Muitos
leigos perguntam se o maestro é mesmo necessário, especialmente quando veem orquestras
de câmara conduzidas por seu violino solista, costume muito antigo. Um bom
conjunto de câmara, a depender da peça, nas músicas que não abusam de
alterações de andamento, como complicados accelerandi
ou ritardandi (o inverso), pode tocar
parte do repertório sozinho. Mas para a maior parte das músicas que vão do pico
do romantismo aos dias de hoje a coisa é bem mais complicada. Ígor Stravinski
(1882-1971) disse que a carreira dos regentes na maior parte das vezes se faz
com obras do período romântico. E que as músicas do chamado período clássico
‘eliminam’ o regente, ele não é lembrado.
Orquestra de Câmara: sem regente |
Houve
tentativas de extinguir a figura do regente, e várias nos anos 1920, na então recém-criada
União Soviética do igualitarismo sedutor Marx de e Lênin. Conforme lembrou o
amigo, compositor e regente Aylton Escobar, logo alguém se sobressaía e os
olhos dos colegas a ele se voltavam nas entradas – gestos que indicam o início
de uma peça, uma seção, ou alguma alteração de andamento. Também na orquestra,
como é da natureza humana, uns eram mais do que os outros. Nos grandes grupos,
contudo, a figura do regente teve de prevalecer, impondo-lhes disciplina
musical na complexidade.
Frank Battisti: quando a orquestra aplaude o maestro de pé (Xpress) |
Bernstein
imprimia sua personalidade sacudindo a batuta e às vezes dando pequenos saltos.
Osawa chegava a se agachar nos pianíssimos, enquanto para os ataques fortíssimos
reservava um gesto, às vezes com ambas as mãos, que eu apelidei de ‘golpe do
machado’. Exemplo de boa regência controlada vi em 1980, tocando em uma master class do maestro Frank Battisti,
que aliás já esteve no Brasil, em Tatuí. A demonstração foi dirigida a um jovem
que tentava em vão fazer com que os músicos do Wind Ensemble da NEC iniciassem
perfeitamente juntos o Pássaro de Fogo, de Stravinsky. Disse-lhe que não
precisava tanto da batuta – ali, até olhos e sobrancelhas eram mais
importantes. Battisti pegou-lhe a batuta e com um discretíssimo golpe, que eu diria
de mestre, iniciou a peça com absoluta precisão. Ah, e além dos regentes
econômicos há os franciscanos, de mínimos gestos.
Zukermann, o solista regente |
O
grande violinista, violista e dublê de regente Pinchas Zukermann, dono de
cachês altíssimos, liderava a orquestra de Saint-Paul e costumava solar nos concertos.
Bastava um gesto do corpo, um olhar, um movimento de arco. Sério no palco, meio
moleque fora dele, não hesitou em tirar seu violino do estojo e tocar em plena
rua de Vancouver - com a brincadeira, auferiu uns trocos e degustou um belo
frango assado.
Giuseppe Verdi |
Voltando
aos primórdios da regência, desde Lully (1632-1687) maestros tornaram-se
assunto saboroso na língua áspera dos instrumentistas. Por essas e outras, o
grande compositor de óperas italiano Giuseppe Verdi (1813-1901) costumava referir-se
à orquestra, à boca pequena, como la
divina canaglia, lembrando a Divina Comédia (séc. XIV) de seu conterrâneo
Dante. Episódios reais muitas vezes tendem a se transformar em anedotas,
rapidamente incorporadas ao repertório da classe, seja um fato real, com os
coloridos de praxe, ou os que talvez nunca existiram e surgem como fato em
conversas aqui e ali, sabe-se lá se ‘verdade verdadeira’, a vera veritas. Um conhecido maestro, em um
ensaio, reclamou da afinação da terceira trompa. O primeiro do naipe, rindo,
disse maestro, a terceira faltou hoje. Diz a lenda que o maestro retrucou dizendo-lhe
que então quando o terceiro viesse era para avisá-lo (fazendo troça, mas meio
encabulado pela gafe. Pior o remendo do que a sonata).
Bach em família |
Já em
tempos distantes, Johann Sebastian Bach não se conformava com murmurinhos crueis,
prática comum a nove entre dez músicos de orquestra. E ficava uma onça quando sabia
que o assunto eram suas divinas habilidades musicais. Ora, resmungou, eu trabalho
como um operário! (A ele se reputa a autoria da frase ‘a música é 10%
inspiração e 90% expiração’). Admirável que ele tenha feito tudo o que fez como
genial e prolífica formiguinha da música e à parte ainda duas dezenas de filhos,
legando-nos numerosa obra musical. E descendentes.
Caymmi: "nas ondas verdes do mar" |
Ao
contrário de Bach, o genial baiano Dorival Caymmi deixou-nos os talentos de
Nana, Dori e Danilo e compôs pouco mais de uma canção por ano de vida. Cantava ‘365
igrejas a Bahia tem’ – se a vida é um dia após o outro, daria para passar um
ano inteiro a percorre-las. Webern, nascido em 1873, também foi um compositor para
lá de econômico - o conjunto de sua obra não soma três horas de duração,
caberia em pouco mais de dois CDs. Morreu em 1945 baleado por um soldado
americano, vítima da perseguição a um genro seu procurado por atuar no mercado
negro, durante a ocupação aliada da Áustria.
Felix Mendelssohn |
Ao revés
da produção econômica, retornamos ao prolífico Bach, autor de algumas obras fartamente caudalosas,
como suas duas Paixões: Segundo Mateus e Segundo João. A primeira delas possui
nada menos que 78 seções, e em uma das vezes em que toquei houve intervalo para
jantar, fazendo daquela tarde-noite um concerto extenuante, mas compensador
para o espírito e o estômago. Graças à Paixão Segundo Mateus que Bach, que andava
quase esquecido, foi redescoberto por Felix Mendelssohn (1809-1847), que a
regeu depois de quase dois séculos. Um crítico, sabe-se lá se por causa do antissemitismo
que grassava na época, escreveu, destilando seu veneno mais desaforado, que
aquela ‘descoberta’ da longuíssima Paixão de Bach terminou de matar Cristo para
lustrar a vaidade de Mendelssohn.
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