Michel de Nostredame |
Era comum, especialmente em tempos
de Idade Média, religiosos e estudiosos dedicarem-se à filosofia, astronomia,astrologia
e mesmo predições e ocultismo. Dos autores, o mais incensado é Nostradamus, cujas
predições (e nunca profecias) servem para explicar tudo sobre nada, uma vez que
traduzido a partir do francês arcaico, grego, latim e provençal originais para
o francês moderno e daí para o inglês e o italiano, até chegar ao português
cria-se uma Babel ocultista, conectada às predições catastróficas que andam
grassando pelas redes sociais. Outro belo escrito é The Cloud of Unknowing (A Nuvem do Desconhecimento), de um monge
beneditino inglês do século 14 que cuidou de se manter anônimo, livro que no Brasil
já no título foi traduzido equivocadamente para o português: “A Nuvem do Não
Saber” (SP: Ed. Paulus), na verdade um manual de meditação e contemplação
escrito para iniciados.
Manuscrito do Abade de Chaalis |
Mas vamos para
a França, Ordem de Cîteaux, pontificado do Papa João XXII, no mesmo século 14.
O Abade de Chaalis (povoado que hoje tem apenas 320 habitantes), na região da
Picardia, embora divulgasse seus manuscritos, a um deles reservou segredo,
mantendo o original escondido, temendo a Inquisição instalada duzentos anos
antes em Langedoc, no sul da França. Esses originais foram encontrados no
século 19 por Pierre Louis Rabbath, um pesquisador do Loire que teve a sorte de
poder copiá-los manualmente, antes que os originais viessem a desaparecer anos
depois. Mas vejamos como tomei conhecimento desses textos de riqueza
extraordinária, e cuja “tradução” para o francês moderno me foi ditada por um
filólogo da Sorbonne que tive o prazer de conhecer em uma viagem à França, há
uns bons anos.
Cimetière de La Gervais |
Estava em Paris. A
passeio, e por simples hobby genealógico, fui ao Cimetière de La Gervais, no
Departamento de Isère, coisa de 20 minutos de Paris, em busca de certa Adèle
Autran, falecida em 1784, talvez o mais antigo registro de parente que pude
encontrar. Fotografei o túmulo da distante ancestral, e ao sair da viela para a
ala principal cruzei com um casal de pesquisadores, Jean-Marie e Therèse, e logo
eles se apresentaram. Os parisienses tinham uma prosa das mais interessantes
que pude ouvir em vida. Jean relatou-me sua pesquisa sobre os manuscritos do
Abade de Chaalis e, como iam para aquele vilarejo na Picardia, convidaram-me
para acompanhá-los.
Ruínas da Abadia de Chaalis |
Era o inverno de 1987 e fazia muito
frio no norte; assim mesmo, no dia seguinte pegamos o trem e chegamos depois de
longa viagem e muita conversa. Fomos à Abadia, sob muita neve, e Jean
revelou-me que tinha copiado de punho (o neto de Rabbath, que tinha a posse do
material, não permitiu cópias reprográficas) vários trechos do manuscrito Du Traité des Prédictions (Do Tratado
das Predições), do Abade, tema do pós-doutorado de Jean na Sorbonne II.
Pedi-lhe para fazer anotações de alguns trechos, no que gentilmente
acedeu.
Reli minhas notas no voo de retorno
ao Brasil, e achei trechos extraordinários, e agora se torna oportuno revelá-los.
Ora, vejamos: “O homem se esconderá em pele animal, e transformado em besta
tentará devorar seus irmãos e dominar o grande continente (N. do A.: a Europa),
destruindo os que não lhe dividam o sangue com seu sangue”.
Bomba sobre Hiroshima |
Mais: “A fúria do animal somente
estancará ante o poder de um artefato com a força de um astro que cai do céu,
um engenho mais destruidor do que um batalhão de catapultas, que causará mais
mortes do que a mais negra das pestes” (claro, o Abade falava em Hitler e
Hiroshima). E segue: “Uma vida depois (N. do A.: a conta de uma vida média de
uns 50 e poucos anos, no pós-guerra, nos levaria ao final do século 20), o
grande templo verá 8 soberanos de longos e curtos reinados.
Ao próximo, o 9º após 100 anos
findos, caberá domar a ameaça das trevas, e devolverá a flâmula encarnada do
escaravelho” (N. do A.: o estandarte vermelho papal (foto abaixo), cujo brasão
central lembra o inseto). “E ele jogará as contas no tabuleiro, para que os
novos caminhos sejam decididos por alea
(dados)”. (N. do A.: aqui Jean-Marie usou promenades,
passeios, mas parece que o melhor em português seria mesmo “caminhos”).
A "flâmula encarnada do escaravelho" |
Sem alucinações, é claro que os 8
soberanos são os 8 papas do século 20, uns de pontificado curto, como João Paulo
I, e outros de trajetória mais longa. “Jogar as contas na mesa do jogo para que
os dados decidam” é tarefa que caberia a Bento XVI, o de número 9, virados 100
anos, contabilidade que também parece bastante óbvia. “O astro primeiro (a
Terra, na visão geocentrista da época) não será arremessado às trevas, e menos
mortes se sucederão a cada guerra”. “Grandes
‘étoilants’ (N. do A.: corpos celestes) não cravejarão o solo criado para o
homem plantar e colher”, indicando que nenhum fenômeno celeste interferirá na
vida sobre a terra.
Pois bem, leitor, vou pedir licença
e mil desculpas. Os dados deste texto são rigorosamente corretos, os locais
existem, o Abade de Chaalis existiu, mas os manuscritos, as previsões, Adèle
Autran, Jean-Marie e Thèrese, Rabbath e essa viagem... nunca existiram. São
pura invencionice minha. Explico. Tenho recebido na rede social da Internet
traduções e interpretações hilárias das predições de Nostradamus, ou Michel de
Nostredame (nome original), nascido em Saint-Rémy-de-Provence três séculos
depois do “meu” Abade. Alguns textos postados e suas respectivas
interpretações, compartilhadas e reproduzidas como coelhos insaciáveis, são de
morrer de rir. Uma delas fala de Czares e Roma. “O homem forte de Roma
cairá...”, como se o Papa Bento XVI fosse homem de Roma, e não do Vaticano. Em meu e-book, tenho duas versões (bem
mais confiáveis do que essas traduções de terceira mão de Nostredame para o
português). Uma delas é a de Mario Reading, em inglês, e a outra é uma bem antiga
italiana, autor desconhecido. Referências a Roma, Rome, Czar ou Tzar não
existem nesses textos. Quando muito, falam em romanos.
A dança dos "vampiros" de Polanski |
Recentemente, houve um debate sobre
a obra de Paulo Coelho, “escritor mago”, a quem eu reputo como não sendo nem
uma coisa nem outra - apenas uma leitura ligeira, quando muito, diversão para
quem gosta. Com alguns dados na mão, estudiosos – inclusive de magia,
vampirismo e coisas afins – tiraram o Coelho da cartola, mostrando como se cria
ficção a partir de dados existentes e sem aprofundamento algum, para vendê-la
como mitologia e verdades herméticas, assim como nessas linhas passadas eu
brinquei de tentar iludir (pela primeira e última vez). Aliás, gosto sim de
vampiros: “O Vampiro de Curitiba”, livro de contos de Dalton Trevisan, M, o
Vampiro de Düsseldorf, filme histórico de Fritz Lang (1931), e O Caçador de
Vampiros, de Polanski (1967). São bruxarias que valem a pena.
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