LIVROS

LIVROS
CLIQUE SOBRE UMA DAS IMAGENS ACIMA PARA ADQUIRIR O DICIONÁRIO DIRETAMENTE DA EDITORA. AVALIAÇÃO GOOGLE BOOKS: *****

sábado, 2 de março de 2019

ADEUS ÀS ARMAS


Preta, brilhosa, pesada. Cabo de madeira de lei. Quando eu a limpava, assobiava a música do Moraes Moreira, preta, preta, pretinha, lubrifica-la era mais do que um passatempo, coisa de arte. Puxar o carro, ver se desliza bem, limpar o pente, verificar as balas (um projétil pode atravessar duas pessoas, mas se a pólvora é velha o tiro pode ser escudado por um RG no bolso, ou na palma da mão, deu no jornal uma vez).
Após o disparo de uma 765/PT 158, o gás ejeta a cápsula deflagrada e num átimo a mola do pente faz subir outra bala, daí não haver coice. Pode-se disparar de um a uma sequência de até doze tiros. Quando o modelo foi lançado no Brasil, delegados de São Paulo receberam algumas para teste. Uma delas mais tarde passou para o nome do filho de um deles, vizinho conhecido meu. Pendurado em dívidas, ofereceu-me para comprar. Levei, e com ela fui na chácara de um hoje muito saudoso aluno, lá poderíamos treinar com um primo dele, militar e aficionado. Cheguei a andar com ela, coldre no sovaco, alcance da mão, não dava para ver sob o paletó.
Pente carregador
Nos fins de semana, costumava às vezes tomar um lauto café da manhã na padaria de uma esquina da Vila Mariana com meus dois filhos mais novos, então com coisa de seis e oito anos. Voltamos para casa, abri o portão automático, entrei, mas antes que a traquitana fechasse de vez um sujeito jogou-se por baixo, e, armado, anunciou o ganho, hoje talvez dissesse perdeu, caubói. Abri a casa, obedeci à ordem de acionar o portão elétrico, entraram mais três deles. Todos de ninja, menos um. Estava armada a festa. E bem armada.
A bela e tradicional padaria
O líder do grupo, dopado até o cocuruto, queria dólar, ouro e arma. Eu não tinha valores, só a pistola. Está no arquivo, eu disse, um dos bandidos foi buscar e só faltou beijá-la, dizendo-lhe uma gracinha. Mas foi sob a mira dela que manteve meus dois filhos pequenos, bem ao meu lado. Desmancharam os guarda-roupas, deitaram todos os quadros da casa no chão, e nada. Um deles pegou meu cartão de banco e levou a senha. O primeiro caixa eletrônico filmou, soube depois, mas estava quebrado; o contrário aconteceu no caixa de uma agência, câmera inoperante, vi depois. O cartão tinha sido bloqueado, eta senha danada! Tenso que só eu, devo ter passado o código errado.
Não tinham jeito de levar mais, meu carro na garagem já havia sido carregado com o ganho do dia: roupas, eletrônicos, TV, computadores, relógio, carteira. O que não os saciava, eles queriam mais. O líder ameaçou levar minha filha como refém, aí me deu gosto de fel na boca, longos momentos de ódio e sangue frio. Mudou de ideia, acertou de nos encontrarmos na segunda-feira na estação Tatuapé do metrô, eu levaria uma maleta com 50 mil reais. Combinado, trancaram-nos na cozinha (uma, duas ou mais horas? O tempo da angústia retarda até ponteiro de relógio). Peguei um telefone velho no fundo do gaveteiro da pia, descasquei o fio e liguei no cabo que  passava no canto, uma gambiarra. Liguei. Em pouco tempo, um amigo abriu a porta e nos livrou. Ver a casa naquele estado de guerra, foi deprimente, mas não haveria de ser nada, estávamos todos ali, e vivos.
Estação Tatuapé
Dia seguinte, segunda-feira, lá fui eu com a mala 007 cheia. De jornal picado, como a polícia instruíra. Desci na estação, a área cercada de policiais à paisana. Polícia Civil, DOE, até o DAS (Divisão Anti-Sequestro), que geralmente só atende em casos consumados. 
Esperei em frente à tal carrocinha de doces, ninguém. Encostei a maleta no meio-fio como chamariz, nada. Veio um rapaz e comprou um doce, falou baixinho para mim não há nada aqui, era só para você ficar com medo. Outro passou sussurrando que foi só para ganhar tempo, e veio um outro, baixando a ordem: vamos embora, é blefe.
16 DP - Vila Clementino
Fiz o BO no 16° DP. Ante a pergunta da simpática delegada sobre se eu tinha uma arma, se fora levada, se era fria, eu disse que sim, sim e não. Era registrada e com porte. Pois tanto pior, disse ela. Mas não se lembra onde estão porte e o registro? Vou bloquear este computador e o Sr. vá em casa encontra-los. Se a arma for usada em algum crime, o Sr. estará dentro. Corri, logo abria gaveta por gaveta, pasta por pasta, papel por papel do meu arquivo, e finalmente achei os documentos. Voltei ao DP, a delegada deu baixa na numeração, eu estava livre. Meses depois, recebi ligação de uma outra delegada, dessa vez do 3° DP, de que a pistola fora usada em um 157 (par. 3°: latrocínio). Mas a Justiça já custodiava a arma, eu havia dado baixa e agradecia por ter sido salvo de mais essa encrenca. Foram dias indescritíveis.
Saguão com lojas e elevadores
Passou algum tempo e minha filha mais velha pediu-me para ir buscar o violoncelo dela, que estava em uma luteria de um prédio tradicional da Av. Paulista. Fui no horário marcado, mas precisava comer algo antes, enganar a fome em um café ali embaixo. O elevador chegou ao térreo, dane-se, vou depois, fome também mata! Entrou um senhor com uma maleta, já estava filmado, diz o jargão. Logo entra mais outro, e mais um. A porta do elevador se fecha. O resto, já que saí do prédio ao ouvir barulho e ver uma confusão, vim a saber pela TV à noite e jornais do dia seguinte. Um dos sujeitos anunciou o assalto, pegou a maleta e o terceiro sacou de sua arma contra o bandido. Mas levou um tiro na cabeça, morte na hora. Detalhe: o sujeito assassinado era delegado de polícia recém-aposentado, com 30 anos de carreira. Isso, com a experiência dele no uso de armas, com a vivências de situações semelhantes, o que faria eu no lugar dele?
No plebiscito de 2005, votei com os 63,94% pelo não, que derrubou os 36,06% a favor das armas. Motivos de sobra eu tinha e tenho: este breve relato poderia ser um capítulo entre tantos que dariam um romance. De suspense e terror.
(Adeus às Armas é o título um romance de Ernest Hemingway, publicado em 1929. O escritor suicidou-se aos 61, com um tiro de seu próprio rifle. Fica a homenagem. Abaixo, Ernest Hemingway e seu cano duplo)


Nenhum comentário:

Postar um comentário