Sonho de uma Noite de Verão (por Edwin Landseer, 1848) |
A boemia, com seu charme discreto e percalços,
perigos e tragédias, não é privilégio de artistas dos tempos atuais. Shakespeare,
em seu Sonho de uma Noite de Verão, comédia de 1535, satirizava a boemia, e
reclamava dos rabequeiros - do árabe rabab,
antecessor do violino e ancestral da nossa rabeca. Disse que os músicos não
passavam de bêbados contumazes, e a única coisa que sabiam fazer bem era
discutir quem pagaria a próxima cerveja.
Johanness Bach, instrumentista e compositor
da numerosa família de Johann Sebastian, foi morto a golpes de espada em 1635,
junto a alguns colegas músicos. O autor dos assassinatos foi um certo capitão
sueco, que se derramou sobre uma poltrona, inteiramente bêbado, durante uma
festança na casa de um rico comerciante de Erfurt. O oficial havia tomado muito
além da conta – como, de resto, boa parte dos convivas e músicos. Depois de
cochilar durante a apresentação, o oficial acordou de súbito com algum
pesadelo, julgando em delírio estar sendo atacado por inimigos, que empunhavam
suas armas, digo, arcos e instrumentos. Desferiu golpes para todos os lados,
sem mal ver quem lhe aparecia pela frente.
Em
1715, um certo chantre (mestre de
capela, maestro) Sicca chegou a denunciar seus músicos às autoridades locais
porque chegavam sempre bêbados aos ensaios. Os acusados, em sua defesa,
alegaram que tudo não passava de intriga do chefe, já que Sicca teria roubado
um Te Deum (hino religioso) por eles composto, e no ensaio seguinte passaram a
agredi-lo em revide.
Ion Muniz |
Um corte de cinema de volta ao futuro:
algumas figuras da boemia nacional, incluindo tantos músicos, eram personagens tão populares
quanto o saci-pererê para o caipira das roças brasileiras. Vou lembrar-me de
alguns, agora, estava lhes devendo uma homenagem. Ion Muniz (1948-2009), que
espatifou seu saxofone contra o meio-fio em NY. Os trombonistas Maciel e
Constâncio, da famosa big band ‘mela-cueca’ dos dancings, o folclórico
baterista Edison Machado (1934/90), que protagonizou um sem-número de episódios.
Ele foi o criador daquela batida de bossa-nova, marcando o ritmo com a baqueta no
contratempo - aquele par de pratos acionado com o pé esquerdo -, som que tem a
cara e o jeito da bossa-nova do lendário Beco das Garrafas, em Copacabana.
Milton Banana |
E quem criou o toque lateral da baqueta
esquerda no aro metálico da caixa (ou ‘tarol’, no popular), foi Milton Banana
(1935-99), a pedido de João Gilberto, cujo suave violão precisava de bateria com
volume de uma caixa de fósforos. A dupla Machado-Banana criou a histórica bateria
imitada no mundo inteiro, dando cara à bossa-nova.
Edison Machado |
Edison era maluco: se alguém dizia que ele
errou, gritava nunca erro, vocês é que erram juntos! Apesar de admirado pelos
músicos, o baterista foi sendo gradualmente banido da noite carioca. Mudou-se
de mala e cuia para Nova Iorque, onde tudo é possível e permissível entre os
músicos, dando enfim vazão à sua personalidade e estilo inconfundíveis. Quem não se
lembra daquele memorável solo polirrítmico (diferentes ritmos simultâneos) de
bateria na música “Leila” do disco Minas (gravação abaixo), do Milton
Nascimento, uma atuação impagável? Morreu e foi esquecido, exceto para os que o
ouviram ou conheceram por acaso, como eu, que tive a felicidade de até ‘brincar’ com ele.
Entre os contrabaixistas, o José Roberto,
“Zerró” Santos, é um caso à parte. Radicou-se em São Paulo, vindo do Rio,
depois de largar sua Belém Natal. Certa vez, deixou o imortal Bill Evans
surpreso, no Antonio’s, do Rio, acompanhando de orelhada as intricadas
harmonias do pianista americano, os enormes dedos espalhados no teclado, um
jazz temperado com impressionismo francês. Com o bar cheio garças à ilustre
‘canja’, Evans virou-se para trás para ver quem era aquele
maluco que fazia
aquilo assim by heart (de ouvido).
O Severino |
Zerró Santos Big band project |
O pequeno grande Caçulinha |
Muito Obrigado, Maravilhoso este texto.
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