, perto de quatro vezes a população de Cuba. O compositor espanhol Manuel de Falla (1876-1946), autor do balé O Amor Feiticeiro (El Amor Brujo), que viveu bem antes de Michael, só aceitava refeições em restaurantes se os pratos viessem cobertos com gaze para protege-lo dos germes, e andava pelas ruas com um lenço ou máscara cirúrgica cobrindo o nariz. E como existem anedotas sobre músicos! Seriam listas intermináveis! Parece que as escolhas dos piadistas – claro, os próprios músicos – recaem sobre todas as modalidades, sejam cantores, pianistas ou instrumentistas de orquestra, embora haja certa preferência pelo canto, violino, viola, trompa e contrabaixo, todos incansáveis trabalhadores da música.
[Uma loja de objetos antigos e exóticos havia exposto modelos dos mais variados tipos de cérebros em potes de formol, todos com as procedências devidamente certificadas. Em um deles, o rótulo dizia: cérebro do Einstein, U$ 5 mil. Um outro trazia a estampa: cérebro de cantor, U$ 50 mil. Espantado, o freguês chamou o atendente e perguntou  o porquê de um cérebro de ninguém menos do que Einstein, autor da Teoria da Relatividade, valer cinco mil dólares, enquanto o do cantor desconhecido absurdos 50 mil. Responde o lojista: é que o do cantor nunca foi usado. (Lembre-se leitor, que, assim como no filme Ensaio de Orquestra, do Felini, os músicos, irreverentes, fazem troças entre si, não existe o maldito “politicamente correto” na classe). Todos brincam, todos contam e repetem as piadas e todos riem. Eu sei a maioria sobre contrabaixos, minha especialidade nos tempos de orquestra. E aqui vai uma: um regente para o ensaio, assim sem mais, e grita para um dos contrabaixos: "o que acontece com você, senhor? Enquanto todos do seu naipe trabalham para cima e para baixo os dedos sobre as cordas, o senhor fica aí com a mão parada!" Responde o contrabaixista: "é que eu já achei a nota". São tantas anedotas, de tantas especialidades, que caberiam em enormes livros].
O cantor e pianista pop inglês Elton John, quando não é lembrado por um de seus inúmeros sucessos, é imediatamente associado à sua monumental coleção de óculos: enormes, minúsculos, em forma de pera, coração, TV, tesoura, amarelos, azuis, ao lado de seus sapatos plataforma, à maneira das drag queens, ou com balangandãs que remetem à nossa Carmen Miranda. Todos os objetos do Elton John são disputadíssimos em leilões, a maioria deles surrupiados por serviçais de hotéis, em busca de um troco a mais e tomados por certa cleptomania fetichista de fã.
Em outro leilão, o conde Spencer, irmão da Lady Di, arrematou por 24 mil libras, para lá de R$ 100 mil, o manuscrito da partitura de Candle in the Wind”, de Elton John, canção escrita originalmente para Marilyn Monroe, depois dedicada à sua amiga Lady Di, entoada como uma espécie de réquiem na cerimônia funeral da princesa. 
Agora, vamos e venhamos, não é só na chamada música pop que a necessidade de aparecer ou promover a própria imagem que o artista, às vezes, lança mão dos expedientes mais esdrúxulos: a violoncelista norte-americana Charlotte Moorman tirou a parte de cima de sua veste de gala no palco, e executou alguma suíte para violoncelo solo de Bach daquele jeito mesmo, topless. Com seu happening, virou capa de revista e tema de livro, conquistando um extensa agenda em teatros menores de costa a costa dos EUA – mas depois, devidamente trajada, comme il faut, ‘feita a fama e deitada na cama’, diz o vulgo. Claro que não chegou a escalar mais do que os primeiros degraus da imensa escadaria das estrelas, mas logrou cavar seu lugar ao sol.
Jordi Savall
Há momentos em que excentricidade se confunde com superstição. E vice-versa. É o caso do Roberto Carlos, que proíbe o marrom em tudo, exigindo as cores azul ou rosa. O especialista em música antiga Jordi Savall obriga sua produção a reservar quartos no andar térreo dos hotéis, sabe-se lá se por medo de cair ou fidelidade estética - já que seu conjunto, o Hespérion XX, dedica-se à música de séculos passados em instrumentos originais – da época em que ainda não se sonhava, claro, com a invenção do elevador. (Continua).

sábado, 17 de fevereiro de 2018

ERAM OS MÚSICOS ASTRONAUTAS? II


O músico é um dos raros empregados que adquire e mantém seu próprio uniforme de gala (o de orquestra e similares) e sua ferramenta de trabalho. Investe no instrumento todas as suas economias, às vezes a poupança de uma vida. Tudo isso, diga-se de passagem, por salários geralmente medíocres e poucas vezes compensadores. Somente uns raros chegam ao topo fazendo fortuna, ao contrário do que levam a pensar os frequentadores dessa praia tão pequena e restrita do chamado sucesso. Na música popular, a piada é um certo “kit fama”: corrente de ouro, carro importado e loira na cama. São aqueles convidados da Ilha de Caras e dos programas de auditório, que adotam o chamado “jabaculê”, espécie de “pixuleco” para que suas músicas sejam executadas.
|O  'Ensaio', segundo Felini
Prosseguindo, a descrição deste personagem, seja ele regente, instrumentista, cantor ou compositor medíocre ou de reconhecidos méritos ou ainda, quem sabe, genial, só poderia ser complementada pelo pitoresco, o exótico, o absurdo ou o simplesmente ridículo. Existe retrato mais cruel de uma categoria profissional do que o burlesco e surreal que o do cineasta Federico Felini, por ele criado em seu filme Ensaio de Orquestra? Nele, cada instrumentista, exaltando suas próprias qualidades e a superioridade de seu instrumento, desnuda suas neuroses mais íntimas. No final das contas, como resultado de um embate que vem de séculos, no filme os músicos da orquestra acharam por bem substituir o maestro por um enorme metrônomo para marcar o tempo.
Qualquer um que tenha trabalhado em uma orquestra ou conheça bem a área deve saber que quem inventou de colocar dezenas de músicos juntos, além de inovador, perpetrou uma absoluta loucura. É muito artista junto! É tão estressante, nas grandes orquestras, viver aquilo diariamente! Bem brasileiramente, alguém defenderia uma espécie de aposentadoria especial para a categoria.
O psiquiatra britânico Oliver James empreendeu uma pesquisa que sustenta a tese de que toda obra de arte resulta de algum tipo de instabilidade mental. Os resultados do trabalho foram exibidos pela BBC de Londres em um especial que versava sobre o tipo de pessoa que se dedica à criação artística – o indivíduo exótico, desajustado, melancólico e não raro depressivo. Retrato mais contundente dessa faceta do artista está no livro Darkness Visible (no Brasil, Perto das Trevas), do estadunidense William Styron, autor também de A Escolha de Sofia.
Styron expõe ali sua própria experiência, uma relação promíscua na linha tênue entre a criação e a psicopatia. Não surpreende ver que os artistas mais propensos ao desequilíbrio são – talvez mais do que outros – pintores, compositores, músicos e escritores, sendo os últimos, à sua imagem e semelhança, o objeto maior do livro, relato de seu calvário pessoal. Já o músico que o público vê encarna-se de corpo e alma em uma performance que começa e termina a cada momento, a cada fração de segundo. É um trabalho, em grupo ou não, solitário, suado, frequentemente neurotizante e muito pouco compreendido. É uma missão e uma espécie de doença.
Um psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo, Táki Cordás, concorda em parte com as conclusões de Oliver James. Ele observa, indo além, que, ultrapassados certos limites para a melancolia que antes fertilizava, ela passa a comprometer o processo criativo. Infelizmente, a divulgação pública desse perfil contribui para o charme gauche que costuma envolver certos desvios dos padrões sociais - às vezes, apenas oscilações de comportamento bem da natureza do artista. Cordás observa que, apesar de alguns serem recorrentemente melancólicos, isolados e mesmo depressivos, artistas produzem melhor quando libertos de suas crises, o que leva a crer que aqueles estados anteriores são meros acidentes de percurso – mas também contribuem, contraditoriamente, como férteis à gestação criativa.
Com essas teorias, é natural rever incontáveis causos sobre músicos. Qualquer um que tenha convivido com um deles pode, com certeza, lembrar-se de inúmeras estórias, seja sobre os músicos mais simples, daqueles que animam as modestas churrascarias da Zona Leste paulistana ou dos subúrbios cariocas. Exceções são os “megastars” da música pop internacional - os que pedem suíte presidencial pintada de azul, caixas de água Pérrier e belos champanhes Moet & Chandon de série especial. Fora aqueles que, como Michael Jackson, tinham entre suas exigências trenzinhos de ferro e jogos de Pinball, fora hospedagem para seus cães Rottweiler nas acomodações hoteleiras das suas excursões.
Liberace, deslumbrante
É característica frequente no músico o exotismo. O troféu do suprassumo do gênero, superando em muito qualquer limite do kitsch, do ridículo e da cafonália, vai para o pianista norte-americano Liberace, conhecido pelo seu toque inconfundível, rebuscado de rococós de mau gosto e pleno de floreios inúteis, entre o pinguim de geladeira e o candelabro de plástico no piano. Liberace tornou-se famoso por suas excentricidades: piano de acrílico transparente, lustres de ouro, blusas de seda com mangas bufantes, perucas, um monte de pulseiras, colares, anéis e muita maquiagem. Poderosa.
Jackson em sua Disney particular
Na esteira do pianista Liberace, seu conterrâneo Michael Jackson (1958-2009), sempre foi um tanto apegado ao exótico. Eram públicos os esforços do cantor para adquirir tez branca, nariz de manequim e voz andrógina. Sua Disneyland particular era frequentada por nove entre dez estrelas do show bizz. (Continua)

sábado, 10 de fevereiro de 2018

ERAM OS MÚSICOS ASTRONAUTAS?


O estigma de artista de vida romântica, no amplo sentido, sempre perseguiu o músico, independentemente da época em que tenha vivido. A imagem estereotipada do compositor ou instrumentista solitário, maluco e quase tísico povoa a imaginação geral. Talvez por causa da loucura do alemão Robert Schumann (séc. 19), da surdez, boemia e demência final de Beethoven (1770-1827), a morte precoce e abandonada do gênio Mozart (séc. 18) ou a cólera de Tchaikovsky (séc. 19), que para completar a sina era gay, e no regime da Rússia czarista! Tristes finais também tiveram Bach, Händel e Schütz, que morreram cegos, Chopin e Paganini, tuberculosos, e Mussorgsky, que “nadava de braçadas” na bebida.
Paganini, aliás, além de bêbado contumaz era um jogador compulsivo. No começo da carreira chegou a deixar seu violino em uma casa de penhores para alugar um fraque, mas foi jogar e, claro, perdeu tudo o que pegara emprestado. Pediu a um amigo um violino e um traje de gala, mas com o dinheiro do cachê do recital voltou à jogatina e perdeu tudo.
Essas imagens não diferem muito daquelas do nosso Noel Rosa (1910-1937), 350 músicas, morto de tuberculose aos 26 anos. Protagonista, aliás, além de extenso anedotário, de um riquíssimo embate musical com o sambista Geraldo Pereira, assassinado com um soco na barriga em um bar. Passam, também, pela imortal Billie Holiday, rainha do blues viciada em heroína, bem como Janis Joplin, e Jimi Hendrix, o guitarrista-mito do rock que solava seu instrumento até com a língua e volta e meia ateava fogo na guitarra, sobre o palco, sem falar na recente Amy Winehouse. Todos vítimas, de um jeito ou de outro, de overdose de entorpecentes (ou sufocado pelo próprio vômito, como Hendrix, após os homéricos excessos).
Somem-se ainda o saxofonista John Coltrane, os nossos “maluco beleza”, Raul Seixas, e a divina “Pimentinha”, Elis Regina. Steve Tyler, da banda Aerosmith, contou que a droga era estimulada pelos próprios empresários, em busca de maior impacto de seus artistas em cena. Disse também que, enquanto os músicos ficavam na cama, entorpecidos pelos excessos, eram roubados pelos próprios agentes. Sem falar na praga dos novos tempos, a Aids, que levou Freddie Mercury, Cazuza e Renato Russo, do grupo Legião Urbana.
O baixista Sid Vicious, do grupo inglês de “punk-rock” Sex Pistols, morreu quase adolescente, aos 21 anos. Provocador, volta e meia apanhava de alguém mais exaltado, como aconteceu nos EUA, quando teve a cara quebrada por uma mulher ensandecida – mas prosseguiu o show com sangue escorrendo pelo nariz. Seu vocalista bradava ao microfone “é um circo vivo!” Certo dia, ao acordar e sem se lembrar da noite anterior, Sid deparou-se com o corpo de sua companheira Nancy coberto de sangue. Como se não bastasse, ele foi encontrado morto por overdose.
Aeroporto de Heathrow
A mãe de Sid mandou cremar-lhe o corpo, mas escorregou e caiu com a caixa em que levava as cinzas num dos saguões do aeroporto de Heathrow, em Londres, deixando escorrer parte dos restos mortais pelas frestas do sistema de calefação. Sid foi “colega de escola” de Kurt Cobain, do grupo Nirvana – que tinha mais de calvário do que da libertação budista do título do conjunto: suicidou-se com um tiro na cabeça aos 27 anos.
Jacqueline Du Pré
Ilustrando o retrato do músico sofrido, a violoncelista Jacqueline Du Pré foi acometida de esclerose múltipla, doença degenerativa que a levou à morte em 1987, no esplendor de uma carreira sem precedentes. O célebre violinista israelense Itzhak Perlman, quando criança, queria ser jogador de futebol. Mas o destino o fez vítima da poliomielite, teve de passar às muletas e cadeira de rodas, decidindo-se pelo violino, do qual é um dos gigantes vivos. O guapo cantor Julio Iglesias queria ser goleiro do Real Madrid, até que aos vinte anos sofreu um acidente de automóvel e quase perdeu os movimentos. Pois foi no hospital que ele começou a cantar para outros doentes e enfermeiras, acompanhado de seu violão. Já deve ter batido a casa dos 250 milhões de discos.
Nasceram cegos Stevie Wonder, Ray Charles e Andrea Bocelli. Um inovador da harmonia jazzística, Django Reinhardt, com defeitos congênitos na mão, criou seu sistema pessoal nos acordes da guitarra. (Todos esses, ressalto, souberam explorar suas virtudes e até mesmo seus defeitos pela melhor música).
Uma vez popularizada essa pecha de loucos e judiados dos músicos, pesquisadores passaram olhá-la com atenção. No 1° Encontro Latino-americano de Trombones, em 1999, alguns deses schollars estiveram presentes, e ao menos duas palestras versaram sobre o tema: O Trombone e suas Conexões com a Psiquiatria, com o Dr. Sérgio F. Rocha, e As Síndromes do Trombone, pela Dra. Dorotéa Malheiros.
Aliada a essa fama de boêmios, doentes e marginalizados frequentemente emprestada aos músicos de forma genérica (são poucos entre incontáveis), existe uma outra faceta do carma, que é ter de passar inúmeras horas do dia sozinho, praticando ou escrevendo, dedicando-se com afinco ao aperfeiçoamento técnico, praticando exaustivamente para que as notas que escrever ou extrair de seus instrumentos afaguem o coração de seus ouvintes. À parte um tipo menos louvável de estrela sem maiores méritos que, frustrado, vê as pessoas na plateia mais interessadas no ‘mauricinho’ ou ‘patricinha’ ao lado nos shows. 
[Alerta: este é um retrato de tristes exceções, em meio a incontáveis músicos, 'modelos' que não devem ser seguidos: a demência é triste, e álcool e drogas atrapalham os estudos sérios e a execução. Exemplos mesmo, neste texto, são os que servem de estímulo aos que possuem defeitos físicos ou se veem privados de algum sentido ou movimentos para se realizarem como músicos na vida!]
(Continua)



sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

TRAPALHADAS POLÍTICAS NA MÚSICA BRASILEIRA – FINAL

Comício Diretas Já
Entre os músicos, a coerência política é qualidade nem sempre presente em suas relações com o Poder Público (mais precisamente, os nobres ou governantes de plantão). Nisso alguns de nós são favorecidos, é claro, pela reconhecida tendência do povo brasileiro à rápida perda de memória - e não é preciso cairmos em tentação ou conclusões radicais e de gosto duvidoso, como professava o imortal teatrólogo Nélson Rodrigues, que dizia que a massa é ‘ignara’, é burra. Exemplo desse tipo de camaleão político é certo regente mediano que conseguia se locomover como papagaio dos piratas entre as multidões que se comprimiam nos comícios das Diretas Já (movimento que, em tempos recentes mas também já um pouco esquecidos, brigava-se pela volta do sufrágio direto para presidente, acreditem os jovens se quiserem). Também havia colocado sua arte nas mani­festações pela legalização dos partidos de esquerda, até o PCdoB, então proscritos, com a mesma desenvoltura com que, em passado nem tão remoto, animava com seus corais as festas comemorativas do golpe de 64 (daqueles mes­mos militares responsáveis pela extinção do direito de voto e de organizações e partidos de esquerda que ele depois defenderia com pátrio fervor). Gênero volátil, que sabe reger conforme a música.
O grande Lamartine Babo (radiobatuta)
Há casos de espertos apolíticos, distantes de rixas, como o composi­tor de marchas carnavalescas Lamartine Babo (1904­-1963), torcedor do América Futebol Clube do Rio de Janeiro, time para o qual compôs o hino oficial ("pois a torcida americana é assim..."). Sob pressão dos rivais, para que não o acusassem de proteger o próprio time com seu farto talento musical, Lamartine escreveu, entre outros, o hino do Flamengo ("Flamengo, Flamengo, sua glória é lutar..."), do Botafogo ("Botafogo, Botafogo, campeão de 1910...") e do Fluminense ("Sou tricolor de coração..."). Detalhe históri­co: a letra de Lamartine para o hino do Botafogo teve de ser mudada para "campeão de mil novecentos e sete", em virtude de descoberta arqueológica que bons tempos depois apontou aquele ano como o do primeiro campeonato. Não é gozação, mas soou esquisito.
Cidade de Deus, em Osasco, SP. Vista aérea ainda em fase de construção
Por fim, não se pode confundir ecletismo com interesse: lá pelos idos de 1982/83, a cúpula do Bradesco mantinha, na Cidade de Deus, uma espécie de laboratório para lavagem cerebral de famílias de bancários em Osasco, um gueto pródigo em colaboração com organizações pararreligiosas e de laços estreitos com o regime militar. Certa vez, aconteceu ali um concerto fa­buloso. Revezavam-se como narradores o comediante Lúcio Mauro e a atriz Elizabeth Savalla, malvistos pelos artistas que não comungavam do regime de exceção, sobre um palanque erguido em um parque tomado por um oceano de crianças ‘espontaneamente’ arrastadas para aquela grande jornada cívica. A profusão de bandeirinhas do Brasil dificultava enxergar até mesmo o pouco que ainda havia de grama sobre o chão. Parecia coisa do Estado Novo, ou de algum daqueles famosos regimes europeus da primeira metade do século 20.
Entre arroubos cívicos, apologias ao poder instituído (e não constituído) e outras manifestações, uma sinfônica do interior apresentou-se sob a batuta de seu incansável regente, em uma de suas intermináveis exibições, tão longas que quase wagnerianas. Depois daquele inusitado espetáculo cívico, como peixes fora d'água, os músicos da orquestra saborearam o tradicional lanche de água mineral com tangerina, sem saber o que foram fazer ali mas engolindo com apatia o azedume da fruta e o amargor da festa. Obrigações de funcionário público.
Sid Vicious em show
Assim como houve regentes de canhestras ligações políticas no passado, houve quem conseguisse apaga-las em prol de um futuro mais próspero e menos comprometedor. Da mesma forma, tanto quanto o punk Sic Vicious, que se automutilava nos palcos para deleite da plateia, há os que sensibilizam fãs exibindo sua "mutilação" (verdadeira ou não) via crucis, exposição pessoal em prol de dividendos. Mas já o auto-flagelo do punk Sid Vicious foi real e um outro viés, uma nova abordagem da compaixão alheia. 


A qualidade musical passa a não render tanto, mas assume contornos de uma espécie de São Sebastião, mártir francês do terceiro século  perseguido por Diocleciano, imperador de Roma. Amarrado a um tronco, Sebastião foi flechado várias vezes, tendo seu rosto sido retratado com expressões entre fé e sofrimento, nas antigas ilustrações. Entre essas figuras do punk-rock e as dos clássicos que expõem sua dor há quase que um reverso do espelho, ou seja, o espectador vê o que deseja ver, seja o sofrimento real ou o virtual.
André Rieu
Regente é quem está regendo, lembro pela enésima vez, e maestro é o mestre. Um que faz sucesso com suas habilidades de showman sem se meter em política e pouco sabendo reger é o holandês André Rieu. Adepto da chamada easy listening, só rege valsas de Strauss como O Danúbio Azul e música popular romântica e melosa. Como violinista, não passaria em uma prova para a OSESP. No entanto, respeitando o gosto de cada um, tem grande espaço na mídia e atrai multidões mesmo cobrando ingressos caríssimos. Seu passado parece ser limpo, sem ligações políticas duvidosas, a não ser as naturais de quando precisa “vender seu peixe”, parece que dentro da legalidade.

Narciso. Uma obra-prima de Caravaggio
Creio apenas que ele se excede ao apresentar crianças-prodígio, ‘candidatas a Mozart’, o que também arrebata plateias – muito embora os infantes sejam comparáveis, para dizer o máximo, a pencas de crianças talentosas de nossas escolas de música do Brasil. Com esses passes, emoldura seu espelho. Pois Narciso, como se sabe, acha feio o que não é espelho.