... por dentro, pão bolorento”. Assim
como outros tantos ditos de origem portuguesa, com passaporte de entrada carimbado
em um dos recantos onde esses provérbios populares mais proliferam, as Minas
Gerais, existem também variações como “por fora, bela viola, por dentro,
molambo só”, ou “por fora, bela farofa, por dentro não tem miolo”, ou ainda “por
fora, renda de bilro, por dentro, molambo só”, entre muitas, muitas outras. O
que importa é que o provérbio enaltece a beleza da viola, tão característica do
Brasil nas suas mais diversas manifestações de raiz, como o cururu, o desafio, o
repente, a seresta e a moda de viola, entre outras. Mas o que vem mesmo a ser
uma viola? Um tipo de violão?
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Rebab |
Há vários tipos de viola, e por isso mesmo é interessante conhecê-los,
para não misturá-las. Há a viola que vem desde antes do período barroco, da
família ‘viola da braccio’ (viola de braço, de onde o violino e a viola sinfônica), ‘viola da gamba’ (ou viola de
perna, apoiada entre elas, como no violoncelo), o ‘basso de viola’, ou
‘violone’ (que deu origem ao contrabaixo), e uma variedade enorme delas, todas
tocadas com arco. Essas violas, descendentes do ‘rebab’ ou ‘rabeb’ árabe, que
hoje encontra um parente direto entre nós, a rabeca, é um instrumento mais
primitivo, levado para a Espanha durante o Renascimento pelos mouros do Norte
de África após a ocupação da Península Ibérica (711 até a queda de
Constantinopla, em 1453).
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Criança tocando alaúde |
Mas há outro tipo bem diferente de viola, tocada com os
dedos ou uma palheta, nascida de outro instrumento árabe, o ‘al’oud’, de onde
veio o alaúde, pai das violas dedilhadas e do violão moderno – mais
precisamente, a nossa viola de arame é afilhada de um instrumento da mesma família,
a fíbula.
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Roseta e cordas em ordens duplas |
No Brasil, dizemos genericamente viola
de arame, mas aqui por nossas plagas ela é mais conhecida como viola caipira,
havendo ainda outras designações, como viola brasileira, viola buriti, viola de
cabaça, viola de cordas, de feira, de Queluz e diversos outros apelidos. A
viola brasileira tem dez, às vezes doze cordas, ou melhor, cinco ou seis ordens
duplas de cordas, com o mesmíssimo som para cada par. A sequência da afinação, entretanto,
não é a do violão. Existe um número grande de sistemas para afiná-la, como
cebolão, cebolinha, natural, rio-abaixo, guitarra, boiadeira, maxabomba e
outras. Já no Nordeste, entre os repentistas, é comum a afinação Paraguaçu, que
parece ter descido rios até o Vale do Paraíba. Pois a viola, com sua beleza e
seu som, já chegou à erudição, entre pesquisadores e estudiosos como Fernando
Claro e Roberto Corrêa, entre outros! Ela se assume portuguesa, destacando-se como
viola braguesa, de onde certamente surgiu nossa viola de arame, ou caipira.
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Dedeira de violeiro |
Os violeiros mais versados usam uma palheta (chamada dedeira)
que se prende ao redor do polegar da mão direita, a qual ora arpeja as cordas,
ora faz alguma linha de baixo, deixando os demais dedos para os bordados e
floreios – o que obriga o artista ao uso de unhas compridas para tirar os sons cristalinos
das finas cordas de aço. O que se ouve é inconfundível: às vezes ela faz de
harpa, às vezes é mais rasgada, outras ainda mais suave e aveludada, criando um
ambiente intimista. O falecido virtuose Renato de Andrade, a quem há muitos
anos recebi em casa no Rio, foi um famoso titã da viola: tirava sons de harpa,
harpa paraguaia, cítara e - segundo ele mesmo, brincando - até de viola! (Veja
e ouça abaixo o virtuose Renato Andrade)
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Violeiro tocando: Almeida Júnior |
Os que são realmente exímios, como foi
Andrade, são capazes de tocar sem acompanhamento, fazendo epopeias e
malabarismos com seus pinhos, como fossem solistas de um instrumento só. Pois “botar
a viola no saco” é sinônimo de ir embora, mas sempre levando o bem mais precioso
que o artista carrega consigo: “... tange, ferra, engorda e mata / mas com
gente é diferente / Se você não concordar / não posso me desculpar / não canto
pra enganar / vou pegar minha viola / vou deixar você de lado / vou cantar
noutro lugar” – cravou Geraldo Vandré, em sua linda “Disparada”.
A viola pode chegar ao mais fino acabamento e construção: peças
de ébano, marfim ou osso, pinho canadense, abeto, e ainda algumas da cepa
nacional, como o jacarandá da Bahia (de primeiríssima linha), cedro, mogno, chegando
a ser adornada com arabescos (que não negam a origem islâmica!), detalhes
escavados, desenhos decorativos, roseta ou mosaico, na boca do instrumento, filetes
artísticos (madeira mais escura ou mais fina incrustada em finas tiras simples
ou duplas – ver imagem) e até banho de ouro nas cravelhas (ou tarraxas), que
são mecanismos que servem para afinar o instrumento. O tamanho da viola é o de
um pequeno violão, sendo que os ombros superiores (as curvas de cima) são
menores do que os inferiores.
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Viola filetada nas bordas: brazdaviola.com.br |
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Moçoila da fazenda |
Por isso o ditado: a viola é sempre linda, sempre
bela, e especialmente quando tocada. Exerce fascínio não só sobre quem a ouve,
mas também sobre quem a vê, tamanha obra de arte em si que ela é. O corpo mais
feminino do que o do violão é sinuoso como o da jovem moçoila da fazenda. Mas voltando
ao ditado “por dentro, pão bolorento”, emigrado da cultura portuguesa para
Minas Gerais, quer dizer que por trás de muita beleza pode haver algo de bastante
podre: uma linda mulher de passado vadio, um político de terno vincado que fala
bonito mas tem história que passarinho não bica, um cantor empavonado e de bota
lustrada sem voz nem afinação, enfim, tudo o que parece lindo como uma bela
viola, mas que não toa nem afina como seu som nem seduz com sua beleza, virtudes
reservadas aos ouvidos e olhos sensíveis ao que o homem sabe criar de mais belo.