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sábado, 30 de abril de 2022

PARA ENTENDER O FENÔMENO ANITTA

 

Honório Gurgel

Nascida Larissa de Macedo Machado há 29 anos, a cantora, dançarina, compositora e empresária adotou o nome artístico Anitta, mais simples e de fácil memorização, inspirado na minissérie da TV A Presença de Anita e de quebra no ícone Lolita, adolescente desejada por um professor no livro de Vladimir Nabokov (1955). Em 2012, obteve seu primeiro sucesso comercial com Meiga e Abusada; tornou-se conhecida nacionalmente em 2013, aos 20, com o hit Show das Poderosas, assinou com a Warner do Brasil e a partir daí só colecionou sucessos. Uma vocação que surgiu cedo nos cânticos religiosos em uma igreja católica de Honório Gurgel, zona norte do Rio. Abriu as portas do público latino nos EUA, incluindo parcerias com os Black Eyed Peas e Madonna, e chegou ao mercado dos países de língua espanhola e da comunidade latino-americana.

"Tonight Show"

Anitta não é a moça pobre de uma comunidade que chegou ao topo do sucesso por sorte ou apadrinhamento. Passou por um estudo técnico de administração, aulas de dança e cursos intensivos de inglês e espanhol, preparando-se para o futuro: no programa Tonight Show, de Jimmy Fallon, lançando o hit Boys don’t cry, lapidou-se para enfrentar o público especial de Coachella, na California, o maior festival de música pop do mundo. O que mais impressionou naquela entrevista foi o inglês fluente e a perfeita compreensão das perguntas feitas pelo apresentador. No programa La Resistencia, de uma TV espanhola, Anitta foi elogiada pela perfeição no idioma, em entrevista que obteve mais de 5 milhões de acessos. Seu recente single “Envolver” encabeçou a lista dos “top 50” no Spotify, e a Billboard a colocou entre “uma das celebridades mais influenciadoras na mídia social” do mundo. A essa altura, Anitta já tinha conquistado diversos prêmios e distinções, e desfrutava de trânsito livre na comunidade internacional.

Em Coachella, Palm Springs

O festival pop de Coachella em Palm Springs, na California, recebeu Anitta com entusiasmo. Reservaram-lhe dois dias especiais no evento, 15 e 22 de abril, duas sextas-feiras, em horário privilegiado, 22h, e já no dia 15 cumpriu sua promessa de levar o chamado “funk carioca” para o mundo. Cantou um pot-pourri de seus sucessos e revelou seu lado ativista: subira ao palco na garupa de uma motocicleta com collant verde, amarelo e azul, assim como diversos bailarinos, chegando a fazer uma breve preleção sobre o uso das cores da bandeira brasileira, dizendo que elas não têm dono, pertencem a todos – um claro recado aos que fazem uso partidário apropriando-se de um Símbolo Nacional. Imensos painéis eletrônicos e atores no palco mostravam um país real, a pobreza na comunidade, tudo o que se costuma encobrir com imagens lindas das praias cariocas, do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar – que, por ironia, não era figura na apresentação, apenas fundo. Não mostrou o país tipo exportação, mas o Brasil real, sua origem, berço e local de criação.

(Soundhound)

Anitta abriu o show com Onda Diferente, tendo o parceiro de estúdio Snoop Dogg para acompanhá-la. A seguir, um séquito de bailarinos tomou o palco e, para gáudio da plateia latina, ela começou a cantar Me Gusta. Houve uma breve performance de capoeira, e após troca rápida de corpete apresentou seu hit atual, Envolver, do álbum Versions of me (Versões de Mim), lançado dias antes. A famosa e histórica revista norte-americana Rolling Stone não poupou elogios: “destemida, divertida e audaciosa”, dizendo ainda que Anitta leva a música brasileira ‘a patamares inéditos’”. Pode-se acreditar que a cantora chegou ao topo da carreira ainda um pouco nova, estourando em Lollapalooza e Coachella .

Geraldo Vandré

Não sou fã - talvez ouvinte ocasional - da Anitta, mas aprendi a respeitá-la e admirá-la como artista e empreendedora. Tudo o que ela faz reverte em sucesso, e isso, independentemente de preferências musicais, é assombroso. Críticas gratuitas não lhe atingem a performance, e sequer a simplicidade melódica e harmônica pode ser dita falha no contexto em que ela se situa. Se as harmonias contêm apenas coisa de dois ou três acordes a questão é do gênero, palavras percussivas baseadas principalmente no ritmo e na dança. Quanto aos poucos acordes, a ótica crítica levaria para o brejo todo nosso folclore, a música de raiz, os cantadores, o partido alto, o rock’n’roll, a folk music. Pra Não Dizer Que Não Falei de Flores, do Vandré, tem apenas dois acordes, e levantou multidões: o que interessava no caso era a letra, seguindo a regra “poesia complexa, música simples, música complexa, poesia simples”, deixando o recado bem claro; já em Anitta sobrepõe-se um terceiro elemento: a dança, o gingado, a coreografia. A complexidade musical e poética não tem relevo no contexto mais amplo da cantora.


Anitta é um fenômeno e é como tal que devemos vê-la. Há um grande público a aplaudi-la, agitando o corpo num ritmo sacolejante (o grande George Clinton, ícone do funk americano, dizia “sacuda seu traseiro e sua mente seguirá”). Conquista seus louros para o Brasil em um segmento das massas, do povão, mas tem pouco acesso às  elites econômicas e culturais – e nem por isso deixa de possuir grandes méritos, incluindo ter opinião política. Atitude rara entre artistas, chegou a se oferecer para pagar a multa de 50 mil imposta por uma frágil - e felizmente efêmera - decisão do TSE aos artistas que se manifestassem politicamente no festival de Lollapalooza, no Rio. Anitta é uma artista paradoxal, imprevisível e multifacetada, um caleidoscópio das versões de si mesma.



 

sábado, 23 de abril de 2022

O HOMEM E SEUS SIGNOS

 

Olavo Bilac

Símbolos Pátrios são a Bandeira Nacional, as Armas (ou Brasão), o Selo e o Hino Nacional - em cujo início, na segunda parte da letra, há uma menção literal à ideia: “Brasil, de amor eterno seja símbolo / o lábaro que ostentas estrelado” (música de Francisco Manuel da Silva, 1831, e letra de Osório Duque Estrada, oficializada há apenas 100 anos, em 1922). No Hino à Bandeira a palavra aparece cinco vezes, desde o princípio: “Salve lindo pendão da esperança / salve símbolo augusto da paz”. A letra é de Olavo Bilac e a música de Francisco Braga.


Existem os logotipos
, logomarcas ou simplesmente logos, que identificam uma marca, um produto, uma empresa. Servem à rápida comunicação visual e identificação do objeto ou coisa que simbolizam. Toda boa empresa tem o seu nos papeis, na fachada do prédio, nas propagandas. Criancinhas de colo reconhecem facilmente os logos das empresas que vendem seus lanches e refrigerantes favoritos, sem precisar ler o que está escrito.


Muitos anos atrás
, uma experiência nos EUA trocou em alguns trechos um dos 24 quadros pelo logo de conhecida marca de refrigerante. Sequência que compõe cada segundo de um filme, a 24 quadros por segundo não há uma percepção objetiva, apenas subliminar, ou seja, que não se chega ao limiar da consciência. Um perigo? pensaria o leitor. Sim, com certeza, haja vista que após aquela sessão de cinema houve uma corrida ao estande do refrigerante cujo logo passou na fita por uma fração de segundo algumas vezes, sem ser notado.


Logos políticos
são marcas dos poderosos. A Swaztika (suástica) nazista, inspirada em um símbolo religioso muito antigo da Eurásia, representava divindades. Trazia as pontas ‘girando’ para a esquerda, e até 1930 era chamada Sauaztika.  Com o nazi-fascismo, o ‘giro’ mudou para a direita, passando a chamar-se Swaztika. Um arremedo de suástica foi o emprego da letra grega sigma, uma espécie de “E” quebrado no meio, enquanto o líder do Integralismo brasileiro, Plínio Salgado (1895-1975), bradava “anauê”, saudação do grupo, mais alinhado com o fascismo italiano do que o nazismo alemão. Mas a foice e o martelo são um símbolo sem dubiedades: a primeira representava o campesinato e o segundo a classe operária urbana, supostamente os trabalhadores da construção de um socialismo utópico a ser conquistado pela força – ideia hoje bem descaracterizada.


Há signos corporais
, como esticar o braço direito levemente acima do ângulo reto, gesto-símbolo do nazismo; seu equivalente fascista era o braço direito erguido para o alto. Os brasileiros integralistas o faziam de maneira parecida, mas com o braço levemente dobrado. Aos dedos: a mão fechada com o mínimo e indicador erguidos é própria do heavy metal, mas na superstição é a “mão carnuda”, que traz coisas boas, facilita engravidar. Indicador e médio em “V” para cima simbolizam vitória; de lado, surgiu nos movimentos da contracultura dos anos 1960 como sinal de paz, mas nos dias de hoje é um singelo “joinha”. O punho cerrado com braço erguido significa luta e resistência, como entre os negros americanos; já um “o” feito com as pontas do indicador e do polegar, nos EUA é sinal de ‘OK’ – ou dos supremacistas brancos -, mas no Brasil não é nada bem-vindo. A mão fechada com o polegar entre indicador e médio é a figa, atrai boa sorte, já o dedo médio esticado é ofensa em qualquer lugar. (Mãos fechadas e em linha, esquerda à frente, com os indicadores retos e polegares erguidos, apontando para baixo, simulam a posição de uso de armas pesadas e de grosso calibre, gesto armamentista característico da nova extrema direita brasileira).

Jung e seus discípulos 

A ideia deste artigo
surgiu do livro do psicanalista Carl Jung publicado em 1964 com o título Man and His Symbols (O Homem e Seus Símbolos), escrito pouco antes de sua morte, em 1961. Jung escreveu a primeira parte e seus orientandos as quatro outras, após sua morte: Chegando ao Inconsciente (Jung), Os Mitos Antigos e o Homem Moderno (Henderson), O Processo de Individualização (Franz), O Simbolismo nas Artes Plásticas (Jaffé) e Simbolismo em Uma Análise Individual (Jacobi).


Há no livro pensamentos magníficos
, como “Apesar de reivindicarmos orgulhosamente termos dominado a natureza, ainda somos suas vítimas porque não aprendemos a dominar a nós mesmos”. São essenciais as imersões nas teorias junguianas sobre os sonhos, a psique (mente, espírito) e os arquétipos (modelos ou paradigmas).


O ser humano se comunica por símbolos
: a fala, idiomas, sons, sinais e gestos, como o leve erguer da mão direita da Rainha Elizabeth e a bênção do Papa. Há o aceno de adeus e o ‘vem cá’, flexionando os dedos para dentro. O polegar para cima diz ‘positivo’, e para baixo, como fazia César, seria indicativo de que na arena o cidadão deveria ser morto. O indicador faz o j’accuse (eu acuso), ou aponta ‘este aqui’, exibindo uma suposta certeza.


Símbolos, signos e sinais
dividem suas origens latinas e formas de comunicação humana, mas delas talvez a escrita seja a ferramenta mais significativa. Dos grandes mestres, aprende-se em silêncio, numa generosa proximidade com o exercício da sabedoria, em sua doce plenitude de imersão. A escrita persiste enquanto o material empregado resistir ao tempo, sejam hieróglifos, aramaico, árabe, cirílico, celta, hebraico e outros. É escrevendo que o ser humano se comunica com o futuro, e ao chegar à literatura transcende o agora. Diz o provérbio latino verba volant scripta manent: palavras voam, a escrita permanece.

sexta-feira, 15 de abril de 2022

EM BUSCA DO DIALETO PERDIDO

 

"viuvinha"

Recentemente,
a Drª Lívia Carolina Baenas Barizon publicou um trabalho, objeto de matéria no Jornal da USP intitulada “Dialeto caipira do interior paulista está caindo em desuso, aponta pesquisa” (01/04/2022). Diz o artigo que “estudo mostrou convergência semântica” do modo de falar dos interioranos com o galego, e ressaltou que, especialmente entre os jovens e as mulheres, há uma tendência de queda no uso desses ‘dialetos’ típicos das cidades e campos do interior paulista (há um “Atlas linguístico galego”, disponível online). Na região do rio Tietê – antigo rio Anhembi -, há curiosidades semânticas saborosas, como “viuvinha”, para o terçol no olho, e “os quartos”, para os quadris femininos.

(turis.com.br)

Genericamente falando
, o aipim – em tupi, ‘o que brota do fundo’ -, como é conhecido em muitas regiões, também surge com os nomes de mandioca (às vezes acompanhada das palavras ‘doce’ ou mansa’), macaxeira, macaxera, macachera ou maquaxeira, desde a ‘descoberta’ do aipim tupi, em 1.576, até a consolidação das variantes, c. 1.777. A pesquisadora aponta as correspondências do vocabulário caipira com o léxico galego, oeste da península Ibérica (Portugal e Galiza). Lembra as catequeses e tropeiros, e ressalta que a água do rio Tietê corre para dentro do continente, o que colaborou para o estabelecimento do idioma português e, depois, do linguajar caipira, já no princípio do século 18. O Tietê deságua no rio Paraná, junto ao Mato Grosso, dando rumo aos bandeirantes que saíam da capital não apenas para desbravar, como dizem os livros de história, mas para levar consigo ouro e gemas preciosas.


Em algumas cidades
, preserva-se com carinho o dialeto local, e cada vez mais só entre os idosos. Uma divertida publicação de Cecílio Elias Netto, “Dicionário do dialeto caipiracicabano - Tarco, arco, verva” (‘talco, álcool, velva’, de ‘água velva’), já na sexta edição, lista quase 1.500 verbetes do rico vocabulário da região. Orgulham-se de sua cultura a ponto de o decreto municipal nº 16.766 declarar dialeto e sotaque locais “patrimônio histórico e cultural imaterial” da cidade. Foi o escritor Thales de Andrade quem criou o gentílico “caipiracicabano”, natural da terra do bom cururu (improviso cantado por duplas com viola). Falando na cidade, cabe lembrar que a atriz Luana Piovani, filha “pé vermeio” da terra, disse ter tomado aulas de “carioquês” para poder atuar em novelas da TV. Com um forte sotaque “paulistês”, não daria para representar uma carioca, 9 entre 10 personagens da telinha; as raras tramas com dialetos e sotaques nordestinos ficam por conta das poucas gravadas na Bahia ou no Nordeste, em geral, e soam geralmente forçados.


Sobre o dialeto caipiracicabano
, prefaciou o professor e ex-reitor da Unicamp, linguista e poeta Carlos Vogt: “O que parece simplesmente pitoresco, hílare ou até mesmo chulo, dependendo da óptica de quem o leia, na prática remete a um outro tempo, daqueles que povoaram esta região, a outra compreensão da vida, a uma outra forma de amar, de trabalhar, de explicar o que ocorria à sua volta”. Essa prática dos tempos de antanho de que fala Vogt pode ser ouvida em outras cidades da região, como Tatuí, Cesário, Cerquilho, Iperó, Salto, Tietê e várias outras. É essa fundamentalmente a cultura enraizada na região, abraçada a manifestações típicas como o cururu, a catira e a moda de viola.

Filme "Apertem os cintos"

Ricas diferenças
acontecem com palavras como mexerica, pixirica ou simplesmente tangerina. Variam conforme regiões e estados do país, e são parte do imenso vocabulário da língua portuguesa brasileira. Entre estados, só para falar em São Paulo e Rio, há o dialeto italiano do bairro do Bixiga, na capital paulista, e o frequente “adevogado”, sem o “d” mudo; há o jeito carioquês de falar “tisôra” e “sufá”, por exemplo, e em Minas há um dialeto mais taquigráfico, que encurta palavras: “as menin trusseros convits da fes?”


Não é prerrogativa brasileira
, claro. Meu netinho inglês aos 5 já corrigia o sotaque americano da mãe: “no, mum, it’s not uórer, it’s uôter”, carregando no modo britânico de falar water, água. Quando as treze colônias foram estabelecidas nos EUA pelos ingleses, tinham suas culturas próprias, que resistem até hoje: conversas em Manhattan (NY) ou no interior da Virginia, no sul, soam bastante diferentes. Há dialetos como o jive” da comunidade negra das grandes cidades, principalmente onde acontecem o jazz, o rap, o hip-hop, e muito pouco compreensível para quem vem de fora. (No filme “Apertem os cintos, o piloto sumiu”, de 1980, duas freirinhas passam entre as filas de poltronas em um voo quando, por alguma razão, uma delas tem de responder a um cidadão sentado, típico da contracultura negra nova-iorquina. Sem entender nada, uma pergunta à outra: você fala jive? A colega de batina passou a traduzir a conversa).

(Jornal Arte 3)

Há dialetos próprios
de quem quer camuflar uma conversa, como o do PCC, os das comunidades de drogados, os dos indígenas já meio aculturados, e há os dos ‘smartphones’, da taquigrafia digital do Telegram, Tik Tok, Zap e outros - por economia de tempo, preguiça ou ignorância. Mas é uma tristeza vermos expressões caipiras, entre outras, sucumbirem ao idioma “correto” da TV. Como constatou a Drª Barizon, os homens idosos são menos afetados pela mídia nessa homogeneização – ou pasteurização - idiomática. As diferenças revigoram a cultura brasileira, e é bom respeitá-las, pelo bem da riqueza nacional.

Deschaveia a boca, xé, dá pra assuntar pra mais de metro!

 

sexta-feira, 8 de abril de 2022

MPB, ROCK, POLÍTICA E CENSURA

 


A Música Popular Brasileira
há muitas décadas tem sido veículo de manifestação de opinião na voz de seus artistas. Quem costuma ser ouvido por milhares sabe que seu papel na sociedade vai além do de entertainer: é formador de opinião, e o público espera que seus artistas favoritos compartilhem suas vida em todos os aspectos: comportamento, vestiário, ginástica, expressão verbal e seu pensamento político. O público se inclina para o artista que mais se adequa aos seus gostos, e tende a se envolver no pensamento de seu modelo, o que tem acontecido desde os primórdios da nossa música popular.

Mercedes Sosa

A relação músico-política não é exclusividade brasileira
, claro. Ela existe nos EUA, nos países da Europa, no Japão e muitos outros, além dos latino-americanos, especialmente o Chile e a Argentina, de longa tradição. Do primeiro, a badalada Violeta Parra, que no Brasil chegou a gravar sua Volver a los 17 (Voltar aos 17 anos) com Chico Buarque, Caetano, Gal Costa, Milton Nascimento e Mercedes Sosa, egressa do folclore argentino. Grupo de protesto, por excelência, é o chileno Inti-Illimani – Inti: “sol” entre os indígenas quéchuas, e Illimani, “águia dourada”, entre os aimarás. Autores de Canto de Resistencia e Hacia la Libertad, do período 1975-1977, auge da ditadura de Augusto Pinochet, que deixou um rastro de sangue e tortura, a exemplo do campo de concentração improvisado no Estádio Nacional de Santiago, por onde passaram mais de 40 mil pessoas em condições sub-humanas, muitas sob tortura. Foram ao menos 400 assassinatos em massa, conforme divulgado em todo o mundo. ‘La Cancha Infame: a História da Prisão Política no Estádio Nacional do Chile’, do historiador Mauricio Brum, registra que mais de um terço dos 40 mil presos sequer tinham relação partidária, o que mostra que a repressão atuava como metralhadora giratória no país andino.




Não havia outro caminho para a manifestação do artista,
se não por coerência com sua missão como pessoa pública, ao menos como boca aberta contra o regime. No Brasil, chegamos a ter oficiais de plantão para a MPB, ceifando com um certo prazer sádico a criação de artistas de diversas tendências. Talvez dos mais conhecidos da lista seja Chico Buarque, cujo histórico passa por coleções de alegorias, metáforas, eufemismos e figuras de linguagem diversas para escapar da tesoura. Exemplos dos vetos são muitos: Apesar de Você, Cálice (com Gil), Milagre dos Peixes, Construção e Gota d’Água. Adotou o pseudônimo Julinho da Adelaide, e chegou a ser bem sucedido algumas poucas vezes, escapando do crivo do censor de plantão.


No festival de Woodstock
(1969), tudo era livre. Mais de 400 mil pessoas puderam desfrutar da melhor música pop e rock da época, incluindo Joan Baez, cantora de protesto que emocionou a todos com sua homenagem a Joe Hill, escritor e compositor fuzilado em 1915 no estado de Utah. Houve momentos em que não faltaram palavras de ordem contra Ronald Reagan, então governador da Califórnia, que em 1981 se tornaria o 40º presidente da República dos EUA. O binômio que dominou os três dias foram paz e amor, mas para muitos foi generalizado como “sexo, drogas e rock’n’roll”. Ninguém queria mal algum, ao contrário da recente invasão do Capitólio, em Washington, DC, onde um bando de loucos ensandecidos ligados a movimentos do extremismo fascista americano tentou derrubar o resultado de uma eleição.


Há alguns dias, o Brasil ficou estarrecido
quando o ministro Raul Araújo, do TSE, acatou pedido de liminar de um partido político a fim de proibir manifestações de qualquer tipo sobre candidatos à presidência e afins – gesto censório digno de tempos já vividos no país. Estabeleceu ainda multa de 50 mil para a organização do festival Lollapalooza, em caso de qualquer manifestação política. Na noite de 28/03, Araújo revogou a própria liminar e a multa a ser imposta em caso de desobediência. Monica Bergamo, da Folha, informou que na decisão o ministro responsabilizou o impetrante pela tentativa de censura. Esse vaivém mostrou como são obscuras as ações sobre certos temas: ao deferir a liminar, no despacho, o magistrado declarou que o fazia "com base na compreensão de que a organização do evento promovia propaganda política ostensiva estimulando os artistas" (a se manifestarem politicamente) – Conjur (Consultor Jurídico, 29/03). A organização seria apenada pelo suposto “estímulo”, e os artistas censurados em seu direito de manifestação.

Ainda segundo o Conjur, “na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.970/21, o Plenário decidiu que os dispositivos que vetam showmícios (apresentações voltadas à promoção de candidatos) são constitucionais, mas que esse veto não impede que artistas manifestem suas opiniões políticas em apresentações próprias”.

6 jan 2021: invasão do Capitólio

Profissionais expressam suas opiniões
e às vezes até mesmo apoios e preferências político-eleitorais em inúmeros canais de TV, todos os dias. Contudo, segundo a ótica do impetrante e do ministro que acatou o pleito contra o festival, não o poderiam fazê-lo no seu papel de artistas, em público. Por quê? Por medo de que um sadio festival de rock e MPB se transformasse em um “remake” às avessas da invasão do Capitólio em 6/01/21?

sexta-feira, 1 de abril de 2022

CANÇÕES DE GUERRA, CANÇÕES DE PAZ, SILÊNCIO

 


São muitas as canções de guerra
, das que falam dela até, creia, as que lhes tecem loas. Sobre essas últimas, vem-me logo à cabeça Bandiera Rossa, cantada pelos radicais comunistas italianos: “Avante, povo, façamos greve / viva Stálin, viva Krushev”. A melodia lembra canções da Lombardia e a letra, de Carlo Tuzzi, tem o espírito da Rússia pré-revolução de 1917. Os radicais e anarquistas estavam impregnados por ideias que faziam soçobrar o mundo, certo comunismo redentor, que levaria os trabalhadores ao Paraíso.  Com direito a blasfêmias: “à meia noite, céu estrelado / o Santo Padre estará enforcado”.

(Óleo de Delacroix)

A Marseillaise, composta por Rouget de Lisle
(1792), após as lutas que culminaram com a queda da Bastilha (1789), era um grito de guerra, conclamando - assim como os radicais italianos viriam a fazer muito depois com Bandiera rossa - à guerra e à vitória. Canta a Marseillaise “Avante, filhos da Pátria / o dia de glória chegou” – não sem expor certa gana: “a bandeira ensanguentada está erguida (...) Que o sangue impuro banhe nossos campos (...) que teus inimigos, agonizantes, vejam teu triunfo e tua glória”. Canção revolucionária, foi banida durante o império de Napoleão, mas depois tornou-se - e até hoje é - o Hino Nacional francês, mas com apenas duas estrofes e dois refrões (a letra original é longuíssima). 


Do pacifista John Lennon
é uma linda música de Natal, Happy Xmas – the war is over (“Feliz Natal, a guerra acabou”): “Um Natal muito feliz / e um alegre ano novo / esperemos que seja um bom ano / sem medo algum”.  Entremeando a alegria do Natal - o chamado Christmas spirit -, mensagens de esperança por um futuro sem guerras, pleno de paz. A canção de Lennon foi escrita em 1971, sobre um slogan antiguerra de Phil Ochs, de 1968. Sonhava-se com a paz no Vietnã, uma guerra que já durava 16 anos e chegaria aos 20, carma do mundo jovem daqueles tempos, seu canto de amor. São de Lennon igualmente Imagine e Give peace a chance; também cantaram a paz Patti Smith (People have the power), Bruce Springsteen (Land of hope and dreams), Michael Jackson (Heal the world), Lenny Kravitz (We want Peace) e muitos outros. Com o fim da Guerra do Vietnã, já se vivia nos EUA uma nova era, a de Woodstock.


Caetano Veloso fez uma deliciosa salada
latino-americana em “Soy loco por ti, América”: “Espero o amanhã que cante / el nombre del hombre muerto / (...) Um poema ainda existe / com palmeiras, com trincheiras / canções de guerra, canções do mar / ay hasta te comover”. Tempos difíceis no Brasil! Não se sabe de que guerra o compositor falava, se era de alguma em particular, do regime político, luta entre palmeiras e trincheiras. O piauiense Torquato Neto, também tropicalista, usou essa dicotomia de Caetano em “Marginália II”, poema musicado por Gilberto Gil: “A bomba explode lá fora / e agora, o que vou temer? / Oh, yes, nós temos banana / até pra dar e vender”. Bastavam-nos bananas e, sim, longe da bomba - pero no mucho, diria um possível verso do Caetano, ou “longe daqui, aqui mesmo”, do dramaturgo Antonio Bivar.

Guerrilha em Moçambique

“Canto latino”, letra do cineasta Ruy Guerra
musicada por Milton Nascimento, tem um lado mais agressivo. Afinal, Ruy é Moçambicano, conheceu a guerrilha contra as terríveis ditaduras africanas: “Nasci com a minha morte / dela não vou abrir mão / (...) Quando a morte é vivida / e o corpo vira semente / de outra vida aguerrida / que morre mais lá na frente”. E segue, cáustico: “A primavera que espero / (...) Só brota em ponta de cano / em brilho de punhal puro / Brota em guerra e maravilha / na hora, dia e futuro / da espera virar...” (Aqui era para se cantar “guerrilha”, palavra omitida por óbvia prudência).

O "Domingo sangrento": Selma, Alabama

Cantando os males do mundo
, Barry McGuire, de voz rouca e rasgada, tinha um apelo mais plangente, um retrato inominável do momento, Eve of destruction (“Véspera da destruição”): “O mundo ocidental está explodindo / violência em chamas, corpos flutuando / (...) Você não compreende o que tento dizer? / Você não pode sentir o medo que sinto hoje? / Se o botão for pressionado / não haverá como fugir”. E divide o foco: “Pense em todo o ódio que há na China vermelha / então dê uma olhada para Selma, Alabama”. No estado de Alabama, o governador de extrema direita George Wallace defendia a segregação racial nos bastidores dos violentos conflitos, uma verdadeira guerra baseada no lema de sua posse: “segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre”. Mesmo com o Ato dos Direitos Civis aprovado pelo presidente Lyndon Johnson em 1964, é difícil fazer cumprir a lei. Fora do belo preâmbulo, discrimina-se, fere-se e mata-se negros até hoje.

Foto: The Guardian

Que canção serviria ao presente?
Cada guerra tem uma história, um rastro de sangue, de destruição. Tem personalidade própria desde seus obscuros motivos - o sangue de quem que as promove está impregnado pelo ódio. Sem canções, somente apelos, súplicas, a tristeza de ver crianças separadas de suas famílias, os olhos marejados e perdidos na destruição.


Temos hoje meios diferentes de protestar
, os artistas já não se manifestam como a voz do povo. Resta o silêncio, calarmo-nos por medo, voltarmo-nos para nosso próprio interior ou morrer – o que, filosoficamente, arrisco, não se vislumbra senão sob o mesmo símbolo: o silêncio. Cabe aqui a bela “Sons do silêncio”, de Paul Simon, e lembrar Beethoven, tomado pela surdez: “O som é prata, o silêncio é ouro”. Nem que seja por um minuto, um longo minuto por tantas vítimas.