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sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

BRASIL, UM PAÍS DE LEITORES?

 


Eis um problema da competência de todos
. Se não há livros em casa, não se recebe esse incentivo dos pais no próprio lar, de onde surgirá o interesse pela boa leitura? As escolas, principalmente as públicas, que em geral abrigam os estudos dos alunos mais carentes, talvez sejam o principal caminho. Cada unidade pode ter sua biblioteca formada por doações espontâneas, campanhas oficiais, auxílio da comunidade e mutirões. Claro, é preciso que ao menos um professor em cada escola tome a liderança, com o apoio da diretoria,  levando os demais a se interessarem pela questão,


Fora isso, há programas
cujas origens remontam a 1929, quando foi criado o Instituto Nacional do Livro. Em 1985, surge o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) com o decreto 91.542 do presidente José Sarney. À parte o presidente ser autor de vários livros, a preocupação com a literatura veio no bojo de um conjunto didático. O PNLD depende de governantes e ministros: em 1990, durante a gestão de Collor de Mello, o programa suspendeu boa parte da distribuição de livros às escolas, e em 1992 restringiu-a ao período da 1ª à 4ª série do ensino fundamental, ou seja, algo bem básico para engordar outros setores da economia – sem entrar no mérito do destino das verbas. Em 2009, com Lula e com o impulso do prof. Fernando Haddad, da USP, ministro da Educação, o programa, via Correios, distribuiu 103 milhões de livros entre 140 mil escolas do Brasil, uma média de 735 livros por escola.  O PNLD disponibiliza obras didáticas, pedagógicas e literárias para todas as escolas públicas do Brasil, entre federais, estaduais e municipais. Para o segundo semestre de 2022, voltou-se a restringir a distribuição para apenas três séries do ensino médio.

Eslováquia

Que o Brasil não é,
definitivamente, um país de leitores, todos sabemos. Mas os números parecem enganar: em sétimo lugar, atrás apenas da Eslováquia, Malásia, Romênia, Tailândia, Espanha, Rússia e Turquia, 74% de brasileiros compraram ao menos um livro no ano (dados: Picodi). Trata-se, é bom dizer, de uma média aritmética simples, uma única operação. Fosse uma média ponderada, veríamos que há uma casta de apenas 6% de pessoas que compram livros ao menos uma vez por semana e outra faixa, de 46%, uma vez por mês, o que catapulta os resultados no geral, criando uma ilusão de que somos um “país leitor”, quando na verdade 31% nunca leram absolutamente nada. Em geral, 14% acham os livros muito caros, e 10% exorbitantes (fonte: MoneyTimes).


Os grupos de um e quatro livros por mês
(46% e 6%), grandes responsáveis pela alta média, não representam a realidade brasileira: os números de aquisições iludem, pois são distribuídos per capita, e incluem o universo de pessoas que não têm qualquer tipo de carne no prato, os inúmeros que passam fome e tantos que sequer sabem ler (o deputado da Assembleia de Minas Pedro Ivo, o Pinduca, gaguejou e não conseguiu ler seu compromisso de posse em 2015; logo no começo parou, largando o papel, e disse “o que importa é que eu estou aqui”. E o mais triste: faleceu no ano passado de Covid-19).


Em Boston e NY
pode-se notar os vagões de metrô cheios de pessoas com livros na mão: escolares, técnicos, acadêmicos e literatura. Em Londres, principalmente, dada a variedade religiosa da população, vê-se muitos livros sagrados como a Bíblia, o Torá e o Corão, lado a lado com a prosa e a poesia. Assim também é nas praças e outros lugares públicos. Geralmente, em âmbito da literatura, não leem muito boa coisa: são os chamados paperbacks (de capa mole, baratos), ou de bolso, com frequência best-sellers - aprendi com meu pai a manter um pé atrás com esses últimos, pois se vendem muito não devem ser coisa muito boa, dizia (mas o costume de ler em muitos países já é um trunfo).  Lembro-me dele dizendo: quer conhecer uma pessoa? Veja o que ela lê.

Metrô de NY

Os livros são o registro da história
, nossa cultura, o trabalho dos criadores, poetas, romancistas, biógrafos, e nunca serão substituídos por outros meios. Mesmo que hoje se possa ‘baixá-los’ até de graça em pdf em tablets, ou nos paperwhite (branco-papel), que têm a virtude de não emitir a nociva luz azul: minúsculos pigmentos de grafite se aglutinam para formar os textos sob a luz natural, como um livro de papel.  O problema maior que vem somar a essa falta de leitura do brasileiro é o smartphone, ou mesmo um simples celular, aparelhos em que os jovens usam uma taquigrafia de dois polegares para passar curtas mensagens em um dialeto tribal sem acentos: “pq vc naum vm k”? “Naum to di boa”, e por aí vai.


Não é a informática, em si, o problema
, pois no computador pode-se ler jornais, trabalhos científicos abalizados ou uma boa poesia. O celular, com seus programas Whatsapp, Instagram, Tik-tok e Telegram, este último na mira do STF pela possibilidade de descontrole em período eleitoral – a sede é em Dubai, o produto é russo e não respondem à imprensa, à Justiça, a ninguém. Nesses apps sociais tem domínio a preguiça, e além da taquigrafia tribal usa-se gravar mensagens, preservada sempre a norma de não ultrapassar dois minutos ou parcas linhas para não chamarem de “textão”, outro neologismo. Ter livros em casa força o leitor a erguer-se e ir à estante buscá-los, ler fontes confiáveis e ao ótimo costume de, na dúvida, consultar, retendo o possível na memória.  

Termino com uma boutade genial do comediante Groucho Marx: “Acho a TV muito educativa. Toda hora que alguém a liga, vou para outra sala ler um livro”.



 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

INFLAÇÃO: EU JURO QUE JÁ VI O MONSTRO!

 

Maluf e Tancredo (Brasil Escola)

Havia retornado dos EUA fazia pouco tempo
. Após aqueles anos, estranhava muita coisa, voltava a um Brasil que reassumia o curso democrático: veio a eleição indireta Maluf x Tancredo, sendo o primeiro um simulacro para a continuidade sem farda de um grupo do regime; o segundo, um civil representando a esperança do povo brasileiro, mesmo que via indireta, após 20 anos de regime de força. Tancredo morreu antes de assumir, em circunstâncias que até hoje suscitam dúvidas sobre a diagnose, bem ao sabor das teorias conspiratórias. O vice, Sarney, tomou posse, e apesar de egresso da antiga Arena, era um civil à sombra do Tancredo. Mesmo com todo o frenesi despertado pela morte do eleito, o vislumbrar da redenção dos brasileiros e a proximidade de uma democracia de verdade, dizia-se que os militares “entregaram a rapadura com uma bomba-relógio dentro”: a inflação. Figueiredo, o último deles, deixou de bandeja cheia o comando do país para Sarney, 15,06% ao mês.


Ainda assustado
, passei a compreender melhor a economia descontrolada do país e o mote ‘dinheiro parado, dinheiro perdido’. As contas a pagar eu levava, pela ordem do vencimento, em uma pasta de plástico com divisórias. Como não havia Internet e outras facilidades de hoje, ia ao banco saldar meus compromissos no dia certo, aos 45 minutos do segundo tempo. Havia uma espécie de aplicação financeira chamada overnight (‘durante a noite’) que chegava a pagar 1% ao dia, percentual hoje raro de se ver em um mês em investimentos similares. Como esse 1% era cumulativo, em 30 dias chegava-se a uma cifra nominal considerável – se esquecida a inflação estratosférica. Resumindo, deixar para pagar as contas no vencimento trazia aquela sensação confortante de “lucro” que, mesmo irreal, parecia ganho diante da desvalorização diária. Com o Cruzado, de 1986, o primeiro dos grandes planos fracassados, vieram os “fiscais do Sarney”.


Volta e meia eu proseava
com o grande maestro Eleazar de Carvalho, um homem de inteligência raríssima aliada à perspicácia do nordestino alçado a cidadão do mundo, respeitadíssimo no meio musical. Certo dia, saindo do ensaio, fui com ele tomar um cafezinho perto do teatro, e, preocupado com aquela verdadeira montanha-russa de altos e baixos entre aplicações e inflação, resolvi perguntar o que ele achava daquilo tudo. Como sempre tinha uma frase lapidar na ponta da língua, respondeu: nunca vi um país fechar, mas pode sempre haver uma primeira vez. (Claro, era uma frase hiperbólica, um exagero usado na retórica e na escrita - no caso, até surreal, mas uma franca confissão de desengano.)

Collor com PC e Zélia

Fui para casa refletindo.
Não, o país não fecharia – aliás, me confortava lembrar que se não havia “fechado” em 20 anos, não seria em mais um assalto do tropel galopante da inflação à sombra do retorno “lento, gradual e irrestrito” à democracia, como dizia o general Figueiredo, último presidente militar (1979-1985) - redenção que só aconteceria de verdade com a Constituinte de 1988, abrindo as janelas para o Estado Democrático, e a eleição direta de 1990, a primeira depois de 1961! Eleito Collor de Mello, malgrado o grande erro, e daí em diante com ele, seguimos em frente tropeçando em um novo tiro no escuro, o Plano Collor, dos confiscos bancários e do submundo do “tesoureiro” PC Farias, ironicamente ligado a um presidente que, dada sua suposta beata correição, era conhecido pela alcunha de “caçador de marajás”, e quase levou o Brasil a um estrago sem precedentes. Recebeu um país com hiperinflação para entregá-lo ao fim de 1992, após a renúncia, com 25,24% ao mês.


Veio um hiato, iniciado com Itamar em 1994
, quando foi criada a URV (Unidade Real de Valor) e logo deu-se início à desindexação monetária. A inflação já estourava em 46,58% a.m., e em julho daquele ano, sob a liderança de Fernando Henrique no ministério da Economia, veio uma nova moeda, em paridade com o dólar, chamada Real (BRL). FHC assume a presidência em 1995, e consegue manter a estabilidade da moeda, seguido em boa parte por Lula, Dilma e Temer.

Centrão (Gazeta do Povo)

Em sua posse, Jair Bolsonaro
recebeu uma inflação bastante razoável, 3,75% a. a. (IBGE). Porém, seria ingênuo debitar os números crescentes atuais apenas na conta do presidente. Dividem essa conta a conjuntura internacional e a pandemia, que sufocam a atividade econômica. Coadjuvantes são uma gestão errática, o índice do IPCA, em 10,06% a.a., seguido pela saltitante taxa básica de juros (Selic), ora em 9,25%, remédio com efeitos colaterais no afã de conter a maldita inflação. Não há política econômica, apenas projeta-se reformas disso e daquilo. Paulo Guedes não decide sem o aval superior, e teve seu raio de ação desviado para a Casa Civil do ministro Ciro Nogueira, do chamado Centrão, que passa a ter o poder de brecar as decisões da pasta da economia, controlando-a.

Chicago Boys com Pinochet, ditador do Chile 

Da mesma forma que seria ingênuo
debitar a inflação apenas na conta do presidente, também seria fazê-lo ao ministro da Economia, perdido entre as teorias liberais dos chamados “Chicago Boys” do Milton Friedman e uma retórica vaga e oscilante. Trata-se de um conjunto de ações que, desorganizadas em uma gestão confusa de per si, ameaça perder régua e compasso entre volumosos gastos públicos: esbanjamentos, mordomias, orçamento secreto, benesses salariais para setores privilegiados com vistas à reeleição e outras sangrias aos cofres públicos. Seja quem for, o eleito que ocupar o cargo em 2023 precisará de um grande ministro e muito boa sorte.

                                                                



sexta-feira, 14 de janeiro de 2022

O QUE VOCÊS FIZERAM NAQUELE 6 DE JANEIRO?

 


O que teria acontecido nos EUA naquele dia de 2021?
Um fenômeno de massas desencadeado de forma nunca vista no país enquanto república democrática! O que levou as pessoas ao descontrole, àquele ponto? São perguntas que historiadores e cientistas sociais ainda não conseguiram responder a contento – afinal, fenômenos de massa não são palpáveis, geralmente nem é possível contabilizá-los pela absoluta falta de meios. Porém, um caso isolado pode servir de amostra exemplar do todo pela parte, peças que refletem como pequenos espelhos o quadro geral do acontecido.

A denúncia contra Bancroft

Uma amostra poderia ser Dawn Bancroft
, pacata eleitora republicana da Pensilvânia, proprietária de um estabelecimento de fitness que por impulso resolveu viajar até Washington, D. C., capital do país, seguindo afoita o brado de Donald Trump, derrotado nas eleições presidenciais americanas: “lutem com todas as suas forças!” Junto com uma amiga, chegou à Constitution Ave., e tendo a pressão da massa ensandecida como elemento contaminador de seus instintos mais reprimidos, com ela atravessou uma vidraça espatifada e invadiu o Capitólio, sede das casas legislativas do país. Segundo o The Economist (7/01/22), elas estavam “à caça” de Nancy Pelosi, então líder do partido Democrata e presidente da Câmara dos Representantes após a posse de Joe Biden, "para meter uma bala na cabeça dela, mas não a encontramos”. Saldo: 5 mortos e mais de 100 policiais feridos.


Disse o jornal que, diante do juiz Emmert Sullivan
, Bancroft reconheceu sua culpa na invasão. O magistrado suscitou uma questão estarrecedora: o que faz gente de bem, que nunca teve problemas com a lei, de repente transformar-se em terrorista? (Lembra o título da obra Pergunta sem Resposta - Unanswered Question -, do norte-americano Charles Ives composta em 1908). Todas as atitudes coletivas podem ser bem analisadas, mas nunca esclarecidas; no campo psíquico podem ser investigadas à luz de Carl Jung (1875-1961), ligado a Freud, que via dois segmentos no inconsciente: o pessoal e o coletivo. Este último seria o “conjunto de imagens primordiais, representações coletivas que são heranças de geração e que constitui os traços coletivos verificados no interior do psiquismo de cada indivíduo (...), imagens a que deu o nome de arquétipos (...), que não são jamais conscientes e não proveem de uma experiência pessoal do indivíduo”. Esses arquétipos são sempre inconscientes, “exprimem-se por símbolos que chegam ao consciente e podem invadir os sonhos ou se traduzir em mitos” (in Apoio às Disciplinas, USP).


A pergunta do juiz Sullivan
no caso Bancroft continuará sem resposta, mas as explicações de Jung sobre o inconsciente coletivo esclarecem até para nós, leigos no assunto, onde se encontra o cerne da questão, e se não trazem respostas ao menos lançam uma luz clara sobre o inconsciente coletivo no comportamento das massas: “esses arquétipos chegam ao consciente e podem invadir os sonhos ou se traduzir em mitos”. (O excelente dramaturgo e frasista Nélson Rodrigues, assumidamente de direita, proferiu uma lapidar: “a massa é ignara”).

Corpos de Benito e Clara

O inconsciente coletivo
pode levar a grandes convulsões, distúrbios de massa como o linchamento de Benito Mussolini e sua amante Clara Petacci, que terminaram pendurados pela turba de cabeça para baixo em uma viga de um posto de gasolina, como fossem bois abatidos em um açougue. Na famosa música Devoção ao Demônio (Sympathy for the Devil), dos Rolling Stones - que Mick Jagger diz ser um “samba” influenciado pelo Candomblé da Bahia, onde o grupo ficou por semanas -, ilustraram com o demônio esses arquétipos humanos: “Eu estava lá, em São Petersburgo / quando vi que era hora para mudança / Matei o Czar e seus ministros / Anastasia gritou em vão / (...) Eu gritei: quem matou os Kennedys? / Quando afinal fomos eu e vocês”.

O monstro do Lago Ness

O inconsciente coletivo potencializa forças
, destila o ódio nas veias ou, como me disse um velho russo: faz a urina subir à cabeça. E há sempre o fanatismo e a ocasião para acionar o detonador no momento propício para agir: elas precisam ouvir algo como uma voz ecoando na revolta trancada na profundeza de suas mentes: “lutem com todas as suas forças!”, brado de Trump, estopim que incendiou as supostas fraudes nas urnas de votação – foi o estímulo que apontou evidências inexistentes de manipulação, tentativa frustrada de alcançar a vitória “na marra”. O que queria o então presidente, conclamando aquela invasão ensandecida e abilolada, sabendo que poderia desencadear um morticínio sem proporções? Outra vez uma incógnita, pois os desígnios de extremistas descontrolados são impenetráveis. Sabe-se também que é necessária uma liderança com energia suficiente para fazer emergir, tal como o monstro do Lago Ness, o intangível, o quase sobrenatural, que satisfaça sua volúpia e abra espaço para seus sonhos e pesadelos: é fundamental criar o caos, grande aliado no erguimento de um Estado de fanáticos.


CNN, 10/12/2021
: “Eleitores que acham que Trump venceu são os mais entusiasmados para votar em 2022” (para o Senado). “Por uma vantagem de 74% contra 25%, republicanos e independentes com tendência republicana dizem que Joe Biden não obteve votos suficientes para vencer a eleição de 2020 legitimamente”. A ocasião, a arma e os motivos – ainda que falsos – deverão estar presentes outra vez na eleição presidencial de 2024, e a decantada democracia americana será colocada de novo à prova, servindo de exemplo para o mundo.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

RETROSPECTIVA INTROSPECTIVA E O BANQUETE DOS MENDIGOS

 


TVs, jornais, revistas, Internet. Por todos os meios, nos últimos dias do ano passado houve uma avalanche de retrospectivas, depoimentos ou flash-backs, como se dizia dos trechos de antigos filmes lembrados no presente. Em sua primeira acepção, O Houaiss define retrospectiva como “uma exposição em que se apresentam as obras de um artista, de uma escola, com perspectiva histórica, mostrando a respectiva evolução <o museu fez uma r. da obra de Lasar Segall>”. Interessante definição, além da costumeira a que me referi no princípio, até porque temos visto mais um retrospectivo (s.m.), “relativo a fatos passados; que se volta para o passado” - desde o advento da telinha, um flash-back picotado do que se foi com o ano velho.


Quem nasceu de quem
, quem morreu entre as ‘celebridades e famosos’, especialmente em tempos de pandemia, deram o tom dessas coleções de ‘quadros em uma exposição’, que depois começam a se diluir nas névoas dos dias, meses e anos. Houve o que se pinçar entre uma coisa boa aqui e outra ali: feitos olímpicos, medalhas, maratonas, casamentos de ricos e famosos (feitos ou desfeitos com  estardalhaço pela mídia). O cidadão comum, excluído, é o pobre neste rol de assuntos, as alegorias de que contarei a seguir.


Tudo lembra O Banquete
, obra derradeira e inacabada de Mário de Andrade da década de 40. No livro, o autor faz um contraponto entre os pratos estrangeiros, sedutores e muito vistosos, e os nacionais, talvez de maior riqueza em sabor, mas de nem tão atrativo glamour. Trata-se de um paralelo com o que acontecia musicalmente na época, quando Andrade pedia que os compositores ‘transpusessem’ elementos do folclore nacional à música de concerto. No banquete, degustavam e comentavam sobre música quatro entre cinco convidados: a anfitriã, apreciadora das manifestações artísticas, uma cantora famosa, um político benfeitor das artes e um compositor esquecido e pobre.


Ópera do Mendigo
é o título em português para The Beggar’s Opera, de John Gay (1724) – também título e capa de um álbum dos Rolling Stones de 1978 -  dois séculos mais tarde adaptada por Bertold Brecht e Kurt Weill como A Ópera dos Três Vinténs (1928), sempre tendo como fio condutor a discrepância entre as classes sociais e o fruir artístico – banquete não muito diferente em sabor filosófico do descrito pelo nosso Mário de Andrade. O assunto também ressurge com Chico Buarque (Ópera do Malandro, 1978).


Os banquetes jornalísticos
de encerramento do ano serviram-nos de tudo, com escassos pratos finos e iguarias apetitosas, porque houve muito mais tristezas, acidentes, doenças, mortes, catástrofes nas mesas simbólicas das telas e monitores. Em várias retrospectivas parece que nos ofereciam a parte dos mendigos no banquete, e não a da finesse, que terminou por não se sobressair perante os vendavais negativos por que passaram o mundo e o país. No réveillon, descortinou-se um novo ato da ópera da vida: fogos de artifícios ao redor do mundo iluminaram esperanças, a fé em tempos melhores e na cura, se não para todos os males, ao menos para os que mais nos afligem e amedrontam, e que ameaçam tomar-nos o que temos de mais precioso neste banquete: nossas próprias vidas e as dos que nos são mais próximos.


Contra a ameaça de variantes
arrasadoras da Covid, exaltou-se a ciência das descobertas, vacinas de diversos tipos em vários centros do mundo fazendo o que era angústia e medo transbordar em lágrimas de felicidade nos olhos, no instante mágico da inoculação. Sim, elas foram as protagonistas da grande ópera de 2021, e continuarão sendo em 2022. Depositemos nos cientistas, vacinas e medidas protetivas nossas esperanças e a imensa fé no porvir – que, não curiosamente, também serve de alívio para a amargura dos esfomeados, vítimas de incêndios, alagamentos e outras catástrofes. As vacinas inocularam corações e mentes com esperança por dias melhores, além de protegerem nossas vidas na forma do controle ora possível pelas mãos de profissionais abnegados – cientistas, médicos, enfermeiras e técnicos. Entre tantos infortúnios, pensando na vacina como o “biscoito fino” - expressão do velho Mário de Andrade - a que o povo tem tido acesso, providencialmente serviu-se à mesa para que todos tenham sua cota de iguarias e a possibilidade de degustar o que é lhes justo e de direito. Devemos isso ao Sistema Único de Saúde, criado pela Constituição de 1988 à imagem e semelhança do NHS britânico do pós-guerra, sistema que nos provê bálsamo e salva-vidas, apesar do descaso e da inoperância dos que têm por obrigação mantê-lo.


Haveremos de varrer para trás
o que ficou de ruim e buscar esperanças, abrindo caminho para o ano que se apresenta em longa e árdua batalha pela frente. Onde houve trevas, que surja a luz, onde faltou pão que haja o que comer - seja por lídimo direito ou pelo exercício da solidariedade entre os homens, a chamada fraternidade. Contra as guerras, que sejam ouvidos os clamores pela paz e flutue aos quatro ventos a bandeira branca nas mãos de todos; se males foram perpetrados pelo apetite incontrolável de tiranos, poderosos e bandidos insaciáveis neste grande banquete passado, que no futuro sucumba diante daquilo que é predestinado por Deus e pela natureza para vencer e consolidar um mundo melhor: o bem.



Diante de todo o dito ou não dito, concluo lembrando uma celebração meio esquecida: 1º de janeiro foi o Dia da Fraternidade Universal! 

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