Dali: A Persistência da Memória (1931) |
Como manifestação humana, a
expressão artística às vezes tende a ser sofisticada: o artista quer cada vez
mais desenvolver sua técnica, sobrepondo-a à sua imaginação. Vai às mais
profundas contradições, confusões mentais e até demência, mas se não o faz de
forma figurativa, como Salvador Dali (1904-1989), ele se distancia do público.
A arte pode ser complexa, como a de Qorpo Santo (1829-1883) - José Joaquim de
Campos Leão -, nosso poeta, escritor e dramaturgo gaúcho que chegou mesmo a
passar uma curta temporada no manicômio.
Qorpo Santo |
Louco que era, foi tido como uma espécie de precursor
“tupiniquim” do surrealismo e do Teatro do Absurdo de Arrabal e Ionesco. Nada.
Parece que o surrealismo sempre foi um estado de espírito ‘anormal’ (daí surreal),
desde as telas de Hyeronimus Bosch (1450-1516), 4 séculos antes do brasileiro. É
onde se transfigura a teratologia do pintor: maus espíritos e demônios, anomalias
com tantos detalhes que exigem um bom tempo de apreciação, por parte do
público, para compreender a obra. Pois Qorpo Santo foi personagem de suas
personalidades múltiplas, de seus espíritos enlouquecidos.
David |
O simples tem que ser belo, e em suas poucas informações
tecer um quadro, uma escultura, uma poesia ou uma música. E o que faz o belo – vejo
assim – é a feminilidade da obra, mesmo que ela represente um homem. Uma das
obras-primas de Michelangelo (1475-1564) é seu Davi, uma escultura de seu desejo,
envolta nos mistérios das afeições particulares do autor. A despeito do torso levemente
robusto, a figura do jovem Davi tem traços sinuosos, graciosos, femininos até. Na
música, clássicos como Mozart e Haydn usaram frases de contornos e terminações
melódicas a que chamamos femininas.
Fuga de Bach: a complexidade dominada e organizada |
Pois se no classicismo assim o foi, o
que aconteceu no período barroco, que o precedeu, e no romantismo, que o
seguiu, ambos de extrema complexidade na costura musical? O Barroco tinha suas regras,
e se essas não fossem seguidas, a profusão de notas e acordes em tantas vozes
simultâneas em contraponto resultaria em grande confusão.
E a poesia, que ora nos vem parnasiana, complexa, ora
com o requinte da simplicidade? É uma frase solta, às vezes, em tom coloquial,
até, mas que traz em si algum ‘achado’, algum truque a seduzir o leitor.
Fernando Pessoa (1888-1935) é um mestre português dessas minúcias: “E mais que
isso, só Jesus Cristo. Que não entendia nada de economia nem consta que tivesse
uma biblioteca”. Uma troca de palavras simbólicas – Cristo x economia e
biblioteca (símbolos do saber) -, seriam para o poeta desnecessidades para quem
está acima de todo o conhecimento.
Antes disso, Pessoa já havia desmistificado o saber: “Livros
são papeis pintados com tinta. Estudar é uma coisa em que está indistinta. A
distinção entre nada e coisa nenhuma”. A intelectualidade e o vigor criativo de
Pessoa o credenciam para sentenciar que livros não são mais do que meras “folhas
de papel pintadas com tinta” - e o
estudo, “coisa indistinta”, o que não se distingue. E negando tudo: a distinção
entre “nada e coisa nenhuma”.
Há brasileiros mestres nessa arte da simplicidade, como Drummond
(1902-1987), o poeta maior. Veja em Confidência de Itabirano: “Tive ouro, tive
gado, tive fazendas. Hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma
fotografia na parede. Mas como dói”. Palavras simples que levam o leitor a
refletir sobre o ouro, gado e fazendas (riqueza), em contraponto à situação do
poeta, funcionário público, símbolo da vida simples e regrada que ele próprio
levou, vivendo dos pequenos cargos que lhe permitiram o ofício de escrever. E a
fotografia de Itabira na parede, o que lhe faz sofrer, é esse pedaço do passado
indelével que o acompanha, imóvel. O rasgo de inspiração vem na última frase: “mas
como dói” (poderia ter dito “saudade”, mas o ‘achado’ lhe apareceu no caminho,
como a pedra no de José: solução poética, pincelada de gênio).
Vinicius (marcado, ao centro): prole e amigos |
A simplicidade sempre
foi marca de Vinicius de Morais: em “Filhos”, ele exerce o benefício da dúvida.
Bom pai, amante nada parcimonioso, o poeta deixa no ar a dúvida: “Filhos...
Filhos? Melhor não tê-los! Mas se não os temos / como sabê-lo?” “Tê-los” e
“sabê-lo” são as duas pontas do dilema de se ter ou não os filhos. Expressões
nascidas de verbos, em movimento, do jeito que se fala: “E então começa a
aporrinhação: cocô está branco / cocô está preto / bebe amoníaco / comeu
botão”. Palavras simples, do dia a dia, cruéis, até (“bebe amoníaco”), fazem o
pai horrorizado achar melhor não “tê-lo”. Mas – e aí reside o conflito do belo poema
-, se não for assim, sem conhecer “ser pai”, como sabê-lo (o ter filhos)?
Chico Buarque é um poeta versátil. Vai da complexidade do
operário em “Construção” (“beijou sua mulher como se fosse a última”), à simplicidade
interiorana e singela, com sua “Banda”: “Eu estava à toa na vida / o meu amor
me chamou / pra ver a banda passar / cantando coisas de amor”. E esbanjando maior
singeleza, em Gente Humilde: “São casas simples com cadeiras na calçada / e na
fachada escrito em cima que é um lar / pela varanda flores tristes e baldias
/como a alegria que não tem onde encostar”. Paisagem bela porque simples.
Eleazar: um corte no silêncio |
O maestro Eleazar de Carvalho tinha uma genial para definir
uma pausa, um silêncio: “a pausa é como uma faca” (gritando a última palavra)!
“Sem lâmina / nem cabo!” (com os devidos acentos fortíssimos sobre as primeiras
sílabas de lâmina e cabo). O discurso simples e belo ou o silêncio podem ser mortais
como uma faca. Mesmo que sem lâmina. E nem cabo.
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