(História do
trajeto de um violoncelo escrita de punho pelo próprio Heinz Wilda, o segundo
protagonista nos acontecimentos – o primeiro foi o próprio cello – e organizada
por mim, o autor deste texto).
Construções da antiga Brescia
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Fui concebido em 1697, na Bréscia, por Giambattista Rogeri, mestre de
luteria italiano. Como estou em idade madura, mais de 300 anos, pouco me lembro
de minha infância, além de quando, há uns dois séculos, levaram-me da minha
Itália natal para Londres. Ali, um dia fui adquirido por um músico alemão, Paul
Wisa, lá pelos idos de 1875.
Seguindo certa tradição judaica de investir as economias da família em
obras de arte, instrumentos musicais e afins, meu dono um dia entregou-me ao
seu filho, Heinz Wilda, um garoto de apenas quinze anos, dando-lhe a missão de
estudar e se preparar para, em breve, fugir da Europa, levando-me na sua
bagagem como ferramenta de trabalho e poupança da família.
Em 1933, já soprava forte o vento antissemita: Hitler acabara de ser
nomeado Chanceler da Alemanha. Em um dia daquele mesmo ano, uma gangue de rua
fez o jovem Heinz fugir pelas escadarias de uma estação do metrô de Hamburgo.
Caiu e rolou comigo escada abaixo, um tombo feio. Fui entregue aos cuidados do
luthier Andreas Gläsl, que em mim realizou longas e perfeitas cirurgias, digo,
reformas.
Invasão da Polônia pelas tropas nazistas
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Hitler encantava sua cada vez maior legião de fanáticos, e Paul dera o
sinal a Heinz de que se aproximava a hora de deixar o país. Paul, que havia se
apresentado comigo em muitos concertos, achou por bem passar-me de vez ao
filho, antevendo os avanços do Führer, e acabou morrendo em circunstâncias
misteriosas em 1935. Em 1939, o Eixo havia invadido a Polônia, e Heinz tinha de
escapar ou correr o risco de ser executado em um campo de concentração.
Conseguiu fugir, levando-me consigo.
Embarcamos rumo à Venezuela, a bordo do cargueiro Cordillera, mas a
imigração local nos barrou. Seguimos para Curaçao, nas Índias Holandesas, onde
nos escondemos por semanas, até rumarmos para Aruba, uma ilha vizinha, de onde
também fomos expulsos. Finalmente, meu dono encontrou um velho judeu que me
facilitou um visto para o Equador, e partimos para Balboa, no Canal do Panamá.
De trem, chegamos a Cristobal, e aguardamos uns dias pelo comboio para
Guayaquil, no Equador, onde ficaríamos por quatro anos, fazendo música,
ganhando pouco e comendo muito mal. Ao saber que um parente seu tinha sido
aceito no Brasil, Heinz, já casado, saco de roupas nas costas, de braços comigo
(e, ah, desculpe, é claro, também a esposa), aportava em São Paulo em 1946.
O lendário Martin Braunwieser e seu coral
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Músico, literato e poliglota, bom tradutor que era, Heinz logo conseguiu
trabalho. Na música, juntou-se a Martin Braunwieser, um célebre austríaco que
Mário de Andrade havia trazido para o Brasil em 1935 para ser instrutor de
ensino musical dos parques e jardins da cidade (imagine você, isso já existiu
em São Paulo!). Aos poucos ia se dissipando no nevoeiro da memória um passado
de tantas fugas, porões úmidos e sujos dos cargueiros, a fome. Estávamos
livres, soltos, em um país abençoado por Deus e bonito por natureza.
Um leilão de instrumentos em Londres
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Aos 94 anos de idade Heinz me vendeu, e acabei chegando a Nova Iorque,
onde quase fui colocado em pregão, mas felizmente acabei sendo retirado às
pressas do leiloeiro pelo meu arrependido proprietário. Fui emprestado para um
jovem talento nova-iorquino por uns anos, e de lá voltei (passado um século e
meio!) para Londres, cidade em que hoje me leva a tiracolo é uma violoncelista
chamada Marta Autran Dourado.
Caro diário, segredo entre nós: nunca tive dono. Tenho mais de 300 anos,
quero viver pelo menos outros 300, chegar à melhor idade em boa forma. E
confesso, querido confidente, ninguém, ninguém mesmo foi meu dono: alguns
músicos passaram brevemente por minha vida, como outros ainda por mim passarão,
e por minhas virtuosas qualidades – nós, instrumentos, somos para um músico o
que o cão é para o homem: seu melhor amigo. Portanto, não pertenci a nenhum
artista, eu é que fui dono da música de todos eles, eles me pertenceram.
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