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sábado, 23 de março de 2013

...E NOSSAS CRIANÇAS NÃO CANTAM MAIS!

Orphéon Harmonie

No final do século 18, na França, e em especial em Paris, surgiu a ideia de que todas as escolas deveriam oferecer o Canto Orfeônico como disciplina. Orphéon é palavra que designa instrumento de música, e seu sentido foi ampliado para vozes masculinas ou mistas, ou ainda sociedades amadoras musicais.  A expressão surgiu em 1767, e a prática escolar no início do século 19.
Um Villa filosófico...
Villa-Lobos (1887-1959) escreveu, com toques de decreto lapidar: “A todo o povo assiste o direito de ter, sentir e apreciar a sua arte, oriunda da expressão popular ...". E prosseguiu:  “A música, eu a considero, em princípio, como um indispensável alimento da alma humana. Por conseguinte, um elemento e fator imprescindível à educação da juventude". Defendendo a ideia da música nas escolas brasileiras, chegou à sua tese: “O ensino e a prática do canto orfeônico nas escolas impõe-se como uma solução lógica”.
João Gomes Júnior (1868-1963, foto), compositor paulista, já no início do século 20 tratava de fomentar um movimento musical nas chamadas escolas normais (formação de professores). Em 1932, no Rio de Janeiro, como superintente da Educação Musical Artística (SEMA), Villa elaborou o curso de preparação de professores para a prática do Canto Orfeônico, o que resultou, dez anos depois, na criação do Conservatório Nacional de Canto Orfeônico, ligado ao Ministério da Educação e Saúde. O aprendizado no formato preconizado por Villa revestiu-se de sucesso tal que foi criado o Orfeão dos Professores, com nada menos do que 250 vozes.
Getúlio Vergas e estudantes
A função dos orfeões era, além da música, fazer os alunos abraçarem o espírito cívico, mas ao gosto do espírito populista de Getúlio Vargas, inspirando-se no fascismo Mussolinista, pelo qual ele nutria simpatias pessoais.
Os Orfeões, perfilados como nos desfiles cívicos das escolas do Estado Novo, poderiam ser ótimos aliados na massificação das crianças. E todos cantavam o Hino Nacional Brasileiro, o Hino à Bandeira e outros de reverência nacional. Paralelamente, obsessão que era de Villa-Lobos, vinha a preservação da cultura dos sertões brasileiros, o folclore nacional, que conhecera a fundo em suas longas viagens de pesquisa, cantigas que em boa parte foram publicadas no seu Guia Prático. 
No Guia, aprendia-se “Pai Francisco entrou na roda / tocando seu violão, pararanpanpão,  pararanpanpão”, ou o tradicional “Atirei o pau no gato-to / mas o gato-to não morreu-reu-reu”, linda canção que  a mediocridade da patrulha politicamente correta tentou mutilar recentemente, nas vozes de apresentadoras loiras de programas infantis de TV: “Não atire o pau no gato-to”.
Manuscrito de Villa para o Guia Prático
E quem não se lembra da junina “Chegou a hora da fogueira / é noite de São João”; de “Cai cai, balão / cai cai, balão / aqui na minha mão”, e de tantas e tantas cantigas e quadrilhas? Muita gente foi educada nesse período, fase em que se enaltecia o espírito cívico e o rico folclore nacional.

Martin Braunwieser
O grande musicólogo Mário de Andrade (1893-1945), uma vez empossado Diretor de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura de São Paulo (1935), trouxe de Viena um grande nome para a música brasileira: Martin Braunwieser (1901-1991), ex-aluno de Neukomm (1778-1858). Logo, Andrade empossou Braunwieser no cargo de Inspetor de Canto dos Parques e Jardins de São Paulo. Desde o início, o novo Inspetor ficou assustado com os erros dos jovens dos parques paulistanos ao cantarem o Hino Nacional: “do que a terra margarida”, “em teus seios ó liberdade” (seria a visão juvenil de que seios devam andar sempre em pares?), e por aí vai. Passou a registrar esses erros, publicando-os depois sob o título Erros e Defeitos no Modo de Cantar o Hino Nacional (1946).
A Independência, às margens do riacho Ipiranga
A ignorância era tamanha que apenas os erros mais comuns passavam de uma centena, e, ingrata surpresa, no Parque do Ipiranga, logo ali em cujas margens D. Pedro de Alcântara deu o famoso brado, os jovens não sabiam onde aconteceu o ato da Independência, embora cantassem “Ouviram do Ipiranga as margens plácidas” – ou seja, não tinham ideia do que estavam cantando e nem onde pisavam. E a música do Hino? Ora, não há espaço para nos aprofundarmos em detalhes: Braunwieser coletou tamanhos absurdos que ouviu que fariam corar até mesmo um iniciante na arte musical. Erros melódicos cuja maior parte continua sendo cometida por quase todos: o hino é atropelado sempre, sempre e sempre.
As LDB (Leis de Diretrizes e Bases) 4.024/61, 5.692/71 e 9.394/96 terminaram por eliminar o ensino da música como disciplina. No auge da ditadura, 1971, não interessava agregar, e sim desagregar. Um grupo de jovens poderia ser interpretado como sinal de perigo: para a repressão, dois era conversa, três reunião. Se estávamos em grupo de quatro, era para andar, mantendo distância, em dois pares. Para quem não conheceu isso, pode parecer incrível, mas era verdade.
Assembleia Legislativa
Há alguns anos fui convidado para uma certa Frente Parlamentar pela Inclusão da Música no Ensino Escolar, e logo fui nomeado seu presidente suprapartidário na ALESP. Não demorou muito, a desorganização e o corporativismo me levaram a abrir mão do cargo; particularmente, achava que a proposta era muito difícil de lograr êxito. Contudo, um projeto de 2008 (Lei 2.732) foi aprovado no Senado, alterando a LDB de 1996, o que nos trouxe grande satisfação. Parece um grande presente, mas é daqueles mimos que não se sabe onde guardar e o que fazer com ele. As dificuldades são de pessoal, que se traduz por grandes aportes financeiros. Somente tratando-se de São Paulo (e apenas das públicas), há mais de 5.000 escolas, e na capital outras 1.000. Os números são assustadores, mesmo sem contar as particulares. A saída é buscar entre os professores das redes os que estão aptos a cantar e lecionar para seus alunos, o que não é tarefa impossível. Não é o ideal, mas pode ser o começo.
Alegria, alegria! Logo chegam as festas juninas. Porém, que triste: ninguém canta mais, só tocam CDs de apresentadoras de TV e duplas ‘sertanejas’ country, coisas que passam ao largo de nosso folclore e tradição. Nosso canto popular e nosso folclore estão morrendo. Cabe a nós todos, educadores, tentar salvá-los.

2 comentários:

  1. Bom dia Henrique!
    Quero parabenizá-lo por suas matérias.
    Sou filha de professôra de piano e canto,Prof.Dodô,que é falecida.Sei o quanto é indispensável as aulas nas escolas.Minha mãe foi uma das fundadoras do Conservatório do Colégio Santa Marcelina de Botucatu.
    Deixo aqui meus aplausos por tão nobre causa que estás defendendo.
    Grande abraço,Almerinda.

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