Não faz muito tempo, publiquei neste
espaço um artigo chamado Bach e sua Catedral de Sons, no qual citei a grandiosa
Paixão de Mateus, entre diversas outras obras do compositor alemão. Com os pensamentos
de todos os homens e as orações de todos os cristãos voltados a esta última sexta-feira,
a sexta da Paixão, nada mais oportuno do que relembrar esta obra bachiana mais
detalhadamente, para assim dividirmos com o compositor sua visão de alguns dos
momentos de maior sofrimento já registrados, que os religiosos transformam em luto,
culto e oração anual, e os demais em reflexão.
A Flagelação, por Caravaggio
Em toda sua
simbologia, a Paixão de Mateus mostra o caminho de Cristo rumo ao flagelo, à
crucifixão e, martirizado, descendo rumo ao calvário, “de onde há de ressurgir
para julgar os vivos e os mortos”, conforme os textos sagrados. Imbuído
profundamente desse espírito, de incomum reverência submissa ao sofrimento do
Senhor, Bach revelou ao mundo seu Passio
Domini Nostri J. C. Secundum Evangelistam Matthaeum – do latim, Paixão de Nosso
Deus Jesus Cristo Segundo o Evangelista Mateus, obra grandiosa que estreou na
Igreja de Santo Tomás, em Leipzig, em 1727.
Órgão Litúrgico
Bach requer, nessa longa partitura composta
em forma de oratório, coros duplo e triplo e orquestra dupla, com libreto
(texto) de Christian Henrici. Esta Paixão (existe ainda uma outra, a de João) se
baseia nos capítulos 26 e 27 do evangelho segundo Mateus, em tradução alemã de
Martinho Lutero, textos narrados em forma de recitativo pelo Evangelista com
acompanhamento de contínuo (instrumento de cordas de voz grave), por violoncelo
ou violone (antecessor do contrabaixo) entremeados de impressionantes corais e
árias.
Violone
Em 1736, para
outra apresentação, Bach acrescentou dois órgãos à orquestra e, obsecado, ainda
realizou mais duas revisões, em 1742 e 1743/1746, ora devido à ausência de
órgão em local onde a obra seria apresentada, o que fazia o compositor trocar o
instrumento por um cravo, ora por capricho perfeccionista – ou ambos.
Mateus, evangelista
Os textos bíblicos são recitados
musicalmente pelo Evangelista, enquanto árias e ariosos comentam e ilustram as
passagens, desde a unção de Cristo até o Monte das Oliveiras, do falso
julgamento a Pedro e Judas. No recitativo nº 45, o evangelista narra o episódio
em que Pilatos pergunta ao povo a quem eles querem que seja solto: Jesus ou
Barrabás, mesmo ante o clamor pelo inocente feito pela mulher de Pilatos. Já no
nº 48, é a vez de a soprano lamentar: “Ele fez o bem para todos nós. Aos cegos
ele fez enxergar e aos paralíticos andar. Ele nos ensinou a palavra do Pai,
afastou os demônios, consolou os aflitos. Recebeu e aceitou de volta os
pecadores”.
Partitura com autógrafo
A riqueza de
detalhes na partitura, a escolha das tonalidades e modulações (mudanças de
tonalidades), todos os artifícios do melhor ourives da partitura foram
empregados, em consonância com a preciosidade do texto e a enorme devoção de
Bach: “Tudo o que fiz dedico a Deus”. E, submisso, como se prostrado diante da
infinitude do Criador, assumiu-se, como nós, mais um, um a mais: “quem
trabalhar quanto eu trabalhei obterá os mesmos resultados”.
Oboé da caccia
Ambos os coros empregam dois
traversos (flautas transversais de madeira), dois oboés, 2 violinos, viola,
viola da gamba (um dos precursores do violoncelo moderno) e um baixo contínuo
(instrumento de cordas de voz grave), além de, às vezes, um oboé d’amore (um
oboé, como o nome já diz, com som mais doce) e um oboé da ‘caccia’ (de caça,
voz tenor). Essa orquestração, nos últimos tempos, tem sido muito ampliada pelos
regentes nas apresentações, visando a maior impacto e um efeito magnífico.
O
imponente coro de abertura é talvez uma das mais espetaculosas introduções musicais
de todos os tempos, é uma verdadeira elevação
dos espíritos ao Altíssimo (Veja e ouça abaixo: “Venham vocês,
filhas, ajudem-me a lamentar” com os English Baroque Soloists e o Monteverdi
Choir, regência de J. Eliot Gardiner)
Crucifixão: Gerard David
Os manuscritos requerem oito solistas, em que
soprano e dois baixos cantam as partes de Pedro, Judas, a mulher de Pilatos e
outros. Às palavras finais de Cristo, escritas em aramaico, Eli, eli, lama sabachthani (Deus, Deus, por que me abandonaste?), Bach reserva uma orquestração especial, que faz
ressaltar na voz do solista a súplica, e ergue ainda mais a fé dos que aguardavam
aqueles momentos finais do Salvador. São 78 (ou 68) movimentos (partes); porém,
mesmo longa, a obra consegue envolver a plateia e os músicos de forma
impressionante.
Lorna Cooke deVaron
Devo ter tocado esta Paixão
algumas vezes, mas inesquecível foi a versão de uma grande especialista, Lorna
Cooke deVaron, considerada uma das maiores regentes corais do século 20, responsável
pela primeira audição de obras de compositores do porte de Bernstein, Britten,
Copland, Schuller, Barber e outras tantas lendas. A apresentação, incluindo
intervalo para um bufê, durou quatro horas, quatro longas, profundas e inesquecíveis
horas. Ao terminá-la, a sensação era de estarmos irmanados em espírito aos
colegas das orquestras, coros e público, em um quase silêncio, à beira da
exaustão. Uma imersão na grandiosidade de uma obra-prima, com a orquestra da
NEC tendo Mrs. deVaron à frente é um mergulho na própria mente e na
espiritualidade humana, independentemente do credo religioso e mesmo de fé. Interessante é a sensação, logo na abertura, de que aquele
grande número de artistas no palco está a bordo de um enorme barco, perto de zarpar
rumo a uma grande viagem, uma grande imersão, da angústia final à morte de
Cristo: o maior drama dos cristãos, gerador de uma das mais arrebatadoras obras
de arte jamais esculpidas pelas mãos de um homem. Talvez a que mais nos faça
respirar em patamares um pouco mais próximos de Deus.
Nos minutos finais, Wir setzen uns mit Tränen nieder(Nós nos Sentamos entre Lágrimas), o coro I
dialoga com o coro II, que repete, insistentemente: Ruhe sanfte, sanfte ruh ("Reste em Paz, em Paz Reste!"), ao
que a seguir o coro I revela: "Vossa sepultura e vossa lápide deverão ser,
para a consciência do sofrimento, um conforto e um local de repouso para a
alma. Em grande júbilo, ali os olhos do Senhor adormecem". (Veja e ouça acima).
No final do século 18, na França, e em especial em Paris,
surgiu a ideia de que todas as escolas deveriam oferecer o Canto Orfeônico como
disciplina. Orphéon é palavra que
designa instrumento de música, e seu sentido foi ampliado para vozes masculinas
ou mistas, ou ainda sociedades amadoras musicais. A expressão surgiu em 1767, e a prática
escolar no início do século 19.
Um Villa filosófico...
Villa-Lobos (1887-1959) escreveu, com toques de decreto lapidar:
“A todo o povo assiste o direito de ter, sentir e apreciar a sua arte, oriunda
da expressão popular ...". E prosseguiu: “A música, eu a considero, em
princípio, como um indispensável alimento da alma humana. Por conseguinte, um
elemento e fator imprescindível à educação da juventude". Defendendo a ideia da música nas escolas
brasileiras, chegou à sua tese: “O ensino e a prática do canto orfeônico
nas escolas impõe-se como uma solução lógica”.
João Gomes Júnior (1868-1963, foto), compositor paulista, já no
início do século 20 tratava de fomentar um movimento musical nas chamadas
escolas normais (formação de professores). Em 1932, no Rio de Janeiro, como
superintente da Educação Musical Artística (SEMA), Villa elaborou o curso de
preparação de professores para a prática do Canto Orfeônico, o que resultou,
dez anos depois, na criação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico,
ligado ao Ministério da Educação e Saúde. O aprendizado no formato preconizado
por Villa revestiu-se de sucesso tal que foi criado o Orfeão dos Professores,
com nada menos do que 250 vozes.
Getúlio Vergas e estudantes
A função dos orfeões era, além da música,
fazer os alunos abraçarem o espírito cívico, mas ao gosto do espírito populista
de Getúlio Vargas, inspirando-se no fascismo Mussolinista, pelo qual ele nutria
simpatias pessoais.
Os Orfeões, perfilados como nos desfiles cívicos das escolas
do Estado Novo, poderiam ser ótimos aliados na massificação das crianças. E
todos cantavam o Hino Nacional Brasileiro, o Hino à Bandeira e outros de
reverência nacional. Paralelamente, obsessão que era de Villa-Lobos, vinha a
preservação da cultura dos sertões brasileiros, o folclore nacional, que
conhecera a fundo em suas longas viagens de pesquisa, cantigas que em boa parte
foram publicadas no seu Guia Prático.
No Guia, aprendia-se “Pai Francisco entrou na roda / tocando
seu violão, pararanpanpão,
pararanpanpão”, ou o tradicional “Atirei o pau no gato-to / mas o
gato-to não morreu-reu-reu”, linda canção que
a mediocridade da patrulha politicamente correta tentou mutilar
recentemente, nas vozes de apresentadoras loiras de programas infantis de TV:
“Não atire o pau no gato-to”.
Manuscrito de Villa para o Guia Prático
E quem não se lembra da junina “Chegou a hora
da fogueira / é noite de São João”; de “Cai cai, balão / cai cai, balão / aqui
na minha mão”, e de tantas e tantas cantigas e quadrilhas? Muita gente foi
educada nesse período, fase em que se enaltecia o espírito cívico e o rico
folclore nacional.
Martin Braunwieser
O grande musicólogo Mário de Andrade (1893-1945), uma vez
empossado Diretor de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura de São Paulo
(1935), trouxe de Viena um grande nome para a música brasileira: Martin Braunwieser (1901-1991), ex-aluno
de Neukomm (1778-1858). Logo, Andrade empossou Braunwieser no cargo de Inspetor de Canto dos Parques e Jardins de
São Paulo. Desde o início, o novo Inspetor ficou assustado com os erros dos
jovens dos parques paulistanos ao cantarem o Hino Nacional: “do que a terra
margarida”, “em teus seios ó liberdade” (seria a visão juvenil de que seios
devam andar sempre em pares?), e por aí vai. Passou a registrar esses erros,
publicando-os depois sob o título Erros e Defeitos no Modo de Cantar o Hino
Nacional (1946).
A Independência, às margens do riacho Ipiranga
A ignorância era tamanha que apenas os erros mais comuns
passavam de uma centena, e, ingrata surpresa, no Parque do Ipiranga, logo ali
em cujas margens D. Pedro de Alcântara deu o famoso brado, os jovens não sabiam
onde aconteceu o ato da Independência, embora cantassem “Ouviram do Ipiranga as
margens plácidas” – ou seja, não tinham ideia do que estavam cantando e nem
onde pisavam. E a música do Hino? Ora, não há espaço para nos aprofundarmos em
detalhes: Braunwieser coletou tamanhos absurdos que ouviu que fariam corar até
mesmo um iniciante na arte musical. Erros melódicos cuja maior parte continua
sendo cometida por quase todos: o hino é atropelado sempre, sempre e sempre.
As LDB (Leis de Diretrizes e Bases) 4.024/61, 5.692/71 e
9.394/96 terminaram por eliminar o ensino da música como disciplina. No auge da
ditadura, 1971, não interessava agregar, e sim desagregar. Um grupo de jovens
poderia ser interpretado como sinal de perigo: para a repressão, dois era
conversa, três reunião. Se estávamos em grupo de quatro, era para andar,
mantendo distância, em dois pares. Para quem não conheceu isso, pode parecer
incrível, mas era verdade.
Assembleia Legislativa
Há alguns anos fui convidado para uma certa Frente
Parlamentar pela Inclusão da Música no Ensino Escolar, e logo fui nomeado seu
presidente suprapartidário na ALESP. Não demorou muito, a desorganização e o
corporativismo me levaram a abrir mão do cargo; particularmente, achava que a
proposta era muito difícil de lograr êxito. Contudo, um projeto de 2008 (Lei
2.732) foi aprovado no Senado, alterando a LDB de 1996, o que nos trouxe grande
satisfação. Parece um grande presente, mas é daqueles mimos que não se sabe
onde guardar e o que fazer com ele. As dificuldades são de pessoal, que se
traduz por grandes aportes financeiros. Somente tratando-se de São Paulo (e
apenas das públicas), há mais de 5.000 escolas, e na capital outras 1.000. Os
números são assustadores, mesmo sem contar as particulares. A saída é buscar
entre os professores das redes os que estão aptos a cantar e lecionar para seus
alunos, o que não é tarefa impossível. Não é o ideal, mas pode ser o começo.
Alegria, alegria! Logo chegam as festas juninas. Porém, que
triste: ninguém canta mais, só tocam CDs de apresentadoras de TV e duplas ‘sertanejas’ country, coisas que passam ao largo de nosso folclore e tradição. Nosso canto popular e nosso
folclore estão morrendo. Cabe a nós todos, educadores, tentar salvá-los.
Não sou conhecedor da maçonaria,
mas para falar de Mozart e sua “Flauta”, é preciso introduzir um pouco o
assunto, para melhor compreensão desta maravilhosa ópera (assim como outras
obras do autor), com todos os seus símbolos e significados. Às origens: a maçonaria fincaria suas origens
nos egípcios, nos caldeus ou na Mesopotâmia, segundo alguns, ou ainda no
Templo do Rei Salomão, segundo outros tantos.
Na Europa, a maçonaria sempre
esteve associada ao ofício dos pedreiros, reunidos em guildas, espécies de
associações de classe informais. Em francês, maçon, em alemão Maurer,
e em inglês mason, significam
pedreiro, antes mesmo de designar um membro da Franc-maçonerie, da Freimaurerei,
ou da Freemasonry americana.
Essa última, levada para a América
pelos primeiros colonos, com seus símbolos e signos gravados até mesmo na nota
de um dólar: várias alusões ao número 13 e às 13 colônias que ergueram o país,
além da pirâmide e o olho do Grande Arquiteto.
Harry Truman e seu apron (Bib. do Congresso)
A maçonaria americana chegou a
eleger perto de 20 presidentes, como o venerável Harry Truman, cujo retrato na
Biblioteca do Congresso (EUA) o mostra paramentado com o apron (espécie de avental) da organização.
Stalin, Roosevelt e Churchill
Para compreender melhor a
dimensão da maçonaria no mundo, basta lembrar que os três grandes homens que se
uniram contra Hitler, derrubando a II Guerra – Stalin, Roosevelt e Churchil -,
eram todos maçons, cada um em sua linha.
O Marquês de Pombal
No Brasil, a maçonaria chegou a
bordo do Império, com todos os seus símbolos e grande força, tendo no notável
iluminista lusitano Marquês de Pombal um de seus próceres na corte real
portuguesa. Símbolos maçons como o compasso, a letra “G” e a régua ainda são
vistos na antiga capital do Império, o Rio de Janeiro, e mesmo onde o Imperador
deixou sua marca histórica, a aprazível e serrana Petrópolis, no Estado do Rio,
residência imperial de verão (sem falar de Campinas, João Pessoa e outras
cidades).
Maestro Eleazar de Carvalho
A organização avança na República
de Deodoro, e, mesmo não tendo a força política da Freemasonry americana, ainda assim abriu espaço para muitos de seus
homens no poder. Na música, entre alguns nomes, destaca-se o do grande maestro
Eleazar de Carvalho.
Capa da Die Freimaurer (O livre-maçon), cantata de Mozart
Pois vamos para
Viena, cidade natal de Mozart e de sua Die
Zauberflöte, ou A Flauta Mágica. O Iluminismo chega à Alemanha em 1776,
fase em que o compositor, aos 20 anos, já tinha escrito dez óperas. Depois
disso, entre inúmeras outras obras, destaca-se imponente a Maurerische Trauermusik, ou Funeral Maçônico.
Schikaneder, o libretista maçon
Na “Flauta” (1791), vários símbolos
da sociedade secreta da época estão presentes, pois além de Mozart, também
Schikaneder, responsável pelo libreto (texto), era maçon. Outro grande mestre,
o escritor e pensador Wolfgang Goethe, chegou a observar que “as grandes
multidões vão se divertir na ópera, mas sua alta significância não escapará dos
iniciados (na maçonaria).
Tamino e Pamina: Royal Opera House
A armadura de clave, mi bemol
maior, com 3 bemóis (si, mi e lá) na partitura, as três entradas dos
instrumentos de metal logo no início, três casais, três gênios, três fadas,
três templos (sabedoria, razão e natureza), os três guias de Tamino e
Papageno... tudo o que um bom iniciado gostaria de ir decifrando nessa obra
divertida, que é também uma crítica aos costumes e à política da época. As cenas
se desenrolam em espírito de Singspiel,
espécie de diversão musical germânica como a ópera cômica francesa. Depois
desta, em 1791, Mozart ainda compôs mais duas óperas, mas a “Flauta” parece ter
sido um dos marcos de maior importância na obra do jovem gênio, falecido
naquele mesmo ano.
Papageno e Papagena
À trama: o Rei do Sol,
Sarastro, sacerdote de religiosos que pregam o amor, consegue raptar Pamina, filha
da terrível Rainha da Noite, a fim de salvá-la da maldade materna. A Rainha
manda o príncipe Tamino resgatar Pamina, missão em que tem como companheiro
Papageno, “o caçador de pássaros”, personagem vestido com uma cômica fantasia
de um desses animais. Não faltam guizos e flautas, inebriando os animais dos
bosques, e até Sarastro, que aparece e perdoa Pamina. Contudo, sobrevém um
inesperado caso de amor: Pamina e o príncipe Tamino se apaixonam, e seguem o
lado do bem de Sarastro. Surgem as provas para Tamino e Papageno, sendo a
primeira a travessia do Templo da Escuridão, em que não podiam violar o mais
absoluto silêncio. As duas outras provas foram as do fogo e da água, que Tamino
e Pamina venceram com a ajuda dos poderes misteriosos da flauta mágica. Diante
disso, os dois são aceitos como iniciados, e brindados com um belo coro: “vocês
conseguiram atravessar as Trevas!” (A Dama da Noite já desaparecera, temente à
luz que resplandecia).
Maria Therese da Áustria
Essa a enorme revelação maçônica de Mozart, e de
sua visão do bem contra o mal, das trevas contra a luz. A “Flauta”,
veladamente, traz a crítica política do compositor: o príncipe Tamino seria o
Imperador Joseph II, e sua amada Pamina o povo da Áustria. Já a Dama da
Noite, maléfica, representa os piores males obscurantistas, e é na verdade a
terrível imperatriz Maria-Therese, mãe de Joseph II e declarada
anti-maçônica. No final dos dois atos, o coro canta: Dann ist die
Erd' ein Himmelreich, und Sterbliche den Göttern gleich – “A Terra como um reino celestial, e os mortais como deuses”.
Filme de Bargman
Existe uma “Flauta” absolutamente fantástica (1975), dirigida pelo
grande cineasta sueco Ingmar Bergman, DVD ainda encontrável nos
videoclubes. Arte e diversão pura. Na
ópera, duas árias são insuperáveis: o duo Papageno e Papagena, de graça
impagável, que pode ser visto (com legendas em inglês) e ouvido abaixo:
Igualmente
fantástica é a ária da Dama da Noite, cujas exigências técnicas não a
reservam para qualquer soprano. Adiante, veja e ouça e excelente Diana
Damrau, como a Rainha da Noite, à frente da Royal Opera House Covent Garden
de Londres. Divirtam-se.
(200 anos de
nascimento e 130 da morte de Richard Wagner)
Richard Wagner (1813-1883) foi um
compositor de espírito alemão por excelência. Carregava na bagagem toda a vasta
literatura e filosofia germânica, e em especial o que de melhor existe na
música. Foi um músico venerado por muitos, odiado por outros tantos, além de
ter sido um literato respeitado, um artista completo. Assumiu posições radicais
que o levaram, por tempos, a abraçar o vegetarianismo, o antissemitismo e
atacar nomes como Felix Mendelssohn, compositor judeu convertido ao
Cristianismo, assim como Meyerbeer, alvo principal do panfleto Das Judentum in der Musik (O Judaísmo na
Música).
Cosima e Wagner
Gênio extremamente confuso - para
não dizer um tanto quanto louco -, em suas longas óperas o compositor tratava
de casos de amor tão intricados quanto aqueles que viveu em sua intensa vida
pessoal. Wagner manteve um romance com Cosima, filha do grande virtuose do
piano Liszt, que, adoecido, não percebeu que um “contratema” se desenrolava nos
bastidores da ópera particular e sem título do coração de sua filha.
Hans Von Büllow
Cosima era casada com o grande
regente Hans Von Büllow, mas acabou se apaixonando por Wagner, e dele deixou-se
engravidar. Büllow, marido de Cosima, foi o primeiro regente não-compositor, à
maneira da maioria dos profissionais nos dias de hoje. Ironicamente, Büllow era
grande admirador de Wagner, cujas óperas regeu diversas vezes. Pois até com o
maestro já doente, fervia o caso amoroso de Wagner e Cosima, aventura de alguns
meses até mesmo sob o teto dos próprios esposos.
Tristão e Isolda, que tem libreto
em alemão e música integralmente criados por Wagner, é um drama a que ele
chamou “Ação Musical em Três Atos”. Foi estreada em Munique em 1865, sob a
batuta de ninguém menos do que o próprio Von Büllow, marido de Cosima. Muito
apegado às histórias e estórias das mais diversas e remotas origens, Wagner,
nesta ópera (como em outras), penetrou no rico universo das lendas célticas;
apesar de criticada na época por suas inovações, a obra terminou consolidada
como o grande divisor de águas, o marco da libertação das regras dos clássicos
e românticos que o antecederam, tomando o rumo do futuro e a direção ao
atonalismo (música sem centro tonal, aberta a múltiplas novas invenções). Por
sua complexidade e duração, Tristão e Isolda foi ensaiada 70 vezes durante dois
anos, pela Ópera de Viena, até que houveram por bem concluir que a montagem era
tarefa impossível.
O Castelo de Corwall
O Liebestod (amor-morte) de Tristão e Isolda é contaminado pelas
influências de um conterrâneo de Wagner, o filósofo do pessimismo,
Schoppenhauer. Assim como em O Navio Fantasma, a história de Tristão, um nobre
da Bretanha, e Isolda, princesa da Irlanda, abre tendo como cenário um navio.
Tristão, com a ajuda de seu criado Kurwenal, foi encarregado de levar a
princesa para que ela se casasse com o Rei Marcos (King Marke), de Cornwall,
seu tio.
Tristão, Isolda e a poção do amor. Waterhouse, @ 1906
Tristão,
tendo matado Morold, noivo de Isolde, dela recebia apenas sentimentos de rancor
pelo assassinato de seu par. Ela confia a Brangäine, criada e confidente, a
preparação de uma poção mortal, para brindar com Tristão, uma despedida para a
partida de ambos deste mundo rumo ao além. Porém, Brangäine não cumpriu a
determinação de sua ama Isolde e, em segredo, ao invés de um veneno mortal
despejou nas taças uma poção, um milagroso filtro de amor. Após o brinde,
Tristão e Isolda se olham, mas a esperança de que ambos morreriam envenenados
os frustrou – aguardava-os apenas o efeito da poção, que desconheciam, e que
logo viria a fazer efeito.
O Rei Marcos de Cornwall finalmente
desposa Isolda, mas logo durante sua primeira viagem de caça, ela e Tristão,
inebriados pela magia do filtro de amor que unia seus corações, abraçam-se,
beijam-se e se entregam como loucos amantes, perdidos nos belos jardins do
palácio real. Chegando de suas aventuras de caçador, o Rei, já sabendo da
traição de Isolde, vê Melot, seu guardião pessoal, ferir seriamente Tristão; o
próprio soberano impede, por misericórdia, o golpe mortal de seu servo.
O Rei Marcos e a bela Isolda
Tristão
sofre em razão do ferimento, e enquanto vai-se esvaindo, implora por Isolda e
pela morte, que não lhe respondem, deixando-o alucinado e em desespero.
Tristão, ao ouvir que um navio havia chegado, e que nele chegara Isolda,
consegue se levantar e ao reencontrá-la se joga nos braços da amada, abrigo
para seu último suspiro. Tristão cai, e Isolda desfalece sobre seu corpo. Surge
em cena o Rei Marcos, que perdoa Isolda, sabendo do filtro do amor que aos
amantes fora dado às ocultas pela criada Brangäine, julgando que aquela poção
fora a causa da paixão entre os dois enamorados.
Morte de Tristão. Óleo sobre tela de Mariane Stokes. 1902
Abraçada ao corpo inerte de seu amado, Isolda canta uma melodia plangente e
profunda, implorando pelo mundo distante em que ela e sua metade de amor um dia
se encontrarão. É um canto lindíssimo, um lamento cortante, envolvente; Isolda
faz ouvir, do mais profundo de seu coração, sua desesperada expressão de amor:
“no fulgor da luz eterna, eu me entrego e me rejubilo”.
Relevo em Marfim: Tristão e Isolda, sob os olhos do Rei Marcos
Talvez o leitor ache curioso,
mas, voltando à vida real, Cosima, esposa e paixão de Wagner, fez com ele um
pacto secreto de amor: quando o compositor morresse, ela se envenenaria, para
ambos partirem juntos para o além. Talvez fosse até absurdo, sim, nos dias de
hoje, se não estivéssemos falando de Wagner e sua ópera Tristão e Isolda.
Há
inúmeras gravações desta ópera, mas uma antiga de Furtwängler para a EMI é
histórica. Para quem quer conhecer o lindíssimo Prelúdio, o Youtube
disponibiliza uma gravação de Zubin Mehta à frente da Bayerische Staatsoper,
coisa de tirar o fôlego.
Para
ouvir o Liebestod, uma comovente
gravação na voz maravilhosa de Leontyne Price, trecho em que Isolda canta com
ardor seu desespero: “suave e gentilmente / como ele sorri / vocês não veem? /
vocês não veem? / (...) será que sou a única a ouvir essa melodia?”. Ouça
abaixo o Liebestod, com a diva. Uma
experiência Inesquecível.
Era comum, especialmente em tempos
de Idade Média, religiosos e estudiosos dedicarem-se à filosofia, astronomia,astrologia
e mesmo predições e ocultismo. Dos autores, o mais incensado é Nostradamus, cujas
predições (e nunca profecias) servem para explicar tudo sobre nada, uma vez que
traduzido a partir do francês arcaico, grego, latim e provençal originais para
o francês moderno e daí para o inglês e o italiano, até chegar ao português
cria-se uma Babel ocultista, conectada às predições catastróficas que andam
grassando pelas redes sociais. Outro belo escrito é The Cloud of Unknowing (A Nuvem do Desconhecimento), de um monge
beneditino inglês do século 14 que cuidou de se manter anônimo, livro que no Brasil
já no título foi traduzido equivocadamente para o português: “A Nuvem do Não
Saber” (SP: Ed. Paulus), na verdade um manual de meditação e contemplação
escrito para iniciados.
Estava em Paris. A
passeio, e por simples hobby genealógico, fui ao Cimetière de La Gervais, no
Departamento de Isère, coisa de 20 minutos de Paris, em busca de certa Adèle
Autran, falecida em 1784, talvez o mais antigo registro de parente que pude
encontrar. Fotografei o túmulo da distante ancestral, e ao sair da viela para a
ala principal cruzei com um casal de pesquisadores, Jean-Marie e Therèse, e logo
eles se apresentaram. Os parisienses tinham uma prosa das mais interessantes
que pude ouvir em vida. Jean relatou-me sua pesquisa sobre os manuscritos do
Abade de Chaalis e, como iam para aquele vilarejo na Picardia, convidaram-me
para acompanhá-los.
Ruínas da Abadia de Chaalis
Era o inverno de 1987 e fazia muito
frio no norte; assim mesmo, no dia seguinte pegamos o trem e chegamos depois de
longa viagem e muita conversa. Fomos à Abadia, sob muita neve, e Jean
revelou-me que tinha copiado de punho (o neto de Rabbath, que tinha a posse do
material, não permitiu cópias reprográficas) vários trechos do manuscrito Du Traité des Prédictions (Do Tratado
das Predições), do Abade, tema do pós-doutorado de Jean na Sorbonne II.
Pedi-lhe para fazer anotações de alguns trechos, no que gentilmente
acedeu.
Reli minhas notas no voo de retorno
ao Brasil, e achei trechos extraordinários, e agora se torna oportuno revelá-los.
Ora, vejamos: “O homem se esconderá em pele animal, e transformado em besta
tentará devorar seus irmãos e dominar o grande continente (N. do A.: a Europa),
destruindo os que não lhe dividam o sangue com seu sangue”.
Bomba sobre Hiroshima
Mais: “A fúria do animal somente
estancará ante o poder de um artefato com a força de um astro que cai do céu,
um engenho mais destruidor do que um batalhão de catapultas, que causará mais
mortes do que a mais negra das pestes” (claro, o Abade falava em Hitler e
Hiroshima). E segue: “Uma vida depois (N. do A.: a conta de uma vida média de
uns 50 e poucos anos, no pós-guerra, nos levaria ao final do século 20), o
grande templo verá 8 soberanos de longos e curtos reinados.
Ao próximo, o 9º após 100 anos
findos, caberá domar a ameaça das trevas, e devolverá a flâmula encarnada do
escaravelho” (N. do A.: o estandarte vermelho papal (foto abaixo), cujo brasão
central lembra o inseto). “E ele jogará as contas no tabuleiro, para que os
novos caminhos sejam decididos por alea
(dados)”. (N. do A.: aqui Jean-Marie usou promenades,
passeios, mas parece que o melhor em português seria mesmo “caminhos”).
A "flâmula encarnada do escaravelho"
Sem alucinações, é claro que os 8
soberanos são os 8 papas do século 20, uns de pontificado curto, como João Paulo
I, e outros de trajetória mais longa. “Jogar as contas na mesa do jogo para que
os dados decidam” é tarefa que caberia a Bento XVI, o de número 9, virados 100
anos, contabilidade que também parece bastante óbvia. “O astro primeiro (a
Terra, na visão geocentrista da época) não será arremessado às trevas, e menos
mortes se sucederão a cada guerra”. “Grandes
‘étoilants’ (N. do A.: corpos celestes) não cravejarão o solo criado para o
homem plantar e colher”, indicando que nenhum fenômeno celeste interferirá na
vida sobre a terra.
Pois bem, leitor, vou pedir licença
e mil desculpas. Os dados deste texto são rigorosamente corretos, os locais
existem, o Abade de Chaalis existiu, mas os manuscritos, as previsões, Adèle
Autran, Jean-Marie e Thèrese, Rabbath e essa viagem... nunca existiram. São
pura invencionice minha. Explico. Tenho recebido na rede social da Internet
traduções e interpretações hilárias das predições de Nostradamus, ou Michel de
Nostredame (nome original), nascido em Saint-Rémy-de-Provence três séculos
depois do “meu” Abade. Alguns textos postados e suas respectivas
interpretações, compartilhadas e reproduzidas como coelhos insaciáveis, são de
morrer de rir. Uma delas fala de Czares e Roma. “O homem forte de Roma
cairá...”, como se o Papa Bento XVI fosse homem de Roma, e não do Vaticano. Em meu e-book, tenho duas versões (bem
mais confiáveis do que essas traduções de terceira mão de Nostredame para o
português). Uma delas é a de Mario Reading, em inglês, e a outra é uma bem antiga
italiana, autor desconhecido. Referências a Roma, Rome, Czar ou Tzar não
existem nesses textos. Quando muito, falam em romanos.
A dança dos "vampiros" de Polanski
Recentemente, houve um debate sobre
a obra de Paulo Coelho, “escritor mago”, a quem eu reputo como não sendo nem
uma coisa nem outra - apenas uma leitura ligeira, quando muito, diversão para
quem gosta. Com alguns dados na mão, estudiosos – inclusive de magia,
vampirismo e coisas afins – tiraram o Coelho da cartola, mostrando como se cria
ficção a partir de dados existentes e sem aprofundamento algum, para vendê-la
como mitologia e verdades herméticas, assim como nessas linhas passadas eu
brinquei de tentar iludir (pela primeira e última vez). Aliás, gosto sim de
vampiros: “O Vampiro de Curitiba”, livro de contos de Dalton Trevisan, M, o
Vampiro de Düsseldorf, filme histórico de Fritz Lang (1931), e O Caçador de
Vampiros, de Polanski (1967). São bruxarias que valem a pena.