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sexta-feira, 25 de novembro de 2022

SERÁ QUE EU ESTOU FALANDO GREGO?

 


F
rase que o professor dos velhos tempos gritava quando percebia que a turma do colégio, com cara de paisagem, compreendia mal ou entendia lhufas do que ele estava expondo. Levando essas rachadas, hoje politicamente incorretas, aprendia-se, estudava-se muito para não se fazer de tonto ou ignorante em classe. O grego era um idioma tão distante que não dava para entender nada, os alunos não sabiam a dimensão do idioma e da cultura grega, que estão em tudo, alma de uma civilização. Agora, tantos anos depois – agora que sabemos! -, vale buscar o sentido de muitas palavras em suas raízes etimológicas (opa, olha aí, do grego etymologia, origem e formação das palavras). Pois não é que hoje dei de pensar em palavras de origem grega que bem definem nossas vidas, nosso psicológico, nossos sentimentos e até mesmo certas situações? E elas se tornam icônicas (do grego eikónos), até.


M
eme é palavra que pegamos emprestada do inglês, e vem a significar “elemento de uma cultura ou sistema de comportamento, passado de um indivíduo para outro por imitação” (Oxford). E não é que em inglês a palavra vem do grego mimema, significando ‘imitado’, e o conceito foi introduzido pelo revolucionário biólogo inglês Richard Dawkins em 1976 (Britannica)? Pois a vida em sociedade tem muito disso, só que há que se distinguir entre o que é cultural, parte de nossas tradições, e o que é uma espécie de mimese, imitação. Não por acaso veio à lembrança um conto do livro A Inglesa Deslumbrada, do ‘tio’ Fernando Sabino, em que ele relata uma conversa fiada e meio vazia em pleno voo Londres-Rio com uma inglesinha, sua companheira de viagem. Na falta de assunto, vez de ela perguntar: “é verdade que no Brasil existe o costume de se andar nu?” Sabino, ironicamente, respondeu algo como “sim, uns por tradição e outros por não terem o que vestir”. É isso: anda-se pelado por tradição de uma sociedade em particular, no caso a dos indígenas – certamente a origem da curiosidade da inglesinha -, ou por não ter dinheiro. Uma troça bem ao estilo do Sabino.


D
o grego, mimese – “imitação ou representação da realidade” é o que acontece quando quero – ou queremos - copiar, se aplicarmos o conceito a pessoas. Mary Quant criou, na Londres dos anos 1960, uma saia tão curta que deram de chamar-lhe mini, minissaia (e depois, claro, a microssaia). “Pegou lá, pegou aqui”, assim como as calças boca de sino ou de cós baixo, modelo Saint-Tropez, nome do lindo balneário no sul da França que ditava o dernier cri – a última moda. O escritor português José Saramago, autor de Ensaio Sobre a Cegueira, Nobel de 1998 e comunista de carteirinha, disse: “O heroico de um ser humano é não pertencer a um rebanho”. Faz sentido, mas ele mesmo tinha de andar de calça e camisa social por costume de gerações ou por convenções de Portugal, um país ocidental como o nosso. De fardão, como se usa na coirmã brasileira, a ABL, ou terno, em situações formais, cá e lá.

Culto de Jim Jones na Guiana (anos 1970)

I
mportantíssima é a catarse (do grego khártasis), que é o “processo de libertação ou purgação da alma e do corpo (...), estranho à essência ou à natureza de um indivíduo” (Michaelis), bastante comum no meio artístico. Vimos uma imensa catarse no Festival de Woodstock, tipo de evento em que os participantes, coletivamente, entregam-se à libertação ou purgação da alma e do corpo. Até grupos como os dos fanáticos seguidores do norte-americano Jim Jones, que em sublimação extrema de catarse coletiva foram levados ao suicídio em massa na Guiana, em 1978.


E
m uma manifestação política recente, um homem, vestido de verde e amarelo, subiu no para-choque da frente de um caminhão, como se tivesse sido atropelado, e pegou uma breve carona com os braços abertos, segurando-se nos limpadores de para-brisas. Teve seus gloriosos 15 minutos de fama, como preconizava nos anos 1960 o ícone (de eikón!) da arte pop Andy Warhol - mesmo que uma fama anônima, se é que é possível.  A cena, gravada em vídeo, viralizou até alcançar o exterior. Foi uma catarse particular, exibicionista.


M
as o recente show do manifestante não foi tão original como parece. Fez uma mimese bem-comportada de outro fato acontecido há oito anos, em novembro de 2014, e reproduzido nas mídias como se ele, sim, fosse uma imitação do manifestante de 2022. Explico: uma mulher para lá de pós-balzaquiana despiu-se na rua até a última peça, para surpresa dos transeuntes nas calçadas de um lugar tranquilo de Goiânia (G1, 21/11/14). Com algum esforço, subiu no para-choque e agarrou os limpadores de para-brisa (tal qual veio a fazer seu meme caminhoneiro oito anos depois), e seguiu carona daquele jeito. Não tinha motivação política, seriam só os tais quinze minutos de fama (que não passaram de três), talvez vingança contra um marido traidor, ou simplesmente “deu tilt” e surtou? Então o manifestante de hoje, ator do meme do ano, pegou carona no gesto da goiana de ontem? Exato.


E
ntre mimeses e catarses, gregos e troianos, buscamos compreender pensamentos, fatos e palavras e o filtro real é sempre a etimologia. Em “Dicas de Português”, publicado no G1, é possível encontrar uma lista tão simples quanto curiosa de palavras vindas do grego, com as devidas explicações, como em verbetes. Por exemplo: antídoto, arquipélago, bíblia, cirurgia, cartomancia, dinossauro, eutanásia, heureca, sarcófago... E creia, até xerox, de kserós! Pois se você um dia ouvir “por acaso estou falando grego?”, diga que sim, pois ao menos em parte é verdade.

 

sexta-feira, 18 de novembro de 2022

MEU NOME É GAL!


M
aria da Graça Costa Penna Burgos, nascida em 1945 em Salvador, era uma linda baianinha arretada, dona de rara voz, soprano “de nascença”, à vontade nos agudos e com um timbre sensual e inconfundível. Reinou durante décadas em shows e gravações agradando gregos, troianos e romanos. A baianidade era expressa nos gestos, nos balangandãs, no sotaque manhoso, no corpo ora meio que lânguido, ora pleno de energia. Era o modo dela ser: “baiana é aquela / que entra no samba de qualquer maneira / que mexe e remexe, dá nó nas cadeiras / deixando a moçada com água na boca” (samba do mineiro Geraldo Pereira, profundo conhecedor do que é ser baiano). A falsa baiana não faz nada disso: “não canta, não samba / não sabe deixar a mocidade louca”. Mais: Gal, autêntica soteropolitana, foi gestada com inspiração lírica: durante a gravidez, a mãe dela, Mariah, ouvia música clássica. Daí talvez a potência de sua voz, sem aquele “diminuendo” nos agudos para não “rachar”. Bom exemplo é a gravação de “Brasil”, do Cazuza: não havia instrumental que a derrubasse.


A
ssisti a alguns shows da Gal quando eu morava no Rio. Como fazia bem para os olhos e ouvidos! Um desses espetáculos marcou-me de forma especial - e ela andava, rodopiava, exalava sensualidade e “frever” (de onde o frevo) nordestino circulando no pequeno palco do Teatro Opinião, no andar de baixo do Teatro Thereza Rachel em um prédio comercial de Copacabana (frevo, aliás, é Festa do Interior, de 1982, de Moraes Moreira e Abel Silva, que Gal cantava como ninguém, com aquelas “emboladas” troca-línguas com jeito de solos de saxofone). Se o Thereza Rachel era maior, no Opinião ela dava seus giros bem perto da plateia, que se derramava e se esbaldava. Sempre trazia bons músicos, mas a presença dela imperava. Simples, morava em um prédio no Vidigal, bem perto da favela, e se sentia confortável ali.


M
udando de cenário, estamos nos anos 1970, na praia de Ipanema, mais ou menos na altura da rua Farme de Amoedo. Ali, a CEDAE mandou construir uma tubulação de diâmetro enorme para lançar os dejetos da região para bem longe da costa. O chamado “emissário submarino” foi construído nos anos 1970, e passou a despejar 6 mil litros de esgoto por segundo a quase 4 km da praia, sem ameaças à saúde da rapaziada – diziam.

Macalé e Gal, revisitando as dunas em 1997

C
hegando à beira da praia, o “emissário" soerguia-se na forma de um enorme areal, ponto de encontro – ainda não se dizia point – da juventude negra e dourada. Circulavam por aquelas dunas Monique Evans, Chacal, Glauber, Evandro Mesquita, Regina Casé, Caetano, Fernando Gabeira... O Brasil se socializava por ali, era um lugar onde tudo se podia, desde que discretamente: dos topless aos cigarrinhos malcheirosos que faziam a letargia da tietagem. Ah, caipirinha de limão, cerveja,  espetinhos de camarão, biscoitos Globo de polvilho e o “mate para viver” com torneirinha a tiracolo do coitado do vendedor, davam o tom do lugar. Segundo o cantor Jards Macalé, sobre o território livre inaugurado pela Gal, “eles sabiam, vigiavam aquilo, mas deixavam como válvula de escape” (“eles” eram as forças da repressão).

Gal nas dunas, com o "Petit"

L
á pelas tantas surgia a “dona” do pedaço, adorada, reverenciada, merecedora de todas as torções de pescoço masculinas e femininas: Gal Costa, rainha de suas dunas, daí as “Dunas da Gal”. Tão comum essa referência ao lugar quanto ao Jardim Botânico e à Pedra do Arpoador, era uma obra feita para despejar o esgoto bem longe. No dia 9 de novembro de 2022, Gal deixou sua canga fictícia sobre dunas imaginárias, e foi molhar-se na água salgada para não mais voltar. Talvez tenha ido encontrar-se com sua Iemanjá, Orixá dos rios e lagos nas origens nigerianas, e entre nós rainha do mar. Água trouxe, água levou. Não fazem mais sentido aquelas dunas que foram uma bolha da intelectualidade carioca, da juventude sadia, dos cantores, instrumentistas, escritores, pintores, cartunistas, cineastas, artistas de cinema e TV, enfim, a "fauna” da intelligentsia. Lá, tudo se podia, ou assim se pensava, enquanto até de cima dos prédios agentes fiscalizavam de binóculos em riste – melhor vê-los aglomerados na praia do que organizando movimentos, deviam pensar os homens da ditadura.

Com Gil, em Londres

G
al sabia dos lamentos, como em “rasgue a camisa e enxugue meu pranto” (Pérola Negra, de Luiz Melodia), de imaginar celestialmente, como em “while my eyes / go looking for flying saucers / in the sky” (“enquanto meus olhos / procuram por discos voadores / no céu”) - em London, London, de Caetano, a quem ela conheceu em 1963, uma amizade profunda e para sempre. Tinha aquela voz de timbre “divino, maravilhoso”, título de outro sucesso de Caetano que se tornou capa-título de um de seus discos. Uma voz feminina, Calíope, musa filha de Zeus, com toda a feminilidade, Gal era assumidamente bissexual. Não conseguia engravidar, e deixou entre suas paixões a atriz Lúcia Veríssimo e a cantora Marina Lima. Em 1998, casou-se com a empresária Wilma Petrillo. Aos 60, adotou uma criança, hoje com 17 anos, que não por acaso batizou com o nome do anjo da anunciação, Gabriel.


G
al também foi Maria da Graça, Gracinha, Gau – o nome com “l” não tinha a simpatia de Caetano, que havia sido preso, lembrava-lhe a abreviatura de general, mas teve de engoli-lo porque a estrela sabia ser tinhosa. Mãos dadas na “passeata dos cem mil”, mesmo com aquela aparente fragilidade era uma lutadora, como quando cantava “Divino, Maravilhoso”: “é preciso estar atento e forte / não temos tempo de temer a morte”. Gal não morreu.


sexta-feira, 11 de novembro de 2022

EUA, RU, BR: SOPA DE LETRAS E NÚMEROS

 


Há dois anos, em 5 de novembro de 2020, Joe Biden ultrapassava Donald Trump na corrida presidencial americana por 2,4% dos votos dos colégios eleitorais, sendo 50,5% para o democrata e 48,1% para o rival, aos 86% dos votos totais apurados. Boa parte dos estados do centro-norte, centro e sul, de Montana ao Texas e Florida, registravam sua preferência por Trump, enquanto as costas leste (do Maine a Virginia) e oeste (Washington a New Mexico) formavam posição a favor de Biden. Claro, há motivos históricos e tradições a ligarem certas regiões primordialmente aos republicanos ou aos democratas. Porém, ainda havia dúvidas quanto aos estados de Nevada (89% dos votos apurados), a esperançosa Arizona (86%), Philadelphia (96%), Carolina do Norte (95%), e a controversa Georgia (98%).


Biden recebeu mais de 81 milhões de votos, ultrapassando o recordista Barak Obama (2008), com 69,5 mi, que por sua vez havia superado Richard Nixon (1968), com 31,7 mi. Por fim, terminado o pleito sob protestos inconformados de Trump, Biden acumulou 51,3% contra 46,8%, número razoavelmente compatível com o de votos diretos dos eleitores: mais de 81 milhões de votos para Biden, e pouco além de 74 mi para Trump. Uma diferença de 7.059.526 votos, cifra numericamente um pouco negligenciável frente ao total de eleitores, mas obviamente pequena em uma população de 332.403.650 habitantes – entre os que votaram ou não, pessoas de todas as idades. A diferença total de votos entre Biden e Trump, de mais de 7 milhões, corresponde à população (eleitores ou não) do estado de Arizona, ou ainda à soma do Alaska, D. C., Delaware, North Dakota, South Dakota, Vermont e Wyoming – os sete juntos!


Voltando à eleição que levou Biden ao poder, em 2020, Trump forçou uma contestação sem limites ao resultado das urnas. Foi cruel e vilipendioso, acusou, disparou aleatoriamente sua metralhadora giratória, ameaçou e agitou a nova extrema-direita supremacista norte-americana, cujas origens remontam à terrível Ku Klux Klan, organização semiclandestina tolerada especialmente nos estados do sul, além dos mais recentes Proud Boys. A direita, e especialmente a extrema-direita, estavam inconformadas, seus militantes transbordando em ódio. No dia 6 de janeiro de 2021, duas semanas antes da posse, uma horda de alucinados invadiu o Capitólio, quebrou portas e janelas e só foi retirada do prédio após vários conflitos com as forças de segurança e a polícia. Sabiam que não tinham chance alguma - aliás, nem sabiam o que queriam, além de uma baderna sem controle que chegou a balançar a inquebrantável democracia americana.


Esgotadas as ações ilegais, dispersado o movimento, Biden tomou posse no dia 20 com uma pompa digna dos maiores festejos cívicos americanos, brindada com uma interpretação de The Star Spangled Banner (“A Bandeira Constelada de Estrelas”), o hino pátrio, por Lady Gaga. Trump se recolheu, mas coleciona processos que incluem acusações de ter liderado de fora a farra extremista pró-golpe do dia 6. Agora, no dia 8/11, com as eleições legislativas reativamente favoráveis aos republicanos, ele deverá assumir sua pré-candidatura com vistas ao pleito de 2024. Bilionário e grande líder, o republicano tem cacife para voltar à Presidência, com o rancor, ódio e revanchismo que lhe são característicos.

Rishi Sunak

No Reino Unido, em 25 de outubro, o Partido Conservador escolheu o jovem primeiro-ministro que responde pelo nome de Rishi Sunak, aos 42 anos.  Filho de indianos que, como tantos, imigraram para a Grã-Bretanha em 1960, Rishi tomou posse após 45 dias de uma gestão tensa e desastrosa de Liz Truss, que sucedeu Boris Johnson, um premiê mais confuso ainda, derrubado pelo partygate – uma festinha na residência oficial da Downing Street com danças, excessos e muita bebida. Nada de tão bombástico se não estivesse em pleno lockdown decretado por ele próprio durante a pandemia! Para os britânicos, um deslize imperdoável. Em consequência de sua ampla votação como parlamentar, Sunak conseguiu chegar à liderança do partido Conservador no poder, e consequentemente por estreita margem à posição de primeiro-ministro, com a desistência de rivais internos. Entre os Conservadores, que haviam se tornado os titulares do governo, foi ele quem mais se destacou – e levou.


30 de outubro de 2022. O Brasil elegeu Luiz Inácio Lula da Silva, vencendo o oponente Jair Messias Bolsonaro por uma margem - tal qual Biden nos EUA - tida como estreita de votos. No Brasil, a eleição para presidente é direta desde a CF de 1988, valendo pela primeira vez em 1989, 24 anos após o golpe de 64, eleito Fernando Collor de Mello. No recente dia 30/10, foram 118.552.353 votos válidos, dos quais 50,9% (60.345.999 votos) ficaram com Lula e 49,1% (58.206.354) com Bolsonaro. Uma diferença de 1,8%, ou 2.139.645 votos, próximo ao número total de eleitores aptos do Distrito Federal e quase a soma dos estados do Acre, Amapá, Roraima e Tocantins.

Rodésia, 1977

EUA, Brasil e Reino Unido elegeram seus mandatários por margem estreita de votos. São três democracias, mas as diferenças entre os dois primeiros já não são tão grandes; os EUA escolhem via colégios eleitorais, no Brasil o sistema é o chamado one man, one vote (um homem, um voto). A eleição se dá por maioria simples, ou seja, número de votos maior do que a metade.

A vitória que mais importa é da democracia. Poder que, de uma forma ou de outra, emana do povo, e é exercido pelo povo e para o povo. Assim foi, assim será.



 

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

FOI BONITA A FESTA, HORA DE TECER A MANHÃ

 


P
assada a ressaca da eleição, valem algumas considerações. Em primeiro lugar, venceu a Nação, pela tranquilidade com que o pleito se realizou, levando em conta as nossas dimensões continentais, polarizadas entre dois blocos, cindindo a população. O lado negativo fica por conta da ocupação de estradas não por motivos salariais e afins - que poderiam justificar uma greve dentro do que a lei permite, liberando parte da rodovia para não prejudicar os que precisam passar, como famílias e cargas especiais. Outro dado negativo foi a atuação ostensiva da PRF em estradas nacionais, principalmente do Nordeste, segundo se informou uma ‘operação padrão’ para o controle das rodovias. Felizmente, nada mais aconteceu, e, segundo do presidente do TSE, Alexandre de Moraes, no cômputo geral os passageiros continuaram as viagens após as operações, podendo exercer o seu direito de votar.


S
obrepujando esses inconvenientes, a caminho das urnas com o objetivo de escolher os governantes dos estados ainda não eleitos e, principalmente, o dirigente máximo da Nação, aflorava o orgulho de sermos brasileiros. Com apenas uma ou duas escolhas no teclado eletrônico, sem os atrasos creditados à estreia do registro biométrico, a votação transcorreu sem maiores problemas. A população compareceu e saiu com a altivez cívica do dever cumprido, escolhendo um futuro com mudanças – afinal, não é este um dos pilares da democracia, a alternância? E quem sabe não será essa a ocasião para que, já no início da próxima gestão, possamos retornar via PEC ao mandato único de cinco anos, conforme fixado anteriormente pela CF de 1988? A Emenda Constitucional 16/97 transformou o segundo mandato, ou ao menos seu ano final, em campanha para reeleição: prejuízos ao Tesouro e à normalidade do país. A reeleição, suas virtudes, vícios e vicissitudes devem ser reavaliados, e isso já se evidencia de há muito. Trata-se de assunto para o nosso Legislativo - para isso elegemos nossos representantes -, cabendo à sociedade civil exercer o legítimo direito de pressão e cobrança.

Av. Paulista

S
im, “foi bonita a festa, pá”, lembrando o Chico, a Paulista com 700 mil pessoas (segundo o The Guardian), a Cinelândia outro tanto, mais capitais e muitas cidades pelo país. O presidente eleito, aos 77, com problemas de impostação vocal, terminou seu discurso após longas, e por várias vezes dispensáveis pela longueur, apresentações de apoiadores. (Lembrou o cantor Jorge Ben, em apresentação de Charles, Anjo 45, no IV FIC: “tô rouco, Charles, tô rouco!”). Surpreendente, também, a estamina popular, gente de todas as idades, para resistir horas de pé. Sim, “foi bonita a festa, pá”, mas desde agora há de se encarar o batente: É de bom-tom o presidente eleito visitar alguns dos principais líderes mundiais – e foram 88, até 1/11! - que lhe mandaram cumprimentos, como Joe Biden (EUA), Emmanuel Macron (França), Rishi Sunak (Reino Unido), Joseph Borrel (União Europeia), Pedro Sánchez (Espanha), Antônio Costa (Portugal), XI Jinping (China), países do Mercosul, América Latina e outros.


N
esse curto espaço de tempo, até a posse de fato do eleito, no primeiro dia do ano de 2023, há que se formar talvez não um consenso da base, mas ao menos uma direção na escolha de ministérios, constituição das pastas, organogramas, indicação dos chamados cargos de livre nomeação e exoneração, que esperamos de competência técnica antes de política. E saber preservar os melhores profissionais que porventura tenham ingressado na gestão anterior. Apaziguar, mais do que nunca, pois não faltam lutas insanas: há um conflito real na Ucrânia que mata inocentes e esfacela a economia mundial, criando uma inflação no Brasil temporariamente estancada a bíceps em alguns produtos, como a gasolina, e que acomete a maioria dos países, não raro como um turbilhão. É difícil o momento, sim, mas a festa acabou, pá, e é hora de começar a arrumar a casa com disposição e vigor.


H
á que se dialogar, para que os que divergem possam ter espaço para exprimir democraticamente suas opiniões e posições; há que se contemporizar, remover barreiras e juntar os cacos que porventura possam ter resultado de embates necessários, quando civilizados, ou excedentes, se à margem dos contornos delimitados pelo Estado de Direito. Há que se pensar urgente nos que mal têm um prato de comida por dia, nos que “têm fome e sede de justiça, porque serão saciados”; nos que não têm onde se abrigar, nos que estendem a mão ‘pelo amor de Deus’ para dar de comer aos seus filhos (o pelo amor de Deus da fé de cada um e mesmo dos incrédulos – voltando ao Chico, “e eu que não creio peço a Deus por minha gente, e é gente humilde, que vontade de chorar”).

Paz para o novo ano que se aproxima! Que os desejos mais profundos, libertos ou ainda represados nos corações e mentes sejam contemplados; que os homens caminhem para o destino que lhes foi traçado nas origens, que é o da fraternidade e do amor; que a vitória seja não mais do que o momento de uma disputa, e que junto a ela derrota perca o sentido de conflito - palavras cujos significados existirão de fato em nossa história. Que a paz e o direito à opinião sejam a imensa bandeira de todos, preservadas as divergências de onde emergem as soluções. Pensando agora em João Cabral, que seja uma imensa flâmula branca imaginária “se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação”.