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terça-feira, 14 de agosto de 2018

MÚSICA E SURDEZ


Foi padecendo da perda daquilo que lhe era mais caro que Ludwig Van Beethoven compôs, já em quase oclusão dos ouvidos, alguns dos seus melhores quartetos de cordas, sui generis e abstratos. Se soam modernos para a época, pura consequência do que lhe ocorria na mente. Ludwig passou a usar artefatos e espécies de cornetas de diversos tamanhos, no desespero de ouvir seu arredor. Fez encomendas especiais ao construtor e inventor Maelzel, o mesmo que criara o metrônomo, aquela pequena pirâmide cujo pêndulo oscila de um lado para o outro, alternadamente, para marcar o tempo.
Em 1812, já assinava cartas de modo inusitado: ‘de seu fidelíssimo amigo surdo’. Notas, acordes e frases de seu ouvido interno passaram a lhe atordoar, mas deixavam-no mais livre ante as normas rígidas do classicismo, dos invejosos e da crítica. À parte a surdez que torturava seu espírito, a fama lhe era perversa, não sabia lidar com ela. Na primeira audição de sua nona sinfonia, talvez a mais importante obra sinfônica de todos os tempos, Ludwig, já totalmente surdo, após encerrado o último acorde demorou a voltar-se para a plateia. Tinha medo de vaias e um fracasso tremendo, mas ao virar-se para o público só viu aplausos efusivos.
Helen Keller ouve Caruso
Se é possível um surdo criar música, que dirá dos que querem curtir lindas melodias? Helen Keller (1880-1968), ativista cega, surda e muda formada em Radcliffe (EUA), bem o mostrou. Sentia vibrações, e delas fazia o seu ouvido pessoal. ‘Ouvia’ cantores a seu modo, e do seu jeito manifestava sua opinião com sorrisos.
Apresentaram-na ao mito Caruso, o tenor maior, e este pôs-se a cantar-lhe uma ária. Com os dedos tocando os lábios do tenor, sorria como se comentasse cada frase. Assim, seu ouvido interno sentia pelo tato sons de beleza tão grande que a inebriavam.
Beethoven: máscara mortuária
Mas a surdez de Beethoven não era como a de Keller, nascida sem os principais sentidos. A vida do compositor parece ter sido melancólica, suas feições marcadas pelo sofrimento. Os retratos feitos pelos bons artistas destoam daquele vulgarizado, longos cabelos cuidadosamente revoltos como um modelo de passarela, a exemplo dos pequenos bustos comuns de se ver encimando pianos domésticos. Vi a máscara mortuária dele, e não era o rosto de um boa-pinta, consoante os retratos romantizados, só retratavam sofrimento e amargor. 
John Kamitsuka
Apesar da aparência malcuidada e desleixo, o gênio de Bonn parecia agradar os corações das mulheres. Seria a compaixão feminina pelo sofrimento dele um charme a mais? As investidas amorosas de Ludwig eram discretas, volta e meia sobre suas alunas. (O pianista John Kamitsuka lembra que o piano a quatro mãos, tocado por duas pessoas sentadas lado a lado no mesmo instrumento, foi criado tanto para facultar a audição doméstica de peças como sinfonias - já que não havia meios de registra-las em discos e afins - quanto para aproximar o professor de suas pupilas).
Condessa Giulietta Guicciardi
Levando adiante as simpatias femininas de Beethoven, as discussões intermináveis sobre quem teria sido a ‘amada imortal’ do compositor, já especularam que talvez a cunhada Johanna, como quer a ilação do cineasta Bernard Rose. Quem sabe Teresa de Brunswik ou a condessa Giulietta Guicciardi, ambas suas alunas? Em algumas cartas para sua misteriosa amada, Beethoven refere-se a um lugar chamado ‘K’. Seria referência ao balneário de Karlsbad? Ou Korompa, onde a família Brunswik teria propriedade? Bernard Rose (de Immortal Beloved) perdeu a oportunidade de fazer um filme interativo, em que os espectadores escolhem a resposta, versão a ser apresentada no final.
Helen Keller: laureada
Entre Beethoven e Keller, contrastam duas formas de se conviver com a surdez. Enquanto o primeiro se deixava levar pelos malefícios da perda de audição e problemas mentais, a segunda superou os obstáculos à ausência de três dos sentidos, escalou graus acadêmicos e alcançou notoriedade com seus estudos sobre o socialismo.
Em Beethoven, a surdez fora progressiva, em Keller de nascença. A do primeiro pode ter sido consequência de alguma outra moléstia ou a convivência com o epicentro da orquestra em alto volume, a PAIR (Perda Auditiva por Indução de Ruído). Esta, irreversível, pode acometer músicos e plateias - vide o caso de shows de rock, funk e outros, em volume pornográfico. Sirva isso de alerta para um exemplo cotidiano: a poluição sonora e o absurdo volume dos sons automotivos. Matam aos poucos nossos ouvidos.
Nos EUA: proteção auditiva exigida acima de 85 dB
Que ninguém amaldiçoe, buscando vingança, os donos dessas máquinas de fazer doido, pensando que logo terão uma perda auditiva, porque aos poucos elevarão o volume para continuarem ouvindo alto, daí mais surdez, e tome mais volume e assim vai, círculo vicioso até a perda total ou quase. Os cidadãos que se resignem a compartilhar à revelia a doença deles! Poluição sonora não é 'frescura de ambientalista', ela é cruel e selvagem. O limite de ruído para os humanos é de 90 dB (decibel, medida de volume) por 8 horas, segundo o Departamento de Trabalho dos EUA, mas um acréscimo de apenas 5 dB reduz esse tempo máximo de resistência para a metade da jornada, quatro horas. A 100 dB, o dano começa em 15 minutos, e a 112 dB, apenas um minuto. A 140 dB, a perda neurossensorial tem início imediatamente. Para se ter uma ideia, um escritório fechado, em silêncio e sem condicionador de ar ligado, registra entre 40 e 60 dB de ruído local externo ou vizinho (existem apps gratuitos para a medição em celulares, são os decibelímetros ou sound meters).
O guitarrista Mark Goffney, nascido sem os braços
É possível deficientes físicos, surdos, cegos ou mudos tocarem algum instrumento, cantarem? Sim, claro, observadas as condições de cada caso, a escolha e objetivos ao fazê-lo. Novas tecnologias ajudam, como os metrônomos com luz piscante para surdos. Esses ‘ouvem’ a música no seu instrumento, pela vibração em seu corpo ou ainda pelo chão.
A música, além de confortar os que perderam ou nasceram sem algum dos sentidos ou movimentos do corpo, é alimento do espírito e recompensa da vida. 

  

Um comentário:

  1. Mais uma vez um texto instrutivo, com dois mitos da história e uma pitada de bom senso. Pena que efetivamente quem deve ler esse artigo, está agora com o som no ultimo e possilvemente , escutando funk. ( não gosto )

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