O pequeno Mozart |
Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), “o predileto dos
deuses”, como era conhecido entre os austríacos, compôs Bastien und Bastienne
em uma idade tão admirável que eu me atrevo a chamar de ridícula: apenas 12
anos, enquanto todos os moleques do mundo soltavam pipa ou, no caso de hoje, passam
o dia manobrando videogames em seus smartphones.
Original de Rousseau |
Um médico, Franz Messmer, teria sido o patrono que pagou a
papai Leopold Mozart para que seu pequeno gênio compusesse uma ópera curta, em
um único ato, bem divertida ao estilo de época chamado Singspiel, um gênero
cômico com diálogos falados, então muito popular nos países germânicos (e
facilmente agradável ao público leigo de todas as épocas). O libreto (texto da
ópera) foi escrito a partir de “Os Amores de Bastião e Bastiana”, de Favart e
Guerville, por sua vez inspirado em uma peça de Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778), “O Adivinho do Vilarejo”. (Sim, vale acrescentar, o mesmo Rousseau
filósofo iluminista e estudioso da política, autor de “Do Contrato Social”, do
qual extraio o título do capítulo 15, que bem resume o pensamento do francês:
“o homem nasce livre, mas em todos os cantos ele está acorrentado”, em trad.
livre).
Manuscrito de Mozart |
Não há garantia de que o próprio Mozart tenha visto sua
ópera ser encenada, já que o registro da apresentação mais antiga data de 1890
em Berlim, mais de cento e vinte anos depois da composição da obra. O
adolescente Mozart, nessa ópera, já tendo absorvido os estilos francês e
alemão, deixou escapar na obra muitas influências do canto francês, mas com
certeza reservou à primeira ária de Bastiana o mais puro estilo de Lied
(canção) germânico (ária: canção ou parte para solista ou solistas com
acompanhamento). O menino já conhecia as principais correntes musicais e lidava
com elas com naturalidade.
Na trama da ópera, Bastião parte de seu povoado e termina
por conhecer uma cidade maior, com seus castelos e belas casas, e não pode
evitar comparações entre ela e seu pequeno vilarejo de origem. Com garbo e
charme, conquistou olhares e agrados das moçoilas da cidade, que logo chegaram
aos ouvidos de Bastiana, camponesa como ele, que se vê tomada por um ciúme doentio
e pelo medo de perder seu enamorado para alguma outra bela moça. Sofrendo, ela sai
em busca de consolo junto aos seus bem cuidados carneiros. No entanto, a
caminho do pasto ela cruza com Don Colas, uma espécie de mágico e adivinho, e
suplica sua ajuda para trazer de volta o amor de sua vida, Bastião. O mago diz
a Bastiana que ela não havia perdido seu amor, sua cara metade apenas andava meio
distraída (disse ele como que dissimulando), e que ela deveria jogar uma
brincadeira de amor: que tentasse ignorá-lo, sendo até fria, se necessário fosse
à desejada reconquista. A seguir, Bastião
dela se aproxima, mas Bastiana, matreira, dele se oculta.
Constanze Weber |
Bastião resolve proclamar em alta voz seu grande amor pela jovem,
mas o feiticeiro Colas lhe conta que Bastiana, infelizmente, já havia
encontrado um novo par. Por sua vez, desconsolado, Bastião pede ajuda ao mago,
que abre um livro e recita uma ária sem sentido, com citações em latim, sílabas
soltas e palavras desconexas, talvez antecipando a marca registrada das cartas de
amor que Mozart, já casado, escreveria para sua bela esposa Constanze Weber,
anos depois: “do teu stu! Knaller paller. Schnip-schnap-schnur.
Schnepepperl-Snai!”. Nesse mesmo estilo de palavrinhas brincalhonas diz a ária
do mago Colas: “Diggi, daggi, shurry, murry”. (Veja e ouça abaixo a ária de
Colas, com Martin Winkler)
Bastião, Bastiana e Don Colas |
O feiticeiro conta então que sua
magia foi um sucesso e que Bastião e Bastiana voltaram a se amar novamente, em toda
a plenitude de uma paixão juvenil. Bastiana, sem conter um certo sabor de
vingança nos lábios, tenta levar o jogo ainda mais adiante e despreza Bastião,
testando-o. Desesperado, Bastião tenta o suicídio, mas sua amada, indiferente,
dá de ombros. Por fim... Bastião e Bastiana, afinal, concordam que levaram as
brincadeiras de casal muito longe, e se reconciliaram em júbilo, juntando-se ao
mago Colas para com ele cantar em agradecimento pelos passes que lhes trouxe de
volta a felicidade.
Teatro Procópio Ferreira, Conservatório de Tatuí |
Bom, para saber o final vale a pena ir ao Conservatório de
Tatuí neste fim de semana, sábado, dia 9 (Teatro Procópio Ferreira,
20h30), e quarta-feira, dia 20 de novembro (Auditório da Unidade II, 19h, Rua
São Bento, 808), com entrada franca. A versão do Núcleo de Ópera do
Conservatório de Tatuí é uma adaptação moderna, criativa, com direção geral de
Cristine Bello Guse, e parceria com o maestro Cadmo Fausto na direção cênica. A
preparação vocal é de Marilane Bousquet. Thaís Azevedo será Bastiana, Josué
Costa fará o papel de Bastião e Don Colas (nesta versão pós-moderna, Dr. Colas,
um psiquiatra) ficará a cargo do baixo-barítono Roger Camargo.
A imponente Ópera Estatal de Viena |
A ópera é um dos gêneros mais completos de arte, pois une a
música, o drama e a cena. Chegando à apoteose, o grande Richard Wagner usava
uma palavra enorme e complicada para defini-la: Gesamtkunstwerk, ou Obra de
Arte Total. Muito embora Wagner (1813-1883) tenha sido um compositor de tempos
bem mais recentes, a ideia pode ser aplicada a todas as óperas de todos os
tempos. Quase todas as cidades alemãs e de boa parte da Europa, por menores que
sejam, têm suas casas de ópera sempre lotadas - a cultura operística faz parte da
vida dos cidadãos desde o distante passado (início do séc. 17), quando passou a
ser senão a única, a principal diversão.
Núcleo de Ópera do Conservatório: Orfeu e Eurídice |
O Conservatório tem se empenhado em trazer o gênero
cada vez mais para seus palcos, rica fonte que é para o aprendizado dos alunos,
a formação de público e a prática de música da melhor qualidade. Quem não gosta
de ópera, pegando carona no grande Dorival Caymmi, “bom sujeito não é / ou é
ruim da cabeça / ou doente do pé”.
Para ouvir Bastião e Bastiana na íntegra, veja o link abaixo
(40’13”). Por curiosidade, alguns trechos da abertura lembram o tema inicial de
Sinfonia Eroica (3ª), de Beethoven, que somente foi composta em 1804, portanto
36 anos depois. Coincidência?
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