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sexta-feira, 24 de junho de 2022

AMANTES DA AMAZÔNIA

 

Santa Elena de Uairém

Ilha do Diabo, Papillon, Santa Elena de Uairén, tudo cheira a selva: flora e fauna, cultura indígena, mistério, histórias embaladas em lendas e mitos como O Mundo Perdido, nas antigas Guianas, que inspirou Sir Conan Doyle, criador do Sherlock Holmes, caminhos fantásticos e maldições terríveis de El Dorado, onde o conquistador Luiz Daza teria capturado um chefe indígena equatoriano vestido com uma armadura de ouro. A Amazônia abraça nove países: Brasil, dono do maior quinhão, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana (ex-inglesa), Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.


A chamada Amazônia Legal surgiu com a lei n° 1.806/1953, sancionada por Getúlio Vargas, revogada e substituída por Castello Branco pela de n° 5.173/1966, com fins estratégicos e para criar a Sudam (Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia). É dividida entre nove estados: Acre, Amapá, Amazonas, Maranhão, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins, e distribuída em mais de 5,2 milhões de km², ou 61% do território nacional, uma área que representa 60% do total da já bem devastada rain forest latino-americana, o que significa mais de 50% das florestas tropicais de todo o planeta. Possui apenas 23 milhões de habitantes, metade do estado de São Paulo.  

Violinofone

Árvores e plantas da cultura amazônica adornam nossos parques e residências, como a vitória-régia, o timbó e o tambatajá, que deu título à música recolhida por Waldemar Henrique, tal qual O Boto, frequentemente cantada por todos os corais do Brasil - reza a lenda que para explicar a gravidez da filha a mãe diz que ela mergulhou no rio e lá estava o boto, daí... ”Foi boto, sinhá / que veio tentá / e a moça levou / Tajá-panema se pôs a chorar / quem tem filha moça / é bom vigiá” (folclore semelhante ao do ‘cabeça de cuia’, redemoinho do Parnaíba). Salve o uirapuru, pássaro lindo e garboso, ave que paira na copa mais alta da mais alta árvore, conta a lenda que um príncipe encantado,  e canta maviosamente: Villa-Lobos dedicou-lhe uma obra magistral que leva o nome do pássaro e tem um curioso instrumento como coadjuvante: o violinofone, de som arranhado e desagradável, uma espécie de violino com uma corneta de gramofone acoplada. Segundo a lenda dos nossos tupis-guaranis, uma linda índia seduziu o pássaro, e, como em um conto de fadas, transformou-o no mais belo e forte cacique da floresta, e seu canto até hoje é de todos o mais admirado.


Para Alexander von Humboldt (1759-1869), cientista prussiano cortejado por ninguém menos do que Goethe, investigar terras opostas à Europa ajudaria a compreender melhor o Velho Mundo. Aportou na Venezuela em 1799, passou pelas Guianas mas, ao tentar entrar no Brasil via Pará foi proibido pelo governador português; assim mesmo, prosseguiu viagem e pesquisas. O francês Jules Verne (1828-1905), autor de Vinte Mil Léguas Submarinas, escreveu O Soberbo Orenoco, acerca do rio do mesmo nome e o caudaloso Amazonas, incursões que também fizeram Alejo Carpentier, Joseph Conrad, Jean Mormand e diversos outros. E se desde aqueles tempos a Amazônia seduz, sua aura de magia é inspiradora. Os indígenas, nativos daquelas terras que desde muito antes de espanhóis e portugueses por aqui chegaram, fazem parte de um mistério de inúmeras línguas, como na Cabeça do Cachorro, noroeste do Amazonas. Ali são abrigados 23 povos diferentes e os dialetos baniwa, tukano, nhengatu, werekena, wanano, kuebo e kuripako, além do espanhol e do português. O índio baniwa Luís da Silva, de São Gabriel da Cachoeira, fala nada menos do que dezenove dialetos e idiomas. Ele se pergunta “E agora? Como é que a gente vai ficar? Sem nada, sem cultura, sem mito, sem história?” (Revista Fapema, 11/08/09).

Dorothy Stang (Reddit)

Em busca de respostas e para satisfazer sua paixão pela Amazônia, nomes como Marechal Rondon, irmãos Villas-Boas, Antônio Brand, Sidney Possuelo e Noel Nutels, entre muitos outros, conheceram as matas, conviveram com os nativos, aprenderam com eles e vislumbraram naquelas gentes um pouco de nossas origens mais remotas. Outros, como Chico Mendes, de Xapuri, ativista ícone da luta pela floresta e seus nativos, tiveram menos sorte: Mendes foi assassinado a tiros de escopeta em 1988 por Darci Alves, por ordem do pai deste, Darly Alves, “xerife” dos grileiros da região. A missionária e ambientalista norte-americana naturalizada brasileira Dorothy Stang, pouco antes de ser morta brutalmente com 6 tiros em 2005, segundo testemunhas mostrou aos seus algozes uma Bíblia, dizendo “eis a minha arma!” - e sussurrou algumas bem-aventuranças. O ambientalista José Cláudio Ribeiro e sua esposa Maria moravam na região do Marabá, no Pará. Recebiam frequentes ameaças de morte e também foram vítimas de capangas dos chefões locais em 2011.

Em 5 de junho de 2022, o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico do The Guardian Dom Phillips desapareceram no vale do rio Javari, noroeste do Amazonas, segunda maior área indígena do país. Ambos eram amados pelos nativos, e os amavam. Mas prevaleceram os garimpeiros, os grileiros, o agronegócio, o tráfico de drogas e armas, os estupros, o desmatamento, tudo sob os tentáculos dos obcecados pela posse de terras e riquezas, poderosos com jagunços no cabresto e sob as vistas grossas das autoridades. Apesar da pressão mundial, pouco mais do que restos humanos e um barco foi encontrado. Partes dos corpos esquartejados foram reconhecidas pelos familiares, ensejando-lhes e aos amigos indígenas o direito de realizarem um funeral digno.

(Climainfo)


sexta-feira, 17 de junho de 2022

POMPA E CIRCUNSTÂNCIA NO JUBILEU DA RAINHA

Sir Edward Elgar

ENTRE O URSINHO PADDINGTON E O AFFAIRE BORIS JOHNSON


Sir Edward Elgar, compositor inglês, escreveu quatro marchas militares entre 1901 e 1907, e outra em 1933, um ano antes de falecer; uma sexta foi criada postumamente a partir de rascunhos do autor. Na partitura da primeira, Elgar cita A Marcha da Glória, um poema de Lord De Tabley, que o inspirou: “Como uma música plena de orgulho que arrasta os homens para a morte / loucamente, sobre as lanças em êxtase marcial / Na medida em que traz o céu em suas veias / e ferro em suas mãos / Eu ouço a marcha da Nação...” Deu-lhes o título Pompa e Circunstância, para serem executadas em ocasiões solenes, na exaltação ao povo britânico, ao seu destemor, e, claro, à grande pompa da realeza, e costuma ser tocada em concertos pelo mundo todo.

Salva da Torre de Londres

De 2 a 5 de junho
, com pompa e circunstância, a Grã-Bretanha celebrou o Jubileu de Platina, 70 anos da consagração de Elizabeth Alexandra Mary Windsor, entronizada Rainha Elizabeth II em 1952, o mais longo reinado da história. Mais do que os tradicionais 42 disparos de quando a família real é saudada oficialmente na sacada do Palácio de Buckingham, há salvas para ocasiões especiais - como o aniversário da Rainha, por exemplo. Na festa do Jubileu foram 20 disparos a partir do Hyde Park, porque é um parque nacional, e 62 da Torre de Londres, já que é uma fortaleza do reino, totalizando 82 tiros! (Tudo é tradição, tudo são símbolos no país). O povo entusiasmou-se, mesmo que a Rainha tenha fraquejado no segundo dos quatro dias de celebração e alegria – ela tem 96 anos! Mas a despeito das anedotas sobre a longevidade da monarca, não foi à toa a presença incólume do príncipe Charles sobressaindo-se na sacada do Palácio. Herdeiro do Trono, postou-se com o garbo e a seriedade que o momento exigia. Incontáveis tambores, sobrevoos de jatos da RAF ora enfaixando o céu com fumaças das cores da bandeira inglesa – azul, branca e vermelha -, ora formando um perfeito número 70 entre as nuvens, acima dos fogos de artifício, perfeita ocasião para júbilo.

O chá com Paddington Bear

O tabloide sensacionalista The Sun, cujo tema predileto são mexericos e fofocas sobre a família real, autoridades e artistas famosos, dedicou à ocasião uma cândida filmagem em vídeo, urdida e feita em segredo com a própria Rainha. O Paddington Bear (um ursinho de filmes infantis criado em 1958), tendo à frente a anfitriã, Sua Majestade, aparece tomando chá em um aposento real. Entre gestos desastrosos e desequilibrados com o bule de chá, o ursinho bebeu pelo bico e ouviu da Rainha um suave “never mind” (“não importa”). Ela abriu sua bolsa e retirou um sanduíche para compensar a malograda cerimônia do chá, o mesmo fazendo o ursinho com seu lanche. As portas que davam para a sacada se abriram e viu-se um contingente enorme de soldados em gala vermelha rufando tambores, para encerrar o vídeo galantemente oferecido pelo The Sun e Sua Majestade. 

O Partygate

Houve, no entanto, quem superasse o ursinho Paddington em atitudes desastradas. Boris Johnson, ungido primeiro ministro pela Rainha em julho de 2019, resolveu dar uma animada festinha (depois apelidada Partygate) no dia 16 de abril de 2021 em sua residência oficial, 10 Downing Street, durante o severo lockdown contra a Covid e, pecado dos pecados, na véspera do funeral do príncipe Philip, duque de Edinburgh, esposo da Rainha. Vazaram fotos e vídeos, e o que era para ser um íntimo e secreto convescote transformou-se em escândalo. O jornal Daily Telegraph, que deu o “furo”, disse que a turma de Downing Street bebeu, dançou, “fez o social”, e que, pelas altas horas, um serviçal foi despachado com uma maleta para um supermercado próximo a fim de comprar mais booze (“manguaça”, em gíria nossa).

The House of Lords

A imprensa só falou – e ainda fala – em PM (Prime Minister), nº 10, BJ, Tory (Conservadores, partido do PM), vocabulário que logo se tornou bastante popular. A pressão geral pela renúncia de Johnson, partindo inclusive de segmentos do Tory, foi grande a tal ponto que o Parlamento evocou o chamado “voto de desconfiança” na pauta da House of Lords (o nosso Senado) e a House of Commons (Câmara dos deputados), além das dissidências contra o PM em seu próprio partido. Johnson não renunciou, mas, tal qual sua antecessora, Theresa May, “passou raspando” na votação, tornando-se instável no cenário. Como ela, vai sentir-se um verdadeiro peão de rodeio, e, talvez, deixará o cargo, como a antecessora.


A desobediência às duras regras do lockdown, o despautério de uma festa adolescente na véspera do enterro do Príncipe e as galhofadas de Johnson expuseram-no ridículo e vexaminoso ao país e ao mundo, algo como um “o PM está nu”. Só que o Trono segue impávido e forte, a inflação aumentou devido à guerra da Rússia contra a Ucrânia, mas não se falou em corrupção; foi tudo uma escorregadela inaceitável em um país extremamente sério que tem seu estilo próprio de humor, que não é o da galhofada do PM, e outras maneiras de festejar que não aquela patuscada extraoficial. A monarquia? Vai muito bem, obrigado, mas o PM chamuscou-se e pode terminar substituído longe de abalos sísmicos que possam atingir o Palácio de Buckingham. Há até indícios de que segmentos conservadores devem se aliar à oposição exigindo a renúncia de Johnson pelo desrespeito às regras que o próprio governo impôs ao restante do país. No affaire, além dos erros mais graves estão os da descompostura, do desrespeito ao país e da conduta imprópria para um primeiro-ministro de nação poderosa e admirada.

Verdadeiro exemplo para o nosso país.



sexta-feira, 10 de junho de 2022

PAVANA PARA UMA CRIANÇA MORTA


 

NY Times, 25 de maio de 2022: “Famílias angustiadas aguardam notícias após o massacre na escola do Texas”. A matéria de capa informava que no dia anterior 19 crianças foram assassinadas a tiros em uma instituição de ensino elementar da cidade de Uvalde, o pior massacre em dez anos desde o da escola Sandy Hook, em Newton, Connecticut. O assassino, de apenas 18 anos, também morreu no local. Segundo o porta-voz da Polícia Chris Olivarez, em entrevista ao The Today Show, da TV NBC, além das crianças foram assassinadas duas professoras. Antes de se dirigir ao local do crime, o atirador Salvador Ramos alvejou uma senhora de 66 anos, que os policiais disseram ser a avó dele, e que passou por condições críticas, mas sobreviveu.


O massacre de Uvalde reacendeu a discussão sobre a crescente violência armada nos EUA, que têm mais armas de fogo do que cidadãos. Pior, cada massacre parece servir de provocação para outro: o do dia 24 seguiu o da semana anterior, protagonizado por um supremacista branco que matou dez pessoas em um pequeno supermercado de Buffalo, NY. Sobre Uvalde, o senador Chuck Schumer, democrata e líder da maioria, tentou sensibilizar os adversários republicanos: “com os diabos, calcem os sapatos desses pais ao menos uma vez!” e manifestou-se por mudanças na legislação que rege os armamentos, aumentando as exigências sobre antecedentes para compradores de armas - medida tímida em um país com tradição de assassinatos em massa, crimes seriais e mortes de políticos.


A proposta de Schumer seria mero paliativo contra uma tradição arraigada nos costumes americanos desde as 13 colônias britânicas, cuja independência se deu em 1776 com a fundação dos Estados Unidos da América. Os cidadãos, antes armados nas colônias, prosseguiram e o costume permaneceu até no Texas dos caubóis, estado do massacre de Uvalde. O senador republicano Ted Cruz minimizou, disse que já tinha visto muitos desses ataques a tiros, e que se opunha à ideia de “restringir os direitos constitucionais dos americanos”. Em 2019, “ataques gêmeos” com armas de fogo aconteceram em El Paso, Midland e Odessa, em West Texas.

Shotgun

A NRA (National Rifle Association) é uma poderosa organização que tem o apoio de Donald Trump. O senador Cruz, que se manifestara a favor do “direito constitucional às armas” foi palestrante em uma convenção da Associação na sexta, 27 de maio, em Houston, Texas, quando a estrela foi Donald Trump. Trata-se de um estado onde, ao entrar em uma picape, às vezes se fala “vou de atirador” (I’ll ride shotgun), “vou no assento do passageiro”. É comum picapes trazerem suporte para um ou dois rifles na cabine da frente, ao alcance do passageiro shotgun (é comum jovens de outros estados usarem a expressão para dizer ‘carona’). Uma semana antes do crime, Salvador Ramos, o assassino de Uvalde, no dia em que completou 18 anos adquiriu dois rifles de “plataforma AR” e 375 projéteis – o suficiente para dez ataques como o do dia 24.


No Brasil de 85 anos atrás, o conceituado jornal carioca Correio da Manhã, de 12 de agosto de 1937, trazia uma chamada para a matéria principal: “Mussolini diz que só um povo armado é forte e livre”, explorando essa maldita simbiose já tão analisada: arma é poder, poder é liberdade. A ideia era criar uma enorme milícia armada a fim de eternizar no comando o Duce, como o líder fascista italiano era conhecido. “Com uma arma”, pensava-se, “sou mais forte, e com força sou livre” – concepção tresloucada de liberdade. Um povo armado não é um povo mais forte, e muito menos livre ou feliz. Com o poder de matar, o cidadão pode sentir-se mais forte do que os desarmados, mas conviria pensar também que estar vivo é poder ser morto. Por incrível que pareça, no Brasil este antigo modelo de filosofia barata parece repetir-se, a exemplo do recente “Eu quero todo mundo armado. Que povo armado jamais será escravizado" (Folhapress, 31/05/2020). A escalada armamentista acirrou a beligerância mortal entre bandidos e policiais, a um ponto insuportável para o país.

Vila Cruzeiro (DW)

Na segunda mais letal operação carioca da história
(24/05), agentes do BOPE, da PF e da PRF fortemente armados mataram 23 pessoas na favela de Vila Cruzeiro, no Rio, entre elas inocentes, e 12 sem passagens pela Justiça. Ação repleta de torturas, humilhação, espancamentos e muitos tiros. Só perdeu para a chacina de Jacarezinho, um ano antes, quando ao menos 28 pessoas foram mortas. É com esse estímulo à posse, propriedade e uso de armas de fogo - “filosofia” que vem ocupando cada vez mais espaço  - que violência e mortes se multiplicam, . Até Hitler, em 1938, repercutiu o discurso do Duce e venceu um plebiscito sobre o assunto, cabalando votos de 90% dos eleitores.


Um referendo de 2005 perguntou: "O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?". 63,94% votaram “não”, e 36,06% optaram pelo “sim”. Segundo o jornalista Josias de Souza, em seu blog da Folha, o “não” recebeu, para a campanha, R$ 8,4 mi e R$ 9,1 mi - um total de R$ 17,1 mi, já corrigidos pelo IPCA-IBGE - da Taurus e da CBC, as maiores fábricas de armas e munições do país. Reproduz-se em menor escala o poder da NRA americana, que congrega as indústrias do setor.

O título deste artigo vem da triste Pavane pour une infante défunte, de Maurice Ravel, orquestrada em 1910. (A pavana era uma dança processional lenta de cortes europeias dos séculos 16 e 17).  Que seja uma para cada criança, e um réquiem cada adulto morto, lá e cá. Isso há de ter fim.

 


sexta-feira, 3 de junho de 2022

FRIO NO TEMPO DO FRIO

 


Das gravações de Baby, It’s Cold Outside
 ("Garota, Está Frio Lá Fora"), de Frank Loesser, prefiro a de Ray Charles e Betty Carter, diálogo entre uma voz possante e a suavidade juvenil e ingênua da cantora. Trata-se de uma conversa entre um homem e sua garota - ela, teimando para ir para casa, dizendo “eu realmente tenho de ir embora”, ele insistindo, “garota, está frio lá fora”, papo romântico e desencontrado: ele tenta forçá-la a ficar, ela retruca com argumentos, o pai deve estar andando de um lado para o outro, a mãe preocupada – já se iam as horas -, coisa que aconteceu na vida de tantas e tantos jovens (sim, rapazes também, como em Trem das Onze: “minha mãe não dorme enquanto eu não chegar”). Cegamente apaixonado, ele diz das mãos congeladas da garota, dos lábios deliciosos; ela expõe suas angústias, até que ele tenta induzi-la ao desespero, última cartada: “e se você pegar pneumonia e morrer?” Pela música, Loesser abocanhou o Oscar em 1950.


Quem conhece o frio rigoroso sabe do que ele é capaz
. Claro, há beleza na neve cobrindo ruas e calçadas, aquela brincadeira lá fora ou, para quem prefere, olhar através da janela os flocos planando. Mas calefação é fundamental, o frio chega a ser tão intenso que pode transformar a casa em sucursal da Antártida. Obedeça-se a legislação: em Massachusetts, onde vivi, há um mínimo obrigatório para o dia, 68 °F (20 °C), e outro para a noite, 64 °F (~18 °C.), a serem rigorosamente cumpridos pelo senhorio do imóvel - o desrespeito à lei pode levar a sanções e até ao cancelamento da licença de aluguel.


Passei por uma situação terrível
onde morava, e garanto que não foi nada fácil nem romântico, como na música. Certa noite, houve pane no motor do aquecimento, máquina que serve para levar água quente das tubulações do porão até o radiador de cada cômodo. Resultado: dentro de casa, mesmo com o isolamento das paredes qual um sanduíche de lã de vidro, o termômetro mostrava 5 graus, depois zero, logo um pouco abaixo. Tremendo, olhei-me em um espelho e vi minha boca arroxeada; enrolei-me em vários cobertores entremeados com jornais e espremi-me encolhido em um canto; antes, em desespero, acendi o forno da cozinha, contígua à sala - aos vinte e poucos anos não conhecemos o medo, somos todos imortais, não é? (Frase póstuma sob medida para tamanha loucura). O inferno gelado terminou pela manhã com a chegada dos bombeiros que um vizinho havia chamado, seguidos por uma equipe de manutenção.


Neve nas ruas seis meses por ano
, caminhão espalhando sal grosso para limpar a passagem. Porém, após derretida, se volta o frio intenso a água congela, formando um tapete invisível que está para os carros como uma pia molhada para um sabão (pé no freio nunca, mais risco de acidentes!). Nas grandes cidades, moradores de rua se aquecem nas saídas de ar da calefação dos metrôs, cobertores sobre o corpo e garrafa de liquor (qualquer destilado) na mão, desde que em um saco de papel, pois é ilegal expor bebida alcoólica em público. (Que contraste com os que podem dispor de um bom par de botas, calças forradas, casaco recheado de penas de ganso, bons gorros, cachecóis e mittens, aquelas luvas que têm o polegar separado e os demais dedos juntos, para mantê-los quentes!)

(Central das lareiras)

Em São Paulo não descemos a tais temperaturas
, mas esses dias de maio têm sido os tempos mais frios do ano. A diferença entre o nordeste americano e cá é a morte certa e o risco de morrer. Aqui, casas e apartamentos, sem terem preparação térmica e calefação, podem ser aquecidos com uma lareira, para os felizardos que têm como comprar, entre o degustar de um bom vinho e momentos de adoração ao fogo, como nos rituais dos tempos de nossos antepassados.

(GUJ)

Mas dê uma olhada no povo de rua
, que sofre nas calçadas e praças das grandes cidades. Com a vida cada vez mais difícil, enrolados em cobertores entre pedaços de papelão e aguardando em desespero as benditas doações de roupa, comida, seja o que for: são velhos, grávidas, crianças, enfermos, situação de miséria plena. São nossos deserdados, que não comparecem às eleições, e são contabilizados como números mas não têm “lenço nem documento”. A fome é maior do que a razão para tomar qualquer atitude que não aguardar um novo dia, depois mais outro, e mais um - se vier e se Deus quiser.


Segundo estudo do IPEA
(Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) de maio de 2020, a população de rua no Brasil era de quase 222 mil pessoas. Com o agravamento do desemprego, a crise econômica e social, seguramente após passados dois anos o número já é bem maior; as campanhas de arrecadação ajudam, mas são panaceia. Há também os que se abrigam em situação de extrema pobreza, moradias improvisadas, muitas vezes recolhendo gravetos, sarrafos e madeira de móveis velhos para acender seu “fogão” uma vez por dia, frente aos preços exorbitantes, a falta de um botijão de gás e até do que colocar na panela.


A saga de Elsa e Anna
, em Frozen (lit.: congelados) é uma produção de 2013 dos estúdios Disney, e serve mais à fantasia e à imaginação infantil. A nós resta acatar os desígnios da natureza, como o poeta lusitano Alberto Caeiro (heterônimo de Fernando Pessoa), em Quando Está Frio no Tempo do Frio: “Que são para mim as doenças que tenho (...) / senão o inverno da minha pessoa e da minha vida? / (...) virtude da mesma fatalidade sublime / (...) o calor da terra no alto do verão / e o frio da terra no cimo do inverno”. Como ele, acatemos também os desígnios da natureza e suas vicissitudes, mas urge lutarmos para reduzir as desigualdades sociais em todas as estações do ano.

Fernando Pessoa