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O "Rodeio" |
A Justiça acaba de multar em R$ 20 mil alunos
acusados de trote violento na UNESP de Araraquara (2010), onde deveriam se
formar profissionais em áreas como filosofia, ciências e letras. O “trote”
consistiu em escolher as calouras “gordinhas”, colocá-las de quatro, e, após
segurá-las, cronometrar quanto tempo cada veterano conseguiria se manter na
“montaria”. Fotos da época mostram a manifestação animalesca dos veteranos -
sendo que em uma elas, com detalhe maquiado por computador, um dos rapazes
estava sem calças e cueca. A cena terminou com indenização de valor ridículo,
sem condenação criminal. A humilhação imposta às meninas no chamado “Rodeio das
Gordas” perpassa todas as instâncias, e reabre a discussão sobre o momento
por que passa a sociedade brasileira.
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Marilena Chaui |
Abro espaço para a filósofa Marilena Chaui, da USP, em
recente debate no qual ela exibiu seu invejável conhecimento: colocou em um
caldeirão o filósofo holandês Spinoza (séc. 17), cuja obra foi basicamente
dedicada ao estudo da ética, misturou no forno de seus conhecimentos da
dialética (Hegel, Marx, Wittgenstein, a
quem interessar), e depois despejou o resultado sobre os presentes de maneira
espetacular. Fez uma análise da tão decantada “nova classe média”, bandeira de
luta de seu próprio partido, e disse que tal classe não existe, é simplesmente
uma pequena burguesia que quer ser classe média. E mais: que a classe média
paulistana é a de sempre, a das “Senhoras de Santana”, a que deu seu "ouro
contra o comunismo”, campanha do regime militar, e que hoje se perpetua,
reacionária. Marilena rotulou de maneira
fulminante esses jovens: “proto-fascistas” (ou seja, um arremedo, projetinho de
fascistas).
A brilhante exposição de Marilena foi uma aula magna sobre
assuntos tabus, e uma crítica ao mito que ela considera inexistente, a “nova
classe média”. Os novos pequenos burgueses, completou, só querem ‘parecer’
classe média, e para isso, concluo, objetivam o diploma – razão pela qual
preferem pegar carona em uma bolsa do
PROUNI em faculdades particulares
fracas da capital, onde ganhar um título é sempre mais fácil do que tentar via
cota nas públicas, onde o “canudo” sai de graça, mas a “ralação” (no dialeto
jovem), sai muito mais cara.
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USP de Saia: maio de 2013 |
Peguei emprestada a exposição da Marilena Chaui como ponte
entre o animalesco “rodeio das gordas” e outro acontecimento recente – agora,
um protesto inusitado, porém da mais saudável riqueza e criatividade. E isso
aconteceu na USP da Marilena, dia 16 de maio. Passo a descrever o episódio, exemplo
de rara solidariedade de veteranos a um calouro por ataques à sua opção
pessoal. Vitor Pereira, que ingressou no curso de moda, no dia 24 de abril
resolveu ir à aula de tênis, camiseta e... saias. No Campus da USP, pareceu não
ter atraído mais do que olhares, alguns com certo quê de reprovação. Porém, em
uma rede social da Internet, foi hostilizado e ofendido por colegas, o que
causou comoção entre um grupo de veteranos. Também via rede social, foi marcado
um protesto diferente, sem balbúrdia, juvenil e meio tropicalista: no dia 16 de
maio, em solidariedade, rapazes vestiram saias e garotas ternos, ação que se
espalhou pela Escola Politécnica e até a prestigiosa Faculdade de Direito do
Largo de São Francisco, ambas da USP. Houve reflexos em outros estados do
Brasil, e o protesto simbólico pelo direito de se vestir como se quer mostrou
que a classe média mais esclarecida tende a prevalecer, ao menos nos melhores
redutos da USP, sobre a tal classe média “proto-fascista” de Marilena. A
criação do protesto “USP de saias”, traz o repensamento do conceito de
universidade - de universo,
universalidade, como bem disse o texto postado na rede na convocação: “A
universidade é um lugar de liberdade de expressão. O uso de uma peça de
vestuário não deve ser recriminado”, e convida a todos para “um dia de reflexão
sobre os estereótipos do gênero (...) que todos usem algo que fuja aos padrões
impostos pela sociedade”. Pois trocaram rodeios e trotes por uma brincadeira
saudável e questionadora, prova de que é possível, sim, a juventude ser
partícipe ativa de uma comunidade mais justa!
A manifestação nos remete mais longe: a saia masculina, tão
reprovável aos olhos de muitos quanto foi no passado quase recente o uso de
calças por mulheres. A escritora Aurore Dupin, que teve um rumoroso caso com o
virtuose pianista polonês Fréderic Chopin, vestia ternos e usava um pseudônimo
masculino, George Sand (ilustração ao lado). Mas o que poderia chocar a irreverente Paris do século
19?
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Centurião romano |
Mais atrás, podemos fazer outra digressão, agora à Roma
antiga dos valentes gladiadores e centuriões de saias, ou às origens do “kilt”,
saiotes usados por homens desde o século 16, na Escócia, Irlanda e outros
países – o próprio príncipe Charles, do país de Gales, volta e meia surge com o
saiote, que tradicionalmente é usado sem “underwear” (roupa de baixo).
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Príncipe Charles e seu Kilt |
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1956: Flávio de Carvalho e seu saiote |
Mas voltemos ao Brasil, onde saiote masculino também não é
novidade. O modernista Flávio de Carvalho, um artista de formação admirável,
arquiteto amigo de Le Corbisier, pintor que frequentou Picasso e Dali,
escritor, poeta, músico e sabe-se lá o que mais, lançou, em 1956, após uma
série de artigos sobre moda no “Diário de São Paulo”, o que ele chamou de New
Look: um saiote pregado, blusa de náilon com mangas bufantes e chapéu
transparente. Assim vestido, com meias do tipo arrastão e papetes nos pés,
caminhou nas ruas do centro de São Paulo, “obra” que intitulou “Experimento nº
3”. Não sei se houve bullying (que em português deveria ser “bolir (com
alguém)”, mas em inglês fica mais chique.
(Ou seria chic, do francês?).
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Na Alemanha, pai acompanha filho que vai à escola de saia |
A novidade está no contexto em que o saiote aparece, e na
juvenil solidariedade de universitários de cabeça bem feita a um calouro de
ideias próprias. O que vem a somar à discussão do momento, o preconceito contra
a opção de cada um, que repercute em diversos segmentos da sociedade em meio a
uma crise ideológica sem precedentes, ao menos que eu tenha visto. Termino
citando um primo – que, aliás, usa saias, hábito religioso de sua ordem -, quando
um jornalista o questionou sobre as reações à nova (então) dança, “lambada” (na
verdade, um ritmo derivado da Salsa latina): ele declarou que “o pecado é muito
mais do que uma simples dança de corpos colados”. E do que um saiote à toa e a opção do rapaz também, completo eu.
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