“O maestro sacode a batuta, a lânguida e triste a música
rompe...” Não pude deixar de ceder aos primeiros versos do poema de Fernando
Pessoa (in Cancioneiro) para lembrar
que ela é o mais leve, porém mais poderoso instrumento – apesar de, curiosamente,
não produzir som algum por si mesma. A invenção é atribuída ao alemão Carl
Maria Von Weber (1786-1826), compositor de belas óperas. Em 1813, quando
assumiu a direção da Ópera de Praga, na Tchecoslováquia, Weber trouxe não
exatamente uma vareta para conduzir os músicos: registros mostram algo como um
bastão. Morreu tuberculoso aos 39 anos mas foi um dos principais responsáveis
pelos rumos que a música europeia tomaria. A urna com seus despojos foi transladada
de Londres 18 anos após enterrada para o Cemitério Católico de Dresden, com um discurso
teatral de Richard Wagner (1813-1883). Não surpreende: o autor de Tristão e
Isolda era dado a coisas fúnebres, construíra o próprio túmulo no jardim, atração
que costumava mostrar orgulhoso às suas visitas.
Os compositores regiam suas próprias obras, e o maestro
não-compositor surgiu apenas em meados do século 19, com Hans von Büllow (1839-1894),
atribuído primeiro regente profissional nessa arte. Excêntrico, conta-se que
durante uma apresentação na Ópera de Munique iniciou a execução da 3ª Sinfonia
de Beethoven, Eroica, com luvas
brancas, trocando-as por um par de cor negra antes da Marcha Fúnebre do 2º
movimento. Era tão apaixonado pelos “três B” que dizia “creio em Bach Pai,
Beethoven Filho e Brahms Espírito Santo”. Protagonizou uma revolução, relevando
o passado em que os compositores marcavam com rigidez o andamento de suas obras.
Antes do advento das primeiras leis trabalhistas, Büllow revestiu-se de um
poder quase absoluto – trazia no bico da pena a demissão sumária do músico que
lhe fosse incômodo.
Mesmo no Brasil ficaram para trás esses
rompantes de despotismo exagerado do regente, mas houve maneiras de exercê-lo de
forma menos prejudicial à sua imagem. A exemplo, certa vez um músico havia
feito comentários que desabonavam a masculinidade do chefe, um autoproclamado machão.
O regente convocou o músico linguarudo, ordenando-lhe procurar um a um para
quem havia feito a confidência, que retornariam dizendo que o colega mentira. O
músico ficara aliviado, as férias coletivas terminavam e estava ansioso para
retornar ao trabalho mas foi chamado pela secretaria da orquestra, que disse que
nem adiantava vir ao primeiro ensaio, deveria passar logo na Seção de Pessoal
para receber seus direitos. Isso tudo na surdina do recesso, como mandaria a
partitura.
Joe Silverstein |
Nos últimos tempos, finadas tantas ditaduras e tantos muros, o
modelo de maestro despótico tem andado em decadência. Um marco foi o confronto entre
os músicos e o todo-poderoso Karajan, da Filarmônica de Berlim, no caso Sabine
Meyer, que seria a segunda mulher no grupo, não fosse um episódio de 1983. A orquestra,
então “Clube do Bolinha”, não aceitou a jovem eleita por concurso, e balançaram
o maestro vitalício. Nos EUA, durante um ensaio da Sinfônica de Boston, Seiji Osawa
apontou uma entrada mas fez um comentário infeliz: quase a tempo, violinos! O spalla Silverstein e seu concertinho,
Emmanuel Borok, simplesmente pararam de tocar e ficaram em seus lugares. Na
primeira brecha, foram ao pódio e advertiram o regente de que aquele tipo de comentário
não era bem-vindo ali.
Sir Marriner e a Saint Martin-in-the-Fields |
Verdade que houve algumas experiências democráticas, ou
quase. Em Porto Alegre, ao menos décadas atrás, a figura antes una do diretor
artístico/regente foi dividida com um Conselho Artístico que passou a organizar
a temporada e convidar maestros e solistas. Aliás, à maneira de várias
orquestras americanas, como a de Boston, em que a direção artística cabe a uma
comissão e seu presidente. A Academy of Saint Martin-in-the-Fields, reputada uma
das melhores orquestras de câmara do mundo, foi criada em 1965 sob a liderança
do spalla dos segundos violinos da
Sinfônica de Londres, Neville Marriner. (Que achava que Karajan, com quem
trabalhara, era tão autoritário e inflexível que até mesmo suas execuções eram
perfeitas e imutáveis cópias delas mesmas). Marriner foi empossado como regente
por vontade dos músicos, mas segundo o próprio a decisão fora apenas uma consequência
natural de sua responsabilidade na gestão do conjunto. E apesar de seu poder ir
se avolumando nas mãos, falava que a gestão continuava democrática.
Por volta de 1987, um grupo de músicos das sinfônicas do
estado (Osesp), Municipal (OSM) e USP (Osusp) em sua maioria jovens e primeiras
estantes, resolveram montar sua própria orquestra de câmara, um coeso grupo de
35 músicos. Inicialmente com a participação do maestro Roberto Tibiriçá, mas tendo
uma vida independente, a Nova Sinfonieta tinha um conselho diretor – de que eu,
com outros colegas, fazia parte com orgulho. A orquestra conquistou a imprensa,
chamou a atenção e teve como solistas Gilberto Tinetti, Martha Herr, Miha
Pogacnik, Michael Haram e o mito vienense Paul Badura-Skoda. Na batuta, além de
Tibiriçá, tivemos Sergio Magnani, Aylton Escobar e outros. Na “era Collor”, a extinção
da Lei Sarney derrubou, além da Sinfonieta, o bom cinema (sobraram apenas as bilheterias
de Angélicas, Xuxas e Trapalhões, que se autofinanciavam). Artistas vislumbrava
os trilhos sobre os quais a mediocridade viria a reboque - e os músicos perfilaram
junto aos últimos bastiões de resistência da boa arte em tempos melhores!
***
Para quem quiser ler o lindo poema de Fernando Pessoa:
O Maestro Sacode a Batuta
O maestro sacode a batuta,
A lânguida e triste a música rompe ...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
A lânguida e triste a música rompe ...
Lembra-me a minha infância, aquele dia
Em que eu brincava ao pé dum muro de quintal
Atirando-lhe com, uma bola que tinha dum lado
O deslizar dum cão verde, e do outro lado
Um cavalo azul a correr com um jockey amarelo ...
Prossegue a música, e eis na minha infância
De repente entre mim e o maestro, muro branco,
Vai e vem a bola, ora um cão verde,
Ora um cavalo azul com um jockey amarelo...
Todo o teatro é o meu quintal, a minha infância
Está em todos os lugares e a bola vem a tocar música,
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal
Vestida de cão verde tornando-se jockey amarelo...
(Tão rápida gira a bola entre mim e os músicos...)
Atiro-a de encontra à minha infância e ela
Atravessa o teatro todo que está aos meus pés
A brincar com um jockey amarelo e um cão verde
E um cavalo azul que aparece por cima do muro
Do meu quintal... E a música atira com bolas
À minha infância... E o muro do quintal é feito de gestos
De batuta e rotações confusas de cães verdes
E cavalos azuis e jockeys amarelos ...
Todo o teatro é um muro branco de música
Por onde um cão verde corre atrás de minha saudade
Da minha infância, cavalo azul com um jockey amarelo...
E dum lado para o outro, da direita para a esquerda,
Donde há árvores e entre os ramos ao pé da copa
Com orquestras a tocar música,
Para onde há filas de bolas na loja onde a comprei
E o homem da loja sorri entre as memórias da minha infância...
E a música cessa como um muro que desaba,
A bola rola pelo despenhadeiro dos meus sonhos interrompidos,
E do alto dum cavalo azul, o maestro, jockey amarelo tornando-se preto,
Agradece, pousando a batuta em cima da fuga dum muro,
E curva-se, sorrindo, com uma bola branca em cima da cabeça,
Bola branca que lhe desaparece pelas costas abaixo...
Excelente!
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