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sábado, 1 de junho de 2013

COMO ERA GOSTOSO O MEU LATIM!


Monges do Mosteiro de São Bento
No princípio era o Verbo. Do latim verbum, palavra, mas cujo significado é muito mais amplo, como a existência, e nunca uma simples palavra conjugável como em português. A oração diz Agnus Dei, qui tollis peccata mundi, ora pro nobis, Cordeiro (Agnus, de onde Agnes, Inês) de Deus, que tirai o pecado do mundo, orai por nós; ou ainda miserere nobis, tenha misericórdia de nós. A missa do Mosteiro de São Bento, do Rio, é uma das únicas a conservar a bela tradição do canto gregoriano, do século IX, surgido do chamado canto romano, que com a liturgia imposta pelo Império Franco terminou por desaparecer. (Canto Gregoriano Beneditino: veja e ouça abaixo).


Concílio Vaticano II
No colégio, ainda peguei a missa em latim: cantada, mais elevava os espíritos. Hoje, com a missa em português (desde após o Concílio Vaticano II), que teve o objetivo de tornar a cerimônia mais acessível, compreensível (seria mesmo o caso de compreender?), tenho cá minhas dúvidas se a troca do mais espiritual pela comunicação direta terrena conquista melhor seus objetivos. Ainda que restem as frases bíblicas mais famosas, traduzidas de forma questionável, como a que vemos nos para-choques de automóveis: “tudo posso naquele (sic) que me fortalece”. Fortalecer tem a mesma raiz fort, de confortar, portanto mais plausível de entender “por meio daquele que me conforta”, convenhamos mais afeito ao Senhor do que simplesmente ficar mais forte. 
égio, ainda peguei a missa em latim: 

No Colégio, de formação jesuíta, tínhamos aula de latim, creio que até um ano após minha saída da escola – outra perda irreparável para as gerações que se seguiram, pois deixaram de prover uma rica fonte de conhecimento para os alunos. O lema mens sana in corpore sana (mente sã em corpo sadio) estava nas paredes e no vestíbulo (lat.: vestibülum, pórtico). Meu severo professor não apenas nos incutia o latim como também o que fosse ligado à história da chamada “língua morta” (morta?), como o soneto Língua Portuguesa, de Olavo Bilac (1865-1918): “Última flor do Lácio, inculta e bela / és a um tempo esplendor e sepultura / ouro nativo, que na ganga impura / a bruta mina entre os cascalhos vela...”. Pois aquela última flor do Lácio não é senão nossa língua cantada por Bilac, a última que brotou do latim vulgar daquela região da Itália (Lazio). E tudo recitávamos de cor, um a um, subindo no púlpito por vez cada um, transpirando com medo de errar ou tropeçar (essa talvez tenha sido minha estreia contra o chamado stage fright, ou medo de palco).


Ilustração de Gustave Dore para O Inferno, de Dante
Uma vez cumprida a missão da récita, vinha o alívio e aquele desejo reprimido de, moleques, vermos o próximo colega cair. Quem começou a matar o latim, dizem muitos italianos, foi Dante Alighieri (1265-1321), em sua La Divina Commedia, que teria dado o empurrão para que surgisse o idioma italiano.


Revertere ad Locum Tuum


Meu latim básico tornou-se uma peça a mais na vida, uma ferramenta que ajuda em tudo, até compreender nossa língua. Mesmo nos EUA, ganhei uma disputa em que ninguém acertou a questão – ali constava a palavra nullipara -, e levei um ponto dos mais difíceis, pois se o latim aqui no Brasil é “língua morta”, lá, então, nem chegou a nascer. Nem mesmo na área do direito, pois que lá é o anglo-saxão, enquanto aqui seguimos o greco-romano. Pois cravei nullipara como simples dedução minha: nullus, nulo, nunca, e para, do verbo parere ou parir, o que me levou a cravar a definição: mulher que nunca teve filhos. Os dísticos latinos são lindos, mas o povo muitas vezes não sabe o que significam: non dvcor, dvco, ou seja, não sou conduzido, conduzo, lema da flâmula do brasão da cidade de São Paulo, assim como o de Tatuí, Per ardvua surrexi (ergui-me por dificuldades), símbolo da luta desde o estabelecimento do vilarejo até a fundação do município, em 11 de agosto de 1826. Ao se passar por algum pórtico de um cemitério, uma frase emblemática pode não ser compreendida: Revertere ad locum tuum; porém, trata-se de nada mais do que um acolhedor “voltarás para o lugar de onde viestes”. A bandeira de Minas ostenta o glorioso lema latino que se tornou símbolo da Inconfidência: Libertas quæ sera tamen: Liberdade ainda que tardia!


Em direito, nem se fale. Não há ministro do STF, desembargador ou magistrado (aliás, palavras advindas de minister e magister, conselheiro e mestre, em latim) que não produza grande efeito às suas sentenças, às vezes de enorme erudição, em meio a doutrinas (lat.: doctrina, ensino) e jurisprudência (de juris, direito). Pois é na leitura dos autos e nas oitivas (oitiva: do lat.: audire, ouvir), onde ele logo vê o chamado fumus boni juris, a conhecida “fumaça” do bom direito, ou seja, quando transparece a luz da sugestão para a decisão. Ipso litero, ou seja, literalmente, o magistrado sabe que veritas evidens non probanda, quer dizer, a verdade em evidência não precisa ser provada, e que verba volant, scripta manent – palavras voam, mas a escrita permanece. Sabe, quando urge, tomar decisão inaudita altera pars (sem ouvir a outra parte).


Eugenia Uniflora
O
diretor de uma faculdade assina uma decisão ad referendum (para ser referendada posteriormente) do Conselho, e o faz in totum, na totalidade, podendo decidir até mesmo ultra petita, além do que foi requerido na petição. O advogado que não tem o domínio dessas expressões, data venia (com a devida licença), além de perder tempo pesquisando pode equivocar-se ao interpretá-las. Por isso mesmo, o bom vernáculo (lat.: vernaculus: de casa – aqui, a língua pátria) aliado ao bom latim é grande ferramenta dos representantes e julgadores, deixando aos autores ou réus menos letrados apenas os navios, que, abobalhados e perdidos, resta-lhes ficar a ver. E nem falemos de ciências como a botânica, a exemplo de eugenia uniflora, a pitanga, e cannabis sativa, popularmente conhecida como maconha.


Por fim, em música, o uso do latim vem desde os primeiros estudos teóricos, e é recorrente: do gradus ad parnassum (degraus para a perfeição, título de diversos métodos), ad libitum (toda a liberdade ao intérprete), cantus firmus (lat.: canto fixo), uma linha melódica sobre a qual se constrói um texto polifônico), e formas como o Benedictus, parte do rito romano, além das publicações litúrgicas como o Antiphonale e o Rituale. Mozart teria decorado um miserere (misericórdia) que ouvira tocar uma só vez, aos 6 anos, repetindo-o de memória no cravo, ao chegar em casa. Ad finen (ao final, no extremo), a própria palavra Missa serve de título para grandes obras, como a Missa Solemnis, de Beethoven (veja e ouça abaixo a grandiosa obra), e advém da língua-mãe: Ite missa est – ide, este é o final. 

Amen.

Beethoven, Missa Solemnis. Coro de 260 cantores: London Philarmonic Choir, London Symphony Choir, regência de Sir Colin Davis e solistas. Total, com entrevista: 1h39. Início da execução: aos 07min.





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