Sta. Efigênia da Etiópia. Séc XVIII |
Tinha eu uns treze ou catorze anos. Família das artes, eu gostava de música, pintura, poesia, boa prosa de texto ou prosa fiada. E tinha especial apreço pela cozinheira dos meus quitutes, a dona Efigênia, nome de um bairro de Conselheiro Lafaiete, cidade interiorana de Minas. Ah, aqueles quitutes... Pois foi em um belo dia, não sei como foi (acho que o vi usando), que ganhei de um marceneiro um bloco de parafina pura, que ele usava para lubrificar seus serrotes, e toquei a esculpi-la com um pequeno formão em “V” (‘seo’ Joaquim dizia que era para escochinar, algo como estripar ). Logo tomou forma uma santa tingida preta, e a fiz com todos os detalhes encorpando sua longa veste, as dobras e as faixas coloridas. Chamei-a Santa Efigênia. Anos depois, a própria, já muito idosa, voltou para Lafaiete, meu pai dirigindo a Kombi, mas a santa ficou bem ali na estante da entrada de casa no Rio.
Minha mãe, Ana Arruda e Lia Luft com Verissimo, Callado e meu pai em Berlim, após a Feira Internacional de Frankfurt. |
Essa admiração pela mulher, claro, remete à minha mãe, que dizíamos brincando ter sido a primeira feminista do país: bem instruída, presente com meu pai em conversas com mulheres como Clarice Lispector. Matriarca enérgica mas extremamente amorosa, também professora de francês e ligada à literatura. Se chegava a beauvoirtiana, não sei, mas leu a francesa, comme il faut (como deveria). Assim criou filhos e filhas, zelosa ao extremo com a educação que nos dava. “Um abraço terno em você, viu, mãe”, cantou Gonzaguinha, e faço coro em eco agora, que vazio que ela nos faz!
A virgem de Dali |
Gosto muito do jogo de sombras do ‘Caravaggio holandês’ Hendrick Terbrugghen (séc. 17) em seu óleo sobre “Anunciação”; da expressão materna de Maria com o menino Jesus no colo de Giovanni Batista Salvi (1609-1685), sem falar nas obras-primas de Leonardo da Vinci, Rafael, Rubens, Bellini e mesmo os recentes como Salvador Dali e sua misteriosa Virgem de Guadalupe. Todos, católicos, agnósticos ou ateus, tinham na imagem da Virgem Maria o modelo da mulher virtuosa, devotada à contemplação absoluta que aprendeu com o Filho ser a parte mais importante – e nunca a “melhor”, mais prazerosa! – Grandioso o cadáver ainda insepulto do Salvador esparramado como que escorrendo sobre o frágil colo da Pietá de Michelangelo (abaixo).
Virginia Slims, anos 1970 |
Muitos anos depois, nos EUA, via propagandas de mulheres finas e arrojadas – fumando, claro, símbolo de independência na época – tendo ao fundo uma imagem meio sépia de seu passado de semiescravidão, cavando neve ou lixo com pá - contraste com aquela linda modelo do Virginia Slims, cigarro feito para o público feminino em primeiro plano, o desejo libertário (você vem de um longo caminho, dizia o texto). O mundo passou por aqueles tempos, desde a luta pelo direito a voto nos EUA, até as mais recentes líderes Betty Friedan e a bela Gloria Steinem, que chegou a aceitar um emprego de “coelhinha”’ em um Playboy Club do fanfarrão milionário Hugh Heffner apenas para denunciar a condição da mulher-objeto para babação (e abate?), “lebres” de um cafajeste explorador e carrasco da condição feminina admirado pela mídia.
Marilena |
No Brasil, aventureiras como Anita Garibaldi, Chica da Silva, a mais recente, Chiquinha Gonzaga e logo Rose Marie Muraro. Vi Norma Benguell, Leila Diniz, Ruth Escobar, Odete Lara perfiladas com Chico, Vinicius, Caetano, Gil e padres entoando palavras de ordem contra o cruel AI-5, em 1968, na chamada “passeata dos 100 mil” - naqueles tempos raro ver a multidão encarar os longos cassetetes de madeira dos cavalariços ou os de borracha e coturnos com golpes curtos enevoados pelo gás spray (Sidney Miller, ícone de festivais, lançou “duas doses de ácido lisérgico / ou uma bomba de gás lacrimogênio / qual das duas que você prefere / na sua linda tenda de oxigênio”?). A mulher brasileira já não era mais aquela, servil, opinião só quando lhe permitiam, moldada à do macho: queria vida própria e poder traçar o seu destino, ganhar régua e compasso, como disse Gil.
Trabalhei com a Paraibana Luiza Erundina e mais próximo ainda da colega titular de filosofia da USP Marilena Chaui – incompreendida até por alas da esquerda por ser uma líder inconteste na condição de ideóloga genial. (Em uma reunião com artistas do Municipal um cretino disse que ela não sabia nada de música. Marilena: que tal se começarmos com uma digressão sobre o papel da mulher nas óperas de Mozart? Cai o pano)
Das que conheci na adolescência, dos amores platônicos aos beijos roubados mutuamente, a beleza sempre acima de tudo. Mas tinha de ser uma beleza angelical, feminina, mariana, que brotava em nossos sonhos: a expressão, as palavras, o charme e a loquacidade com que seduziam a rapaziada nas quedas de braços verbais e disputas. Pouca ou nenhuma maquiagem, porque para elas o show apenas era, nunca terminou: apenas o “doce balanço, a caminho do mar”, obra-prima de Vinicius e Tom composta no antigo Bar Veloso de Ipanema, point dos bardos, quando a poesia era o caminhar, as pinceladas das marcas brancas no desenho caprichoso do sol escapando tímidas das alças do maiô, sereias penteadas pelo coiffeur das belas mechas, o vento. Eram desprendidas, independentemente de serem loiras, negras ou cafuzas! (Ao menos uma vez tropecei na antipsiquiatria, em Althusser, Reich, Marcuse - ponto: ou iria atrás de livros e filmes ou elas com sua cultura me devorariam como esfinges). Não eram ainda dessas brasileiras que depois nasceriam em parte da futilidade do analfabetismo funcional promovido pela TV. Enquanto isso, muitas buscam hoje o poder, a igualdade de condições domésticas, profissionais e acadêmicas ao par com os homens, deles ouvindo ‘salve Maria, salve a mulher’!
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