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sexta-feira, 22 de outubro de 2021

SUA MAJESTADE, O CURURU

 

Osvaldo Lacerda

Até mudar-me para Tatuí
, interior de São Paulo, em 2008, só sabia do cururu pelas aulas de folclore, no Rio. Não o conhecia in loco, ao vivo, até ir morar na região. Lembrava-me do cururu que Mário de Andrade chamava de “transposição erudita” da música de raiz brasileira: o compositor Osvaldo Lacerda (1927-2011), último bastião nacionalista da chamada música de concerto e durante muitos anos professor na Escola Municipal de Música de São Paulo, onde fui diretor, era mestre em mazurcas, cocos, xotes, modas, maxixes, lundus, polcas, forró e... Cururu. Tanto que criou sua versão em uma das 9 Brasilianas para piano, a de número 2.

Cenário do Jaime Pinheiro

Em Tatuí, costumava receber bilhetes
carinhosos do Lacerda, até perto de seu falecimento; em um deles, mencionava o cururu das Brasilianas. Escrevia com o esmero de sempre, e resolveu me parabenizar, e ao Conservatório de Tatuí, pela iniciativa de ajudar a manter vivo o cururu na região, como parte do Festival de MPB – Raiz e Tradição, “uma das três ações realizadas, (...) que também inclui o Certame da Canção e o Painel Instrumental”, divulgou a reputada escola de música, artes cênicas e luteria do estado.

Com Almir Sater

O I Torneio Estadual de Cururu
aconteceu em 2009, após eu ter travado contato direto com o gênero no ano anterior. Homenagem ao cururueiro Horácio Neto, teve lugar na Concha Acústica Spartaco Rossi, e durante a apuração dos resultados houve apresentações de Antonio Nóbrega e do campo-grandense Almir Sater, que além de ótimo cantor – emocionou o público com sua versão de Chalana, de Mário Zan – revelou-se um bom papo e dono de uma boa cultura geral, tendo cursado Direito no Rio de Janeiro. Foi esse primeiro evento que chamou a atenção do compositor Osvaldo Lacerda e motivou o afável bilhete que me endereçou. E foi um dia histórico: subi ao palco com os diretores de importantes instituições para assinar, com o governador Alckmin, um acordo para o curso superior de Produção Fonográfica (Fatec) e o de Técnico em Música (Etec).

Assinando o acordo: Diretores da Fatec e Etec, o governador e eu, pelo CDMCC


Em 2010, quatro mil pessoas na plateia, vieram duplas de cururueiros de diversas regiões de São Paulo para, também na concha acústica, participarem do II Torneio de Cururu, homenagem a

Tinoco!

Noel Mathias, sob a coordenação do cenógrafo e escultor Jaime Pinheiro. Além do certame, em si, tivemos uma linda exibição de catira, ameaçada de esquecimento como o cururu, e o sorridente Tinoco, que teve dupla caipira com o falecido Tonico. Dois anos depois daquela apresentação, Tinoco também faleceria, talvez entrando no Céu com todo aquele garbo com que cantou no final do Torneio - um smoking de reluzente lamê vermelho.

Tropeirinhos do Rancho

Em 2011, em homenagem à memória de Pedro Chiquito
, levamos o III Torneio para o Teatro Procópio Ferreira, a fim de trazer o povo para dentro: chegamos a ‘convocar’ alguns mais tímidos que se escondiam lá fora, para que entrassem no auditório, já que a casa também é deles, para se tornarem frequentadores. Foi um sucesso, mas o público não ficou à vontade. Assim, o IV Torneio, em 2012, tributo a Aírton Pires, aconteceu no pátio do estacionamento do Conservatório. O público, bem mais à vontade, pôde se deliciar com iguarias caipiras e até degustar provinha de uma das diversas variedades de cachaça da tradição local. Todos em casa!

Sempre com a coordenação do Jaime Pinheiro e grande sucesso, em 2013 repetimos a apresentação na chamada “quadrinha” do estacionamento, com público, violeiros e canturiões (cantadores de cururu) bem à vontade. O V Torneio, “in memoriam” de João Davi, contou com apresentações como a catira dos Tropeirinhos do Rancho no intervalo. O VI Torneio, dedicado a Luizinho Rosa, aconteceu em 2014, também no estacionamento do Conservatório.

José Pinto e Josué

Conheci o cururu das rodas
, fiz amizades com vários cururueiros, em especial o cantador José Pinto, exímio poeta, e o violeiro Josué, seu companheiro de sempre. O cururu parecia efervescer novamente, cheguei a ir a eventos em cidades próximas, como Pardinho, em seu lindo e ecológico Centro Cultural Max Feffer.

O autossustentável Centro Cultural Max Feffer, de Pardinho - Fundação Jatobá


Puxando o baixão

Diz a tradição
que cururu é corruptela de cruz (“cururuz”, entre os indígenas), e teria se desgarrado da catequese para tornar-se arte profana, uma espécie de desafio que obedece a certas regras. O cantador incumbido de puxar a querela faz o seu “baixão”, ou seja, uma linha melódica sem letra, como um vocalise, base para o seu improviso. Os versos são organizados em rimas, chamadas carreiras, que podem ser ‘do divino’, ‘do sagrado’ e ‘do sinhô’, entre tantas, além de algumas bem difíceis para se improvisar. São comuns desafios de cantores com um violeiro ou duas duplas independentes, cada qual com seu acompanhamento. Piadas e ironias são permitidas, mas a ética dos cururueiros não aceita falar da mãe alheia, ofensas e racismo.

José Pinto, Zacarias e Josué

Temas fequentes são Bíblia
, política e história, o que obriga o cururueiro a um conhecimento geral bastante abrangente, pois é na contenda entre as duplas que eles serão testados. A tradição exige dos canturiões, para poder replicar, além de versatilidade no improviso e atenção ao que canta o outro debatedor, esse conhecimento, o que os obriga a ler e estudar.

Jó, por Léon Bonat (1880)

Faço homenagem
ao poeta e canturião José Pinto e o violeiro Josué - arrimo para qualquer bom cantador - em nome de todos os cururueiros, com uns versos emprestados do primeiro, “Um pouco de Jó”: “
Jó era muito querido / onde era morador / tinha pena tinha dó / do pobre trabalhador / (...) um homem que sofreu tanto / não reclamava da dor”. E lá ia história. Paciência de Jó, salve o cururu!





sexta-feira, 15 de outubro de 2021

PARAÍSO E FETICHE

 

Os retirantes de Portinari

Uma incelença / entrou no Paraíso / adeus, irmãos / que é o dia do Juízo”. Cantiga fúnebre da tradição popular gravada por Dorival Caymmi, surge na versão musicada por Chico Buarque de Morte e Vida Severina, do João Cabral: “Finado Severino / ao passares em Jordão / e os demônios te atalharem / perguntando o que é que levas”. O Paraíso do retirante nordestino é cáustico, corrosivo, os versos narram que deste mundo Severino só levou “coisas ocas / como o caixão que ainda deves”.

O Paraíso dos Vedas (texto em inglês em vedkabbed.com)

O que seria o Paraíso?
Talvez um estado puro de completude, morada da paz. Ele faz contraponto com a miséria humana, o chão em que sofremos nesta Terra. Nas religiões, surge como ideia de recompensa para os puros, ou os que purgaram seus pecados. Para algumas, trata-se de um lugar no alto; entre islamitas e cristãos revela-se como um alívio, libertação, estado de felicidade plena. Para os budistas, Paraíso e Céu são sinônimos, estados de plena elevação espiritual. Entre os Vedas indianos, é como se o corpo físico fosse incendiado para se transmudar em outro estado, acima da humanidade. A palavra veio do grego Parádeisos, de onde o latim Paradisus, que nos deu Paradis, em francês, Paradiso, em italiano, e finalmente, em português e espanhol, Paraíso.

Ruínas das colunatas de Pasárgada, no Irã

Ingrediente que fertiliza poesias
, a palavra ambienta Vinicius de Moraes, em O Vale do Paraíso (1933): “Quando vier de novo o céu de maio largando estrelas / (...) lá onde os pinheiros reacendem nas manhãs úmidas / lá onde a aragem não desdenha a pequenina flor das encostas” - lindos versos descritivos, suavemente pueris mas contados com olhos adultos e terrenos. Para Manuel Bandeira, é Pasárgada, um lugar perfeito onde tudo funciona às maravilhas: “lá sou amigo do rei / lá tenho a mulher que eu quero / na cama que escolherei / (...) um processo seguro / de evitar a concepção / tem telefone automático / tem alcaloide à vontade / tem prostitutas bonitas / para a gente namorar”. Pasárgada é sonho terreno onde não existe pecado: satisfações mundanas, nada celestiais.

O Paraíso de Dante

Terceiro livro e parte final de A Divina Comédia
(1308-1320), de Dante, Paraíso conclui a trilogia da viagem que sai do Inferno e atravessa o Purgatório, que o antecedem. É a jornada final de Dante, conduzido por Beatrice, que simboliza a fé, em alegoria. O Paraíso é dividido em nove esferas, da inconstante lua até a última, primum mobile, os anjos. Pouco depois de terminar A Divina Comédia Dante morre, deixando a cruzada descrita em seu tríptico, uma das maiores criações da humanidade. Talvez tenha descoberto o enorme alcance que sua alma mater, sua alma parens, viria a significar para nossa Civilização – o que escrever depois dele?


Em A Classe Operária Vai ao Paraíso
(1971), filme do italiano Elio Petri, o fura-greve Lulu Massa, interpretado pelo mestre do gênero, Jean Maria Volonté, não adere ao movimento paredista dos colegas da fábrica, e ao manobrar sozinho uma das máquinas perde um dedo. O acidente fez de Lulu não um grevista a mais, mas um revolucionário. O título do filme remete aos anos de chumbo de parte do mundo, e, segundo a Drª Marta de Aguiar Bergamin, da UFSCar, “o fetiche dá um parâmetro para a análise dessa trajetória relacionando a luta política com as dimensões subjetivas do trabalho” (em “E quando o Paraíso é uma névoa? ‘A Classe Operária’ e o fetiche”. Revista Aurora, 2017). O filme não aponta para um Paraíso, mas um fetiche que a fantasia dos operários criara de forma coletiva, sem necessariamente acontecer.

"Che", Fidel e companheiros em Sierra Maestra

No Brasil, por volta dessa época
(fim dos anos 1960 e início dos 70), existiu o fetiche, sombra da luta armada à Sierra Maestra cubana, que com Fidel, Guevara, Camilo Cienfuegos e apenas mais nove incendiaram o mundo pós-1959. Criaram o sonho de uma sociedade igualitária, cujo combate no Brasil foi desculpa para inúmeras torturas, mortes e desaparecimentos. Em Cuba, 12 desceram a cordilheira para arrebatar um país inteiro cuja população era menor do que a da cidade de São Paulo - no Brasil, gigante pela própria natureza, não vingou. Com um regime de exceção instalado, criou-se uma desculpa esfarrapada para fechar Congresso, controlar a imprensa, prender por “crime de opinião” e censurar: a “pecha infamante de comunista” do “Manifesto” dava o tom.


A distorção proposital da palavra “comunista”
era tão absurda que restou tratá-la com ironia: depois de sair da prisão, a chamada turma do Pasquim resolveu vulgarizá-la, tornando-a anedota. Bem ao seu estilo, escreviam “fulano? Comunista igual a nós!” “Sicrano? Também”. O momento era propício para o regime criar uma espécie de macarthismo no Brasil. Nos EUA, a sanha persecutória no fim dos anos 1940 e durante os 50 tinha à frente o senador Joseph McCarthy: taxava seus adversários de comunistas, e os que divergiam da extrema direita de espiões soviéticos. A acusação era tatuagem indelével, como os números cravados nos braços dos judeus pelos nazistas.

O senador McCarthy ironiza a manchete: "Macartismo é traição à América!


Constituinte em festa: aprovada a nova Carta Magna 

Hoje, o que se vê no Brasil
é um sonho modesto: viver em uma democracia, com justiça social, sem uma inflação que corroa 1,1% o poder aquisitivo em apenas um mês, como aconteceu em setembro passado, e, quem sabe, poder comer alguma carne. Sem quedas brutais no PIB e juros absurdos, com políticas ambientais que garantam o futuro das gerações. Sobrevive uma Constituição talhada com suor em 1988, arrimo de uma sociedade que se prometia livre e soberana. Não é Paraíso ou fetiche, mas um sonho bem vivo, com todas as suas imperfeições, sim, a ser garantido a qualquer custo.

O Paraíso, segundo Jan Bruegel (1568-1625)



sexta-feira, 8 de outubro de 2021

PESSIMISMO, NIILISMO E NEGACIONISMO

 

Schopenhauer

É difícil encontrar a felicidade em seu próprio interior, mas é impossível encontrá-la em qualquer outro lugar”. Arthur Schopenhauer, 1788-1860, filósofo, autor de um sistema ético oposto ao idealismo alemão. Suas ideias envolviam a negação do “eu” e o ceticismo, cernes do pessimismo filosófico. Sua obra “O mundo como vontade e representação” (
Die Welt als Wille und Vorstellung), de 1818, fala da ”coisificação“ do ‘eu‘ e das raízes do sofrimento. O sentido da vida seria consequência de uma negação total da vontade de viver.

Platão

O pessimismo de Schopenhauer
não era um disparate, tinha fundamentos no que há de mais profundo, de Platão à filosofia indiana. Admitiram influência do pensador compositores como Schönberg, Mahler e Wagner, além de Freud, Jung e uma legião de escritores, como Herman Hesse, Thomas Mann e os nossos Machado de Assis e Clarice Lispector. Goste dele ou não, era uma filosofia consistente, de profunda reflexão, não um arroubo ignorante; impregnado de ateísmo, sim, que não se estende necessariamente a todos os seus seguidores.

A Niilista, pelo ucraniano Paul Merwart

Já o niilismo
(do latim nihil, nada), é a rejeição primordial de fundamentos da existência humana, como a verdade, o conhecimento, os valores, a moralidade, chega a negar até a nossa própria existência (Walter Veilt, em “Niilismo existencial“). Ao contrário 
do pessimismo, o niilismo não é centrado em um filósofo, mas em uma atitude coletiva: não vê sentido nos valores da humanidade, o conhecimento é impossível, certas entidades (entenda-se aqui como divindades) ou não existem ou não fazem qualquer sentido. Como ponto de partida, o niilismo surgiu após Søren Kierkegaard (1813-1855), filósofo dinamarquês.


De certa forma, há algo em comum
entre a filosofia do pessimismo,  o niilismo e o negacionismo. Mas superficialmente: nunca, nunca podemos comparar este último a filosofias que marcaram a humanidade. Por quê? Porque o negacionismo é ingênuo, tem personalidade política maleável, não possui fundamentos ou lastro em filosofia alguma. Pode colocar "Deus acima de tudo" e agir inconsequentemente em nome dele, ou, conformista, simplesmente deixar de agir. Reflete uma paupérrima formação de pensamento, e uma espécie de ignorância endêmica, encobertas pelo véu de fanatismo. Mais do que nunca, é negação da ciência, do conhecimento adquirido e de tudo o que significa progresso para a humanidade. Como fermento para o bolo da manipulação do povo, já é, como se diz, um prato cheio.


O termo negacionismo
foi cunhado pelo historiador francês Henry Rousso em seu livro “A síndrome de Vichy", de 1987 - bem recente, portanto. Trata do Estado encabeçado pelo marechal Pétain na II Grande Guerra: um regime autoritário, antissemita, homofóbico e xenofóbico. Como Estado independente, Vichy estreitou laços com os nazistas alemães que ocuparam posições no oeste e nordeste da França, até avançarem sobre a região metropolitana em 1942 (ilustração). Essencialmente, era um antissistema confuso, de negação, e, claro, instrumento para fácil manipulação de massas fanatizadas.

Antivacinas americanos

Uma forma ainda mais desorganizada
de negacionismo são os atuais movimentos antimáscara e antivacina, que alimentam sobremaneira a pandemia, sabe-se lá a troco de quê. Em depoimento à CPI da Covid no dia 30 de setembro, o empresário Otávio Fakhoury, entre negações generalizadas, classificou as vacinas como “testes“. Disse – haja viés machista e autoritário! – que ele  somente levaria sua família para ser inoculada após certificar-se da eficácia do imunizante (como se não bastassem os exemplos diários de comprovações científicas em publicações internacionais abalizadas e sucesso pleno em Portugal e na Alemanha). Homofobia não estava na pauta, mas o presidente da Comissão, Omar Aziz, cedeu sua cadeira para que um senador, Fabiano Contarato, se manifestasse sobre o ataque virtual de Fakhoury à própria família dele (é casado com um homem e tem dois filhos): O negacionismo de Fakhoury lembra vários dos sintomas que Rousso descreveu em “A síndrome de Vichy“, mas não necessariamente a mesma doença.

Mapa eleitoral da vacinação nos EUA
(NY Times)

Trump é um negacionista
com boa parte dos componentes exposta e outra camuflada. No entanto, com sua ascendência sobre o eleitorado de extrema-direita, exerce influência sobre o movimento antivacina nos EUA. Segundo o jornal The New York Times de 27/09, “Uma pesquisa da Pew Research Center, no mês passado, mostrou que 86% dos eleitores democratas receberam ao menos uma dose, enquanto os republicanos vacinados foram 60%“. E mais: “A divisão política da vacinação é tão grande que quase todos os estados confiavelmente democratas têm um índice de vacinação mais alto do que o dos estados seguramente republicanos“ (Trad. do A.).


No Brasil
, não há estudos sobre esses estratos e suas ligações partidárias, até mesmo porque a eleição é direta, e não por colégios, como nos EUA - o que impossibilita um mapa à semelhança daquele do NY Times. Contudo, é óbvio que neste país, reconhecido pela luta sem trégua contra endemias e pandemias e um trajetória modelar de campanhas de vacinação desde o início do século passado, com Oswaldo Cruz, os antivacinas não são tantos, mas multiplicam-se digitalmente - este o dado novo na comunicação político-eleitoral. (Por 'multiplicam-se' entenda-se um apenas tornar-se muitos, por meio de artifícios de informática; movimentam-se simulando um número muito maior do que realmente são). Serão eles os novos coadjuvantes virtuais da reencarnação da antiga fábula “O rei está nu“.
                                              ***
                         Dia 9 de outubro, 320 mil acessos!



 

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

IRERÊ, SOLTA TEU CANTO, CANTA MAIS, CANTA MAIS!

 


Dia desses
festejaram nas redes os cem anos de “Luar do Sertão”, cançoneta de Catulo da Paixão Cearense, nascido em São Luís em 1863 e falecido no Rio de Janeiro em 1943. (Se alguém quer saber por que um maranhense é chamado “Cearense”, eu explico: não era gentílico ou apelido, mas último sobrenome herdado do pai, Amâncio José Paixão Cearense, ele sim do Ceará). Toada em parceria com João Pernambuco, “Luar” é uma ode ao sertão brasileiro, em toda sua singeleza: “Não há, ó gente / ó não, luar / como este do sertão / (...) Esse luar da cidade tão escuro / não tem aquela saudade / do luar lá do sertão”.

Catulo e Pernambuco

A cantiga é de 1914
, conforme registros no Itaú Cultural, entre vários outros; portanto, em 2021 teria completado 107 anos. Há controvérsias, e não poderiam faltar: na parceria com João Pernambuco, Catulo teria sido autor da letra, e não da melodia. (Pernambuco criou também a obra-prima “Sons de Carrilhão”, hoje repertório mundial do violão, peça instrumental que evoca os sinos das igrejas). Catulo era poeta e autor de peças de teatro, além de compositor bissexto, e vivia do salário de servidor público. Esta opinião sobre a autoria de “Luar” era dividida por Villa-Lobos, Zuza Homem de Mello e Mozart de Araújo, entre outros. Para apimentar a discussão, Pixinguinha disse ter ouvido a melodia tocada no violão por Pernambuco, anos antes. Querelas que permanecem no ar, uma espécie de obra aberta, enigma de Capitu.


“Luar do Sertão”
foi o gancho para entrar no assunto da memória musical cada vez mais distante das novas gerações. Cantava essa toada para meus filhos menores apenas para distraí-los no trajeto de carro para a escola, assim como para embalar minha mais velha, quando ainda no berço, ao lado de “Travessia”, do Milton, e “Gatinha Manhosa”, do Erasmo. Por meio de canções simples e riquíssimas, como “Luar” e “Terezinha de Jesus”, introduzia os pequenos no mundo da música. Gostava do Guia Prático, do Villa-Lobos, uma compilação do que o maestro andara recolhendo em suas viagens pelo interior (publicação parece continuar esgotada. Felizmente, ainda tenho o meu surrado exemplar, de 1932).

Villa-Lobos na escola

O Canto Orfeônico
foi oficializado em 1931 no Distrito Federal com Villa-Lobos à frente, e ampliado para todo o Brasil na Reforma Capanema (1942). Em 7 de maio de 1946, o ministro da Economia e Saúde, Ernesto de Souza Campos, manda publicar no Diário Oficial do dia 14 a Portaria nº 300, que “aprova instruções e unidades didáticas do ensino do Canto Orfeônico nas escolas secundárias”.  Com o presidente Dutra em início de mandato, fora lançada a pedra fundamental, graças à luta de Villa-Lobos, para o ensino da música como disciplina escolar no Brasil. 


O material didático
da disciplina era de autoria do maestro: dois livros de solfejo, dois de Canto Orfeônico propriamente dito e alguns volumes intitulados Guia Prático, para piano e com as compilações das pesquisas de campo: Bela Pastora, Cai cai, Balão, Caranguejo, Capelinha de Melão, Pai Francisco e tantas outras! Os alunos aprendiam solfejo, os hinos Nacional e à Bandeira, em respeito ao nosso país e com discreto lucro político pelos governos – sem “apropriação ilícita dos símbolos da Nação”, expressão usada pelo Dr. Marcelo Válio em oportuno artigo no jornal O Progresso.


Em São Paulo
, em frente à minha casa, na Vila Mariana, havia uma EMEI (onde, aliás meus filhos estudaram). As aulas de canto já não mais existiam. Em seu lugar, um aparelho de CD em torno do qual as crianças, rijas como varapaus, dançavam nas festas juninas, ao som de um sertanejo híbrido mesclado com Jovem Guarda, pop e sei lá o quê. O caipira fora trocado por modismos, e a meninada sequer abria a boca! Nas datas cívicas, ou semanalmente, ao invés de cantarem perfilavam-se como em honra ao aparelho e apenas ouviam o Hino Nacional. Mataram a música nas escolas!

Fórum na Assembleia Legislativa

No dia 26/09/2003
foi criada a Frente Parlamentar pela Inclusão da Música no Ensino Escolar na Assembleia Legislativa de São Paulo. Tive a honra de ser indicado presidente, formalizando apoio ao PL 793/2003, do deputado Rodolfo Costa e Silva.  Muitas reuniões, debates, encontros com músicos e professores de música na plateia do Plenário, muito esforço dirigido à causa. Se, por um lado, a Frente por si já demandava uma luta desgastante, por outro havia entraves de ordem corporativista: por interesse pessoal, alguns forçavam a exigência do diploma de licenciatura ou conservatório ‘oficializado’ para professores, o que praticamente inviabilizaria o ensino musical nas então 5.500 escolas do estado. Faltariam docentes, além da perda de qualidade e de um contingente enorme de ótimos professores-artistas.


Sonhávamos o sonho de Villa-Lobos
. Segundo publicação da ALESP, eu havia dito que “Há diversos estudos que atestam o poder da música como elemento harmonizador e terapêutico, o que comprova sua importância para criar um ambiente de convivência, sem violência entre os estudantes - e as experiências em curso ratificam este pensamento". Porém, ao invés de se tornar realidade, nossos anseios sucumbiram aos entraves burocráticos, além das pressões corporativistas.

[Em tempo: “Irerê, solta teu canto, canta mais, canta mais!” vem do poema de Manuel Bandeira que é letra do 2º movimento da famosa Bachianas Brasileiras nº 5, para soprano e orquestra de violoncelos, de Heitor Villa-Lobos, a quem muito devem nosso folclore e cultura e musical por sua sobrevivência, mesmo que capenga.]