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sábado, 4 de maio de 2013

MICHELANGELO E A CONTEMPLAÇÃO MATERNA



Autógrafo de Michelangelo
A Pietà (Piedade) de Michelangelo, trabalhada entre 1498 e 1499, é uma das mais iluminadas obras-primas da humanidade. A escultura, à perfeição nos menores detalhes, escavados no melhor mármore de Carrara, fora comissionada por encomenda do cardeal francês Jean de Bilhères, embaixador do Rei de França na Santa Sé. Com a morte do prelado, após a conclusão da obra, esta ficou do túmulo do próprio Bilhères, na Capela de Santa Petronilla do Vaticano, e somente em 1749 chegou ao seu destino atual, a primeira capela à direita de quem entra na Basílica. É a única obra que o artista assinou, e o teria feito em um momento de insegurança: uma faixa que cruza o peito de Maria sobre seu ombro esquerdo tem o nome do autor gravado: “Michaelangelus Bonarotus Florentinus Faciebat” (do latim, “feito por Michelangelo Buonarotti, Florentino” – foto acima).

Michelangelo
Michelangelo já teria ouvido que competidores  tentavam copiar-lhe a obra, ainda em execução; porém, o autógrafo que utilizou à guisa de proteger-se causou arrependimento posterior no artista, que teria considerado aquela assinatura um arroubo de vaidade pessoal. Após séculos, a Pietà recebeu seu mais duro golpe: um psicopata, em 1972, adentrou a capela que abriga a estátua portando uma marreta, e com ela tentou destruir a obra, aos gritos de “eu sou Jesus Cristo”, provocando-lhe vários danos, tirando lascas de seu precioso mármore que, em parte, foram  furtadas por visitantes com interesses mesquinhos. O vândalo, com certeza, sentiu-se inconformado com a perfeição materna, a maior grandeza da obra (cabe aí talvez uma interpretação psicanalítica para o gesto insano). Após minuciosos e longos reparos e restauração, a Pietà retorna à capela de origem, mas passa a ser protegida por um vidro resistente a balas de grosso calibre, vândalos e criminosos diversos.


Rosto de Maria
H
á muito o que dizer sobre a visível juventude de Maria na Pietà, que, quando da morte de Cristo, teria algo perto de 50 anos de idade (considerando que o Salvador morreu aos 33). A face eternizada de Maria é de extrema e juvenil beleza, e traduz muito mais a castidade de um olhar quase adolescente do que o sofrimento indizível de uma mãe que perde seu filho adulto após longas sevícias e torturas de inimaginável crueldade. Essa juventude, que aparece também nas mãos – aliás, a marca indelével do avanço da idade feminina -, mãos suaves, lindas e puras, é a concepção da imagem que Michelangelo  quis traduzir: a dor da mãe ainda jovem pela perda do Filho, trocada pelo artista por uma profunda contemplação.

Compondo ainda esse quadro suavizado ainda mais por um silêncio imaterial extraordinário ao se ver obra, sobre o colo da Pietà resta um Salvador martirizado, seviciado e crucificado – mas foram-lhe poupados os sinais de violência em grande profundidade impostos pelos seus algozes. Pelo contrário, são sutis as referências visuais aos pregos nas mãos (e não orifícios rasgados, como seria de se esperar de mãos perfuradas que sustentaram um corpo inteiro) e o discreto ferimento na costela direita, assim como o semblante de um jovem como se estivesse dormindo: surge aí um corpo de Cristo mais doce, um homem jovem, não um retrato cruel de um flagelo sangrento e uma morte cruel. A juvenil Maria tem na obra propositalmente longas pernas, até um pouco desproporcionais ao corpo, porém em tamanho perfeito para acolher o Filho em conforto, junto ao ventre materno.




Lucas, Evangelista
E
m uma das citações mais conhecidas da Bíblia, mais especificamente no Evangelho segundo Lucas, médico de formação nascido na Antióquia, antiga Síria, as traduções dos três grandes papiros (datados do final do século 2) divergem aqui e ali. Há neles uma passagem relatada pelo evangelista com referência ao mesmo período bíblico, da descida da cruz à ressurreição, cuja primeira parte é retratada por Michelangelo em sua Pietà, texto do evangelho a que irei me referir logo adiante. Claro, daquele manuscrito arcaico, passando por diversas versões e traduções, como a Bíblia do Rei James e outras, é de se esperar o desvirtuamento do sentido original do texto, à vista do acúmulo de versões e superposições que terminaram por distorcer diversas partes deste e de outros textos bíblicos. Diz Lucas, naquele versículo (10, 38-41): “...respondendo, Jesus disse-lhe: Marta, Marta, estás preocupada e ansiosa com muitas coisas, mas apenas uma é necessária, e Maria escolheu a parte certa, a qual não lhe será tirada”. Cristo não diria “a melhor parte”, conforme surge em diversas traduções populares, versões que levam muitos a crer que a parte de Maria, segundo Ele, foi “a mais confortável”, ou a mais
aprazível.

Frontispício da Bíblia de Ferreira de Almeida
Na tradução da Bíblia de João Ferreira de Almeida (1628-1691), a primeira feita diretamente dos cinco idiomas originais para o português, pode-se ler neste mesmo trecho “a boa parte”, enquanto algumas outras versões ainda se referem à “parte certa”. E qual seria essa parte, na Pietà de Michelangelo? A contemplação do Cristo que será revivido, do próprio filho retirado da cruz e já sem vida, e o mais sublime gesto maternal, momento retratado pelo artista para nos fazer compreender que aquele Cristo no colo da Pietà é também um jovem, nos braços de sua jovem mãe.


Manuscrito original: "The Cloud"
Do século 15, é mais ou menos bem conhecido hoje um manuscrito feito originalmente apenas para uso interno dos conventos da ordem dos cartuxos, fundada 4 séculos antes. O título da obra é “A Nuvem do Desconhecimento” (do inglês arcaico “The Cloude of Unknowyng”), a meu ver mal traduzido aqui no Brasil como “A Nuvem do Não-Saber”. Tenho uma cópia do antigo texto inglês, cujos ensinamentos dirigem o iniciado à não-materialidade, ao não-pensamento, escritos que são um guia para a contemplação espiritual, levada a um estado da mente próximo à abstração da matéria e da existência. É uma obra importante para quem se interessa pelo assunto, apesar da tradução não muito apurada para o português. O desconhecido monge, dedicado à contemplação e à pobreza, ensina em seu texto a um discípulo (que existiu ou não) o caminho desse não-conhecimento, e o faz à absoluta semelhança dos versículos de Lucas (10,38-42) sobre Maria: a contemplação em comunhão da alma com Deus.


O rosto de Cristo, na Pietà, sob a contemplação de Maria
P
ietà, Michelangelo, Lucas, monges cartuxos, todos convergem para a contemplação como forma de contato do espírito humano com o divino feito homem na Terra, trazido à luz por uma mulher escolhida “in virtù”. Entre o artista, o evangelista e o monge, há uma comunhão com o espírito da Pietà, aquela que contempla como sua parte boa e certa o Filho retirado da cruz, corpo inerte retorcido sobre suas pernas e seu braço direito, enquanto o esquerdo, elevando à mesma altura a mão semiaberta, insinua uma posição de lótus, produto de caso pensado ou não da visão genial de Michelangelo. O espírito da Pietà, tão majestosamente traduzido pelo gênio florentino, é o mesmo que se multiplica no coração de todas as mulheres e se revela no momento em que trazem ao mundo seus rebentos, quando lhes é mostrado o caminho para o seu maior, verdadeiro e profundo mistério: ser mãe. 

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