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Com Cristiano Machado, ao centro, comandante Juquinha, à direita, e Cordeiro de Farias, ao seu lado |
José Carlos Campos
Christo, o “vovô Juquinha”, mineiro até a raiz forte dos cabelos, deixou o mundo
como general reformado. Muito antes de partir, em sua casa, em Belo Horizonte,
ele nos recebia nas férias, sempre com seus chinelos cobertos pela metade, o
paletó surrado, e sentava-se junto ao grande móvel de imbuia do velho rádio (com
várias bandas de ondas curtas, onde ele procurava notícias, música clássica ou
alguma ópera mundo afora). Naquele mundinho, muitas vezes, ouvi histórias e
estórias. (Sim, censores acadêmicos aposentados fundamentalistas - e não é uma
delícia esse neologismo, acadêmicos fundamentalistas?). Segundo o Houaiss e na pena do Guimarães Rosa a
palavra estória existe sim, e opõe-se a história exatamente como em inglês:
“history ou story”. (E mesmo se a palavra não existisse, seria preciso
inventá-la).
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Batalhão de Infantaria, em BH, hoje |
Às vezes eu me sentava perto dele, a ouvir aquela voz pausada contar causos que
caberiam em um filme do Indiana Jones, fosse hoje, mesmo que a série americana ainda
estivesse a décadas de existir. E era como disse o Milton: “para me contar
casos da campanha da Itália / e do tiro que ele não levou...” Vovô bordava com
a voz as imagens cinematográficas que ilustravam meus pensamentos. Mas recheando
a prosa com um pouco de história (com “agá”), vamos buscar no tempo alguns
desses relatos. Em 1930, Juquinha já era comandante do Batalhão de Infantaria
de Minas Gerais (12º), sediado em Belo Horizonte. Junto com Cristiano Machado,
então Prefeito de BH (e futuro pré-candidato à presidência em 1950), e Cordeiro
de Farias – este um dos responsáveis pela derrubada de Washington Luís -, homem
que em vida adotou várias causas conspiratórias, mesmo que algumas, como diria
meu pai, não fossem lá muito canônicas.
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Getúlio Vergas em pleno Estado Novo |
Minas uniu-se a São Paulo pela causa constitucionalista. O movimento se
fortalecia e a comunicação via rádio e telefone (quando funcionava, tinha operador
ouvindo) era proibitiva. Vargas exercia seu poder de ditador como um
estrategista de guerra. Meu avô pegou o trem várias vezes para trocar mensagens
e instruções entre os dois estados, e isso era feito... no banheiro
do trem. Ele contava que revolucionários à paisana entravam no vagão e deixavam
um bilhete em local pré-combinado do banheiro. Logo ao sair, entrava outro, que
lia a mensagem e a eliminava, voltando a sentar-se em seu lugar.
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Rochedo da Ilha das Flores |
“Foi bonita a festa, pá” diria o Chico, mas não durou muito, e todos foram presos,
exilados ou deportados: não tardou um navio sair do Porto do Rio de Janeiro,
levando os presos para Lins (“Lugar Incerto e Não Sabido”, no jargão). Depois
de dias de viagem, aportaram na ilha mais ocidental da Europa, mais
precisamente a Ilha das Flores, no Arquipélago de Açores, bem longe, mas muito
longe da matriz, Portugal. Havia chegado a hora de entrar em cena, agora, nosso
Indiana Jones.
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Ilha das Flores, no canto esquerdo superior |
A ilha, do tamanho de um sítio do interior de São Paulo, era cercada por arame
farpado eletrificado. Fugir dali, não havia como. Vovô contou que um dos presos
era eletricista, conhecia bem do assunto. Pois vestiu nas mãos um par de botas
de borracha e forçou os arames eletrificados até rompê-los, um a um. Terminado
o serviço, e agora, Indiana? Pois era morrer certo na ilha ou tentar salvar-se
no mar, poderiam dar a sorte de cruzar uma rota de navios. Juquinha contou que
chegaram a nadar 5 Km (deve ser difícil ter noção de distância assim, 1 Km pode
ser 5 e 10 Km podem ser 6).
Um navio pesqueiro os avistou, recolheu-os e depois de longa viagem
desembarcaram em Portugal. Não sei o que se passou por lá, mas foi coisa de um
ano e meio na “terrinha” ou perambulando pela Europa. A sobrevivência, muito a
contragosto, vinha dos Mesquita (Juquinha era um homem cheio de manias e princípios éticos, morais
e religiosos, como veremos mais adiante). Isso mesmo, da
família Mesquita, do jornal O Estado de São Paulo, grande financiador da
revolução de 32 e padrinho de todos os presos, perseguidos, exilados e deportados por Vargas.
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Julio de Mesquita Filho, família e equipe de O Estado de São Paulo |
Ruy de Mesquita Filho, de longa história política, foi um dos idealizadores da
Revolução de 1932. Preso 14 vezes no Brasil, em 1938 foi definitivamente
exilado na Europa. Meu avô Juquinha, homem orgulhoso, chegou a recusar o
auxílio dos magnatas da imprensa paulista, mas a carência de minha avó e sua grande
prole o convenceram. Ao voltar ao Brasil, chamado pelo Governador Benedito
Valadares, assumiu o posto de Chefe de Polícia de Minas, o que eu creio seria
algo como hoje um Secretário de Segurança. Rigoroso que era, ele não via com bons
olhos, naquela época, os flertes de meu pai, Autran, com minha mãe, Lucia,
porque o jovem pretendente nutria certas simpatias, como todo intelectual novato
mineiro, pelo chamado Partidão, de Luís Carlos Prestes.
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O Golpe de 64 toma as ruas do Rio de Janeiro |
Metódico que ele só, ia à missa toda sexta-feira, confessava, comungava e
voltava de cabelo cortado rente (talvez por isso mesmo, ao nos deixar ainda
tinha todos os cabelos, até a fronte, em tom grisalho, mas não branco, e isso perto
dos 80 anos de idade). De manhã, mingau. No almoço, a dieta regulada, água
tônica, pois quinino faz bem, e de sobremesa ameixas pretas, ajudam na digestão.
Quando eclodiu o golpe de 1964, já reformado, conhecia vários de seus
expoentes, alguns colegas de caserna e outros de oficial de armas.
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Sylvio Frota, segundo à esquerda |
Nos anos 1968 em diante, viu recrudescer o regime, apreensivo. Fulano de tal?
Mas foi meu colega, não faria mal a uma mosca, assim cria ele. Até que seu
xodó, o sobrinho Carlos Alberto Christo, o Frei Betto, foi preso e encarcerado
por 4 anos. Sofreu, mas vovô dizia do Sylvio Frota (então Comandante do II
Exército), o Frota não faria mal a ninguém, era de boa índole e coração. E
assim seguiu, com o coração de ouro, crendo até o fim em seus ideais
republicanos, constitucionais, de honestidade, correção e amor por seus semelhantes.
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Indiana Jones |
Quantas vezes não fui com ele, sempre aos domingos (e ele todos os domingos), ao
manicômio da cidade, visitar o “seo” Osmar, internado fazia muitos anos? Osmar
era filho da negona Joana, ama de leite e seca de meus tios, dona de autoridade na casa e famosa pelos quitutes (que não cheguei a conhecer). Chegava o domingo, lá ia ele
ver o simplório Osmar. E levava o que seu afilhado do coração mais gostava:
gibis, gibis, gibis, sua leitura diária.
Se fosse nos dias de hoje, talvez não mais levasse gibis do Capitão
Marvel: levaria, quem sabe, DVDs do Indiana Jones - que serviriam ao pobre Osmar,
assim como as estórias que vovô me contou de sua vida, à mais deleitosa e
envolvente distração.
HENRIQUE: lí sua interessante história sobre a vida política de seu avô juquinha e meu pai, nosso héroi. Desde minha infância acompanhei com grande curiosidade e orgulho sua agitada vida política. Escreví uma história de suas andanças , baseado em documentos e nos seus relatos. O dia de aniversário vou enviar-lhe um volume. Para uso exclusivo da família, como era seu desejo. Um grande abraço, seu tio José Carlos.
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