...tudo na vida pareceu um quadro impressionista: paleta de muitas cores, paisagens, a beleza natural dos traços cheios de detalhes, um conjunto encimado por um céu azul como nada. Tudo isso junto, parecia que a natureza emoldurava aquele paraíso, as águas límpidas refletindo em nossos olhos, nosso pensar. (Mas por que essa poesia? Por que tão de repente? Quem viu esse quadro, esse óleo? Não seria simples ilusão, uma conspiração de sonhos, pensamentos etéreos e de boas ideias?)
Na sexta-feira, cinco de maio, o etíope Tedros Adhanom, presidente da Organização Mundial de Saúde (ONU), com sede na Suíça, veio a público para declarar – ou decretar? - o fim do ciclo de emergência da pandemia. Desastre. Muitos tradutores apressados, ao redor do mundo, reproduziram a fala como, ao som de trompetes, a saudação ao fim da pandemia de Covid-19, como foi inicialmente compreendido pelos ouvintes mais afoitos, desavisados e repetidores de esquina. Soava-lhes como um salvo-conduto para a volta àquela vida boa de praia, aglomerações, abraços efusivos e sacudidos, beijos de simpatia ou amor, um novo paraíso construído com tijolos de fantasia e argamassa de pura ilusão, lembrando os bons tempos. As normas da própria OMS definem quando se declara o fim de uma pandemia, coisa não tão simples quanto pareceu ao grande público. A AIDS, por exemplo, ainda é uma pandemia viva, e, mesmo que em pequena escala e sob controle, ainda cabe como uma luva dentro da definição: “doença infectocontagiosa (...) caracterizada por alta morbidade e mortalidade (...) em curto espaço de tempo, por várias regiões do mundo” (Houaiss. Etim: do grego pan, todo, e demia, doença que atinge uma população). Para se ter uma ideia, o último diagnóstico da varíola (doença original, nada a ver com a recente ‘dos macacos’) aconteceu, solitário, apenas em 1977, o que levou a OMS a declarar a doença, em seu estado original, como extinta, após longos anos. Ademais, tal ‘ciclo de emergência da pandemia’ não poderia, jamais, ser lido como fim da pandemia em si, nem ao pé da letra.
Também o diretor-executivo da OMS, Michael Ryan, tentou emendar o soneto, dizendo que a emergência pandêmica acabou, “mas a ameaça não. A batalha não acabou, e provavelmente não haverá um ponto em que a OMS anunciará o fim da pandemia”. O próprio Tedros disse que “foram quase sete milhões de mortes reportadas à OMS, mas sabemos que o número é muito maior, ao menos 20 milhões”. E, arrependendo-se (UOL, 5/05/23): "A pior coisa que qualquer país pode fazer agora é usar esta notícia (...) para baixar a guarda, desmantelar os sistemas que construiu ou enviar a mensagem de que a covid-19 não é mais motivo de preocupação".
Varella: El País
Na
mesma noite da declaração de Tedros, a GN, em longa série plena de depoimentos,
deixou claro que, em hora nenhuma, a pandemia teria acabado, batendo o pé com
firmeza, pois ela continua viva como nunca, apenas com menor número de
internações, intercorrências e mortes. No programa falou-se até em
negacionismo, e o Dr. Dráuzio Varella, juntando tudo, chegou a mencionar a
palavra estupidez: sobrancelhas franzidas, expressão dura, estava mais irritado
com tudo aquilo do que raramente se vira antes. Varella sempre lutou pela
vacina e por salvar vidas, como um todo; renomado cientista que é, nunca
deixaria passar uma expressão que sequer insinuasse este mal entendido. É da
vida dele, o talento especial que exibe ao falar, ao se fazer compreender. Mas
para quem ouve notícias picadinhas, por alto, deve-se evitar esse tipo de
sutileza, que pode sobrepassá-lo sem aviso como um trator.
Estamos em pleno deslanche inicial da subvariante arcturus, da omicron, e vis-à-vis às portas da nova fase da campanha: a da vacina bivalente, que já lota as geladeiras das unidades de saúde do país. É difícil este começo, especialmente dada a “indolência natural do povo brasileiro”, como dizia Mário de Andrade. Faltou nesses anos cooperação de setores dos mais altos escalões; pior ainda, o recente escândalo das carteiras de vacinação, surrealistamente para não serem vacinados devido a interesses escusos ou supostas posições ideológicas exatamente aqueles que tinham poder sobre o quê, quando e onde inocular a população. Um péssimo exemplo. O modelo bivalente ora nos postos de saúde tem dois alvos, como o próprio nome diz: tanto as cepas mais antigas quanto as mais recentes. A última delas, Arcturus, surgida na Índia, país mais populoso do mundo (1,5 bi de habitantes), já toma corpo na Europa e ‘estreou’ no Brasil recentemente. Se por um lado ela mata em escala bem mais reduzida, alastra-se com maior facilidade e joga aos leitos e emergências número significativamente menor de pacientes. Mas o bicho ainda vive, Vivinho da Silva, diriam antigamente.
Foi tudo doce ilusão, ou tudo não passou de um mal-entendido? Talvez entre a pronúncia do Dr. Tedros Adhanom, da OMS, a redação do discurso, certo enfado e a quase sempre plana e rasa intepretação ao falar? Perdeu-se o sentido da coisa e criou-se um novo vírus, este virtual e multicelular, pioneiro em fazer confusões, campeão na arte de desinformar, material fértil para fake news de todos os gêneros. As equipes desses cirurgiões das palavras têm atuado rápido nesse tortuoso e bem sustentado caminho do equívoco; reinventam o que, pelo simples prazer ou dever de mal informar, já vinham fazendo: “Fez-se do amigo próximo o distante / fez-se da vida uma aventura errante / De repente, não mais que de repente” (Vinicius de Moraes).
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