Roda-viva |
Lembro-me
dos primeiros versos de uma música do Adelino Moreira cujo título acima tomei emprestado:
“boemia, aqui me tens de regresso”. Ao assunto: quando famoso, o músico popular
é vítima da sanha impiedosa de seus fãs, de que é exemplo aquela matilha
ensandecida a devorá-lo, retratada por Chico Buarque na peça Roda Viva. A
privacidade passa a ser mera figura de linguagem: artista famoso é patrimônio e
objeto da volúpia coletiva. Sua saúde a todos pertence, suas preferências são
divulgadas e imitadas – ou condenadas.
Como
no Brasil ditaduras acontecem em períodos cíclicos, gente como Chico Buarque foi
alvo de perseguição na última delas, o último regime de exceção, quando o cerco
ao compositor era tão implacável que ele teve de gravar com o pseudônimo
‘Julinho da Adelaide’. O povo criava e inventava. Com Milton Nascimento, Chico
compôs Cálice: “Pai, afasta de mim esse cálice” (‘cale-se’). Empregava sem parcimônia
o duplo sentido e os jogos subliminares, a exemplo também do famoso Apesar de
Você, samba que dava a impressão de ser dedicado a uma mulher. Vazou, ‘sem
querer, querendo’, que era endereçado ao então todo-poderoso Médici. Censuraram
no ato.
Amália, Geisel e Lucy |
Naquela
época, o cineasta e poeta Ruy Guerra escreveu para o Milton uma letra que dizia
“brota em guerra e maravilha”, que esmaecia no final - “na hora, dia e futuro
da espera virar...” e os mais radicais da plateia completavam com “guerrilha!”,
fazendo sua rima. Outro déspota, Geisel, detestava o Chico - foi a deixa para o
compositor inventar um roquezinho bem brega, dois acordes e apenas dois versos:
“você não gosta de mim / mas sua filha gosta”, já que Amália Geisel havia
declarado que era fã das músicas dele. Assim eram os tempos em que se
sobrevivia fazendo música. Sobrevivia: conjugação vestida como uma luva.
Chico
costumava secar, com os amigos Vinicius e Jobim, pelo menos uma garrafa de
uísque com facilidade. O Poetinha, apelido de Vinicius de Moraes, já devia
estar meio alto, e em certa roda de amigos em um bar disse, “o uísque é o
melhor amigo do homem”. Foi corrigido por um conviva provavelmente sóbrio: é o
cão, Vinicius, o cão é que é o melhor amigo do homem! O Poetinha, certeiro, devolveu-lhe
com sua aguçada ironia: então o uísque é o cão engarrafado - frase logo
celebrizada.
Véspera
da estreia da peça Gota D’Água, do Chico Buarque e Paulo Pontes. Ficou difícil
para nós, artistas, vermos coerência entre o discurso e a prática do compositor.
Os bailarinos ganhavam menos do que um salário mínimo por até, às vezes, doze
horas de ensaios diários. Nós, instrumentistas, nos rebelamos contra o descumprimento
de acertos verbais e o despotismo dos irmãos produtores. Uma breve paralisação
dos músicos, que já haviam decorado e sumido com as partituras, recompôs
acordos e acordes e reverteu minha demissão. E eu, na tentativa de dialogar com
o Chico, havia exposto o caso e nossas exigências onde o encontrei: um bar logo
ali fora do Teatro Teresa Raquel, a tomar seu uísque. Ele disse que aquilo era
assunto da produção, ele era apenas o autor – o problema não é meu, ficou claro.
Patético. Uma ducha de água fria.
Noel Rosa e Adoniran Barbosa |
Bom
de samba e de copo, inspirador do Chico, o Noel Rosa de Feitiço da Vila,
Conversa de Botequim e Com Que Roupa, foi flagrado em um boteco da velha Lapa
carioca tomando cerveja e conhaque. Alguém passou e o repreendeu, dizendo-o
irresponsável, pois sabia que Noel convalescera de uma tuberculose. O compositor
riu e respondeu que seu médico o proibira terminantemente de beber, mas caso a
teimosia fosse tanta, que ao menos bebesse pouco e bem alimentado. Noel disse
que saiu para tomar um conhaque, e “já que se sabe que cerveja alimenta...”
O
sambista quase não tinha queixo – as más línguas diziam que era para os goles
descerem mais rápido –, suposta manobra de um fórceps barbeiro durante o parto,
e foi flagrado em um boteco logo após o enterro de sua mãe. À vontade, camisa
colorida, dedicava-se ao seu esporte predileto, o halterocopismo, levantamento
de copo. Alguém disse que aquilo era um absurdo, ele deveria estar recolhido em
luto. O sambista improvisou: “luto preto é vaidade / neste turbilhão de dor / o
meu luto é a saudade / e saudade não tem cor”.
Madame Satã |
Outro
bom de samba, Geraldo Pereira, autor de Falsa Baiana e Acertei no Milhar, foi
frequentador assíduo dos muquifos e bordéis da Lapa carioca e cercanias. Adepto
da chamada “mardita”, brigava quase sempre depois de mamado - jargão da
malandragem – e com quem estivesse na frente, fosse homem, mulher ou travesti.
Em consequência de uma dessas querelas, Geraldo foi assassinado, em 1955, por
um violento murro no fígado desferido pelo lendário Madame Satã, folclórico
pederasta do bas-fond carioca. Com Satã ninguém mexia, ele devia ser o próprio
demo encarnado.
Como
Noel e Geraldo, Nelson Cavaquinho raramente se afastava de um copo. No final da
gravação de Pranto de Poeta, do Cartola, autor dos lindos versos “em Mangueira
quando morre / um poeta todos choram”, promoveu-se no final da música um afago
entre os dois sambistas: Cartola disse obrigado, Nelson, ao que este respondeu
“ovligado, Gardola”. Na segunda tentativa melhorou, mas ficou no disco, voz
arrastada. Nascido muito pobre, Nelson construía toscos instrumentos com caixas
de charutos, fazendo de arames as cordas. Mais tarde, quando teve seu primeiro
violão ‘de loja’, usava afinação mais baixa, não se conformava com a tensão das
cordas e sonoridade, estridente para
ele. Afinal, estava acostumado à caixa de charutos e aquele som fanhoso dos
arames frouxos, roucos como a voz dele!
Um instrumento de caixa de charutos, de três cordas, bem mais sofisticado, com os "cortes em 'F'" dos violinos |
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