A vida não escolhe dia e hora para nos pregar peças. Sequer as mais dolorosas, como levar pessoas que amamos e admiramos, sejam familiares e amigos ou ótimos e estimados colegas profissionais. Este ano o destino nos tem sido especialmente cruel, precisa parar por aí. Chega de arcar com o peso que nos traz a falta, por mais contraditório que isso pareça. (Sentimentos não conhecem leis da gravidade, pairam acima delas; a ausência sim, pesa como um fardo às costas).
O que flutua é a memória que nos abraça e se espalha como um grande sopro, um soffione (em italiano, aquela flor-pompom que se pulveriza, multiplicando-se em micropartículas, voando à menor brisa ou ao mais puro assoprar de uma criança). Tal qual “A felicidade” do Vinicius: “como a gota de orvalho / numa pétala de flor / Brilha tranquila / depois de leve oscila / e cai como uma lágrima de amor”.
No último domingo, 20 de setembro, deixou este palco mundano o grande flautista Jean-Noël Saghaard. Deixou-nos com a mesma simplicidade com que veio da França para o Brasil e logo tornou alvo de elogios por seu timbre puro e aveludado. Foi o melhor Bolero de Ravel que já ouvi, e olhem que foram às dezenas, no palco ou na plateia. Jean captava o espírito etéreo daquele solo de abertura sobre o qual todo o resto se erguia e se encorpava, equilibrista como fosse em mágica, até o repentino desmoronamento final. Grande músico, excelente professor, amigo sincero, tinha a personalidade forte e uma introspecção de que só os verdadeiros artistas dispõem. Foi-se como a gota de orvalho do Vinicius, e tão suavemente como quando seu instrumento mágico abria a obra de Ravel.
Aírton Pinto |
Em um dos vídeos que nesses dias procurei para lembrar Jean-Noël chamou a atenção a figura de Bruce Mack, violinista e amigo, também professor de Escola Municipal de Música de São Paulo com quem eu tinha certa afinidade, talvez por ele ter nascido na Boston onde vivi. Bruce foi-se de repente, o coração tão aberto aos seus alunos e amigos não suportou um ataque traiçoeiro. Próximo a ele, em primeiro plano na cena, o spalla da Osesp, Aírton Pinto, exímio violinista, um bostoniano honorário que tocou por anos na famosa sinfônica, e cuja imensa capacidade não interferia nas amizades sinceras. Coincidentemente, foi em Boston, em 2009, que eu recebi a notícia da partida de Aírton, exatamente onde ele havia feito seu segundo lar, pelo telefonema de um amigo que recebi no hotel. A notícia veio no mesmo dia em que eu havia ouvido falar o nome dele ao menos cinco vezes, em visita ao New England Conservatory e à Boston Symphony. Bruce e Aírton, surgindo como lembranças do vídeo do Jean!
Há seis meses, em 26 de março deste 2020, saía de cena Naomi Munakata, que foi regente do Coro Sinfônico da Osesp. Nascida em Hiroshima, admirada professora e maestrina, foi vitimada pelo mal do século, a Covid-19. Vez por outra levava seus apetrechos para cozer Sukiyaki em minha casa, e a certa altura meu já impaciente filho Lucas, então com três anos de idade que saía para uma volta deitado no banco de trás do fusca de Naomi, espécie de simpatia que o trazia de volta dormindo (talvez já prenúncio da paixão que viria a desenvolver por automóveis, seu métier e profissão).
Em 31 de outubro de 2015, já havia ‘caído o pano’ para Martha Herr, brasileiríssima soprano norte-americana, uma de nossas vozes mais lindas: das melhores Bachianas nº 5 do Villa-Lobos e o melhor Exsultate Jubilate de Mozart, emocionava até com o singelo “Over the rainbow”, do filme “O mágico de Oz”. Em 2003, desempenhou à perfeição no Municipal de São Paulo o papel-título de Olga, ópera de Jorge Antunes e Gerson Valle – e como sua personagem, Martha resistiu o quanto pôde - não ao nazismo, mas a outro mal que lhe assaltara o corpo.
No dia 4 de agosto de 2007, já tinha nos deixado o violoncelista polonês Zygmunt Kubala. Ao abrir um recital em uma igreja em Ouro Branco, Minas Gerais, mal terminou a primeira frase e caiu, vítima de ataque fulminante. Companheiro de algumas turnês e festivais, ele dizia que esperava morrer fazendo o que melhor sabia: tocar seu instrumento. Desejo cumprido, assim foi-se, inspiradíssimo, embalado pela uma introspecção sem par e som inimitável.
No meio musical, temos sofrido diversas outras grandes perdas nesses anos, desde Eleazar de Carvalho, maestro maior de cuja vida musical e pessoal desfrutei em vários momentos. Mestre dos mestres, nascera na cearense Iguatu em 1912 e tinha fama de durão (mas coração de geleia, digo eu). Pouco tempo antes daquele 12 de setembro de 1996, no leito que o embalaria ao sono derradeiro, escreveu-me um cartãozinho com a caligrafia já mal ajambrada, mas ainda invejável, retorno carinhoso a um bilhete que eu tinha enviado desejando-lhe pronto restabelecimento - apesar de sabermos quase impossível.
Espero que Jean-Noël tenha sido o último grande músico amigo a nos deixar sem mais, ao menos até o final deste fatídico ano de 2020, que ficará na memória como com ferro o gado é marcado. Mal se vão 9 meses e 2020 já tem se mostrado implacável com as queimadas recordes no Pantanal (996% a mais desde 2018) e na Amazônia; as invasões de terras dos indígenas que aqui nos receberam há mais de meio milênio; a devastadora crise econômica e uma pandemia para cujo fim o povo, espelhando-se em algumas autoridades, não colabora como seria do seu dever.
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