Rossini, por Charlet Ory, 1829 |
Se por um lado Gioacchino Rossini (1792-1868)
tinha enorme facilidade para escrever, por outro era extremamente preguiçoso. Compondo
O Barbeiro de Sevilha, sua mais famosa ópera, certo dia uma página escorregou-lhe
das mãos e foi parar debaixo de um móvel. Deitado na cama, não se deu ao luxo
de levantar e pega-la, chamou o criado puxando seguidamente a corda que
acionava um sino lá fora, mas sem sucesso. Após um bom tempo, virou-se para o
outro lado e escreveu a página novamente.
Rossini era um glutão assumido:
‘comer e amar, cantar e digerir são os quatro atos da ópera da vida’, dizia. Poderia
ter sido protagonista de uma opera buffa, gênero cômico italiano que dominava.
Tornou-se famoso, compondo pelos cotovelos - Tancredi, melodramma eroico baseado em uma peça de Voltaire, foi escrita por encomenda em menos de um mês.
Mas foi o sucesso de O Barbeiro que levou Rossini a compor mais
intensamente. A ópera repercutiu tanto que as apresentações prosseguiram por 21
temporadas, centenas de récitas. E mesmo hoje: o Opera Sense contabilizou 2.547
apresentações pelo mundo na temporada de 2015.
Batalha de Yarmuk |
Cenerentola, com libreto sobre a guerra entre
bizantinos e sarracenos, foi escrita improvisadamente em apenas três semanas. Guilherme
Tell, sua última ópera, obteve grande repercussão e ajudou a fazer de Rossini tão
famoso na Europa que os franceses propuseram erigir-lhe uma estátua, orçada em uma
pequena fortuna. Gozador, quando ficou sabendo Rossini disse que por metade
daquele dinheiro ficaria no pedestal ele mesmo.
Um atarefado cozinheiro, uns bons séculos antes |
A produção do italiano era quase
doentia: aos 37 anos, já tinha composto número igual de óperas. Deprimido,
enfadado pelo sucesso e sem perspectivas de subir ainda mais, quebrou a pena
favorita que usava para compor. Entregou-se à boemia, às viagens, aos restaurantes
franceses, a ne rien faire, ou, bom italiano que era, al dolce far niente.
Mais uma vez enfastiado dessa rotina, passou a dedicar-se a outro talento, a
culinária. Inventava pratos com a mesma facilidade com que criava suas óperas.
Cansado de viver de economias, direitos e glória, Rossini decide voltar a
compor, e escreve obras pomposas como o Stabat Mater e a Pequena Missa Solene.
Mosaico: a prisão de Guilherme Tell pelo tirano Gessler, por não reverenciá-lo |
A última ópera composta por Rossini
foi mesmo Guilherme Tell, cuja abertura foi usada, no nosso tempo, em filmes de
caubói, porque os arcos em ricochet (saltando três vezes na mesma direção
para cá e depois para lá) lembram o som dos galopes de cavalos do faroeste. A
partitura de Guilherme Tell havia sido prometida muito antes, mas Rossini não
se prontificava a começar a compô-la, pois havia prometido que aquela seria a sua
última – apesar disso, viveu 40 anos após termina-la. Um crítico publicou no
Correio dos Teatros que havia sido lançada à terra a semente da árvore cuja
madeira serviria para a construção do piano que o compositor usaria para criar a
partitura. E que pessoas não nascidas - porque os pais delas ainda não haviam
se casado - poderiam, no futuro, ouvir tão preciosa obra. [No final deste artigo, você pode ouvir a abertura de O Barbeiro e seus ricochets]
O 'Retiro' de Jacarepaguá, Rio |
Não se sabe se por causa desse
episódio, Rossini pôs-se a escrever, concluindo uma de suas obras-primas,
Guilherme Tell, com libreto em francês. Foi um dos mais populares compositores
da história, mas tinha medo da velhice e parece que escrevia para correr do
ócio, do torpor e do tempo. Legou boa parte de sua fortuna à Prefeitura de
Paris, para que fosse construída uma residência para músicos idosos - algo como
o nosso mais recente ‘Retiro dos Artistas’ de Jacarepaguá, no Rio.
Em A Ópera, 9° capítulo da obra-prima
Dom Casmurro, Machado de Assis conta que a vida é uma grande encenação na qual tenor
e barítono disputam a soprano na presença do baixo e dos comprimários (papeis
secundários). Isso, quando não são soprano e contralto que brigam pelo tenor (eu
sempre ouvi uma versão de músicos para este resumo da ópera: um tenor tenta
‘cantar’ a soprano, mas baixo e barítono atrapalham a cena).
Satanás expulso do Céu, por John MIlton |
Machado resumiu o que acontece no
mundo: Deus é o poeta, o compositor é Satanás, que subiu ao Conservatório do
Céu. Rival de Miguel, Rafael e Gabriel, não concordava em perder deles nas
premiações. Tramou uma revolta, foi derrotado e expulso do Conservatório. Tudo
poderia ter passado batido, pensou o escritor, se Deus não tivesse escrito o
libreto da ópera para depois dele abrir mão - a atividade não caía bem à sua condição
de Altíssimo. Satanás levou o manuscrito para o Inferno, compôs a partitura e usou-a
tentando se recompor com Padre Eterno, que se recusou a vê-la. Por isso, quando
certo dia alguém me perguntou o porquê das guerras, desgraças, tragédias,
mortes, e questionou a existência de Deus - tão poderoso, Ele deveria evitar nossas
desgraças -, pensei em Machado e respondi: Deus escreveu o libreto, mas quem rege a ópera é Satanás.
Machado, o ‘Bruxo do Cosme-Velho’,
foi guindado ao panteão dos maiores escritores do mundo após
recente publicação de livro com contos dele nos EUA. O NY Times considerou
nosso gênio um dos nomes de vulto entre os escritores, ‘herdeiro dos grandes e
inteiramente sui generis’. A Ópera de Machado não é apenas uma incursão na
literatura, música e filosofia. Considero o texto uma boa resposta para os
incrédulos e os que não enxergam de quem é a grande culpa do mal neste mundo: o
próprio homem. A Deus não cabe consertar ou evitar todos os erros da humanidade,
tragédias e guerras. Quando muito dá uma forcinha aos que pedem e realmente merecem].
***
Ouça a abertura Guilherme Tell com a Filarmônica regida por Karajan. Os ricochets surgem aos 8 min 45 seg:
https://www.youtube.com/watch?v=qOofwWT3Edc
https://www.youtube.com/watch?v=qOofwWT3Edc
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