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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

ALMAS VENDIDAS, DEMÔNIOS E O PAPA FRANCISCO



Tartini e seu sonho

O tema, em arte, é recorrente, muito especialmente na música. Já tive oportunidade de citar neste espaço o grande violinista e compositor Tartini (1692-1770), que sonhara com uma peça de absurda dificuldade, que lhe havia sido tocada pelo demônio. Porém, depois dele, bem depois, Wolfgang Amuadeus Mozart (1756-1791) foi um talento surreal: repetiu de memória, aos seis anos de idade, um miserere inteiro, que havia ouvido uma vez apenas. 


Bastião e Bastiana: Núcleo de Ópera do Conservatório de Tatuí
Aos doze, sua primeira ópera, Bastião e Bastiana. Morreu jovem aos 35 anos de idade, deixando uma vastidão de peças, a maior parte de excepcional qualidade. Mas nada se falou, que eu saiba, de alguma ligação com o demo ou coisa assim. Com o romantismo, veio a época das mortes trágicas, amores impossíveis, suicídios, tuberculoses e pneumonias, que permearam as vidas loucas de Schumann, Liszt, Chopin e Beethoven, por exemplo. E maluquices passaram a visitar cada vez mais a mente fértil dos compositores. 


Wolfgang Von Goethe (1749-1832), um dos maiores escritores da língua alemã, é autor de uma grande obra-prima, um poema em duas partes para ser encenado, como em um recitativo: O Fausto. A obra foi publicada em 1808, como Fausto, uma Tragédia (“Faust, eine Tragödie”), e contava a vida de um certo Heinrich Faust, um grande intelectual, por sua vez baseado em escritos sobre a vida de Johann Faust - isso na virada dos séculos 15/16. Diz a lenda que Fausto adquiriu poderes mágicos para compreender tudo o que já foi dito e escrito. 


Mefistófele
Ameaça suicidar-se, em desespero, mas, deixando entrar em seus aposentos um cão vira-latas, vê que o animal se transforma em Mefistófeles, personagem que evoca Satã, que lhe propõe: Fausto terá todo o conhecimento, desde que, descendo ao Inferno após a vida, seja servo de Satã até o final dos tempos. 


Plena de citações, como a bruxa da poção mágica, personificada como Helena de Tróia no espelho, a obra de Goethe leva Fausto a convescotes entre bruxas e demônios. O personagem, por descumprir – na forma que, com as devidas escusas, hoje chamaríamos “inadimplemento parcial” – parte do “contrato”, consegue se livrar dos braços de Satã, sendo conduzido ao Paraíso. 


Thomas Mann
Thomas Mann, grande escritor alemão (1875-1955), filho do comerciante Johann Mann e uma brasileira, Júlia da Silva Bruhns, nasceu no então poderoso estado predominantemente protestante de Schleswig-Holstein. Mudou-se com a mãe para Munique, cidade católica mas extremamente permissiva, terra de boemia e festanças. Ali, Mann teve dúvidas sobre sua opção sexual, mas terminou se casando com Katia Pringsheim, judia que, com Mann, converteu-se ao luteranismo. Mann teve sua cidadania alemã cassada pelos nazistas (1936) por causa de sua esposa e chegou a ser perseguido pelo macartismo anticomunista ao mudar-se para os EUA. 


Mann publica outras obras-primas da literatura, como Morte em Veneza (1911), que se tornou um dos grandes filmes de arte do século passado, rodado por Luchino Visconti em 1971, com Dirk Boggard e Silvana Mangano. O filme tem um discurso cinematográfico cheio de símbolos, e é ambientado pela monumental 5ª Sinfonia de Mahler, em especial por seu movimento Adagietto. Transparece o conflito do personagem principal, um compositor adoentado, ao administrar uma paixão crescente por um sedutor adolescente de traços femininos, um polonês de nome Tadzio. O compositor morre sentado em uma cadeira de praia, admirando seu jovem amor platônico. A maquiagem que usava para encobrir sua doença desbotava e escorria com o suor. Um filme magistral. (Veja abaixo a cena final)




Leverkhün
Em Fausto, Mann retoma a lenda medieval e Goethe: um músico, Leverkhün, faz um pacto com o demônio, para obter desmedido virtuosismo. Vamos a um pequeno trecho (trad. livre pelo autor):

“Mas vejam o paradoxo de nosso artista: entenda que a expressividade – expressão como lamento - é o grande ponto de toda a construção artística: então não podemos fazer paralelos com outro aspecto, o religioso? (...) Aquele som que vibra no silêncio, que não está mais lá, e que fala apenas para os espíritos, som que tem a voz moribunda, não existe mais. Muda-se o significado: ele resplandece como uma luz no escuro”.

Mann começa a avançar sobre a expressão e a espiritualidade da música com seu personagem Leverkün em busca da perfeição. E avança sobre a figura do demônio:

“Tudo isso dito e sabido, eu agora peço licença para executar uma pequena obra que ouvi do adorável instrumento de Satã, cujos trechos as crianças cantaram para mim”.

Mann tudo elabora para chegar ao final do desespero de Leverkhün por não conseguir lograr a perfeição tão almejada, conforme trato celebrado com o Demo:

“Destruído pelo extraordinário, seu gosto arruinado por qualquer coisa, ele vai no mínimo deteriorar-se no desespero de executar o impossível. O problema para o talentoso artista era como, apesar de sua crescente obsessão, seu desgosto cada vez maior, ele ainda se sentia dentro dos limites do possível”.


Retornei a essa discussão, desta vez mais pelo lado literário e cinematográfico, inspirado pelas recentes palavras de Francisco, o Papa, reproduzidas na imprensa mundial e celebradas como avanço por membros mais progressistas não apenas da Igreja Católica, mas também de outras comunidades religiosas. Disse ele: “não há fogo no Inferno, nem Adão e Eva foram pessoas, tudo são símbolos bíblicos”. E já que não há aquele capeta retratado com chifres, rabo e tridente, resta-nos apenas trabalhar e não fazer tratos com quaisquer tipos de vigaristas, para não sermos vítimas de golpes e falsas promessas. Amém.

sábado, 25 de janeiro de 2014

CONSERVATÓRIO DE TATUÍ, 60 ANOS. A MELHOR IDADE



Neste 2014 em que o Conservatório de Tatuí completa 60 anos, cabe uma breve avaliação do momento histórico em que ele se encontra, assim como a situação da escola em âmbito do estado de São Paulo e do Brasil, bem como paralelos com alguns conservatórios do mundo, pontos fundamentais a este breve raciocínio.

A histórica Escola Nacional de Música, no Rio de Janeiro
O Brasil tem uma tradição equivocada de concentrar tudo, especialmente seus melhores equipamentos culturais, nas grandes metrópoles e capitais, coisa que vem da época colonial, passa pelo Império e suas capitais até a República, começando em Salvador, instalando-se no Rio de Janeiro por longo tempo até 1960, quando mudou-se Brasília (esquecendo a bagagem cultural praticamente intacta no Rio). Por destino ou inércia, a grande estrutura cultural tem raízes sólidas na antiga capital do Império e da República, o Rio de Janeiro, e em São Paulo, hoje a mais privilegiada.

Conservatório de Oberlin
Mas o que acontece nos outros países? O Conservatório de Oberlin, uma importante instituição dos EUA, aos 180 anos de idade, fica situado na pequena cidade do mesmo nome, com 8 mil habitantes. Seus excelentes professores vêm de centros importantes, principalmente da afamada Sinfônica da Chicago. O respeitado Conservatório de Genebra, na Suíça, antigo como o anterior, fica em uma cidade de 194 mil habitantes.

Lyon Conservatoire
Por sua vez, na França, o Conservatório de Lyon, cidade com pouco mais de 400 mil habitantes (bem menor do que Sorocaba), também perfila entre os melhores. Nenhum deles fica em capital, e, no caso de Oberlin, trata-se de uma cidade muito pequena, mesmo para os padrões do interior paulista. Como eles, o Conservatório em Tatuí é uma gema de ouro onde deveria estar.

O grande Eleazar de Carvalho
Nosso maestro Eleazar de Carvalho disse: “uma orquestra não se faz em dez anos, mas em cem”. E, como andam lado a lado orquestras e conservatórios, ao bem ultrapassar a metade de um século já podemos vislumbrar a consistência do Conservatório de Tatuí do outro lado do pêndulo, já de vento em popa rumo aos 100 anos simbolicamente preconizados por Eleazar, porvir cujo caminho porsseguirá frutificando, hoje e amanhã, por gerações e gerações.

Teatro Procópio Ferreira, do Conservatório de Tatuí
É preciso boas instalações, e não é uma luta que se resolve de uma vez. Bons instrumentos: muitos chegaram e outros tantos estarão a caminho. Manutenção, ferramentas para luteria, boas madeiras para trabalho, condições físicas para o estudo e a prática das artes cênicas. Tudo com acessibilidade - fora o que é antigo e arquitetonicamente impossível de mudar. Bons materiais de estudo, mais locais para apresentações – além do Teatro Procópio Ferreira e o Salão Villa-Lobos, há o novo espaço com o piano Rönish no salão do chamado anexo 3, e a bela sala de câmara na Unidade 2.

Professores de piano
Muito mais relevante do que isso, existe suporte ao trabalho dos professores e instrutores, em geral, pois são eles a máquina, com seu conhecimento e dedicação missionária, cujo motor impulsiona e faz do Conservatório uma instituição em movimento de permanente evolução. 

Artes Cênicas em ação
Some-se a esse sólido corpo docente uma equipe de produção elogiada por artistas brasileiros e estrangeiros, assim como a área de comunicação e secretaria, RH e financeiro, entre outras, que se superam a cada dia, além dos servidores administrativos, de suporte, portaria e limpeza, que recebem a todos, cada dia, sempre com um sorriso. É preciso controle e disciplina – afinal, trata-se de uma organização do porte de uma empresa de 300 funcionários, com todas as suas virtudes e mazelas. 


Alunos em performance
Por fim, mas claro que não por último, o mais importante: aqueles por cujo ingresso sempre aguardamos com ansiedade, cuja qualidade para disputar uma vaga de aluno tem sido visivelmente melhor nos últimos anos, o que inspira e motiva a todos. Como nos conservatórios do mundo citados e em todos os outros do mundo, as disciplinas acadêmicas são organizadas em quadros e currículos programáticos bem elaborados, etapas semestrais a serem vencidas, provas – sim, o mundo da música passa por aí -, e uma preparação técnica aliada ao estímulo à melhor execução. O Conservatório é o meio, os alunos são seu grande objetivo.

Hermeto Pascoal, o Bruxo: Painel Instrumental
Para 2014, na melhor idade, recebemos da Secretaria de Cultura do Estado um amplo aporte especial que nos possibilitará organizar a maior temporada artística de todos os tempos – os Encontros Internacionais (de instrumentos, performance histórica e luteria) acontecerão em dobro: em vez dos tradicionais cinco por ano, serão dez, movimentando uma estrutura de pessoal compatível com grandes festivais e casas de concertos e de shows. A concorrida área de MPB-Jazz terá oportunidade de mostrar o que tem de melhor, ao mesmo tempo em que trará grandes oportunidades para seus alunos com seus convidados. Não cabe detalhar e contabilizar números, eles por si não dizem muito, cabe ver os parâmetros de qualidade: Certame da Canção (do Festival de MPB), Painel Instrumental, FETESP, Cururu, concursos e diversos outros. 


Luteria (foto Xpress)
É raro no Brasil uma escola de música atingir 60 anos, ainda mais gozando de plena saúde e disposição, mesmo porque assim deverá prosseguir como nossas irmãs europeias e norte-americanas, além do século, e muito além de todos, que, braços dados, participam de cada etapa, fundamental à sua consolidação como uma escola modelo. Por isso mesmo, cidades do estado de São Paulo e também de outros estados têm vindo pedir orientação para novas ou existentes escolas de música de todos os tipos e dimensões, apoio que a equipe do Conservatório empresta sempre graciosamente, pois que isto é mais do que o espírito republicano, é missão mesmo dos que veem na música parte fundamental da cultura de um povo e marco indissociável de toda a civilização. 

Parabéns, Conservatório de Tatuí! Parabéns, Brasil!


sábado, 18 de janeiro de 2014

HADDIH E SUA MÚSICA MULTICOLORIDA

Haddih é um pequeno povoado quase desconhecido que se espreme entre as fronteiras da Jordânia, do Iraque e da Arábia Saudita. Com pouco mais de 10 mil habitantes, consiste em uma espécie de pequena república, não oficializada e tampouco reconhecida. Sua instalação foi permitida informalmente pelos países limítrofes, uma vez que a regra maior, desde o surgimento do povoado, é a não-beligerância. Entre as raras proibições, o ingresso de armas, o que é natural quando se quer viver em paz.

Ceia do Hosh Hoshaná
Lá convivem, desde o final da primeira guerra, judeus, turcos, curdos, armênios e palestinos, entre outros. Em Haddih todas as religiões são aceitas, desde que haja respeito de cada um à fé e à igreja dos outros. É comum a frequência de cristãos à sinagoga, e deles com os judeus à pequena mesquita local. Festividades religiosas são comemoradas ecumenicamente, como o Natal, o Hosh Hoshaná e o Mouloud (nascimento de Maomé).

Naguilé
Em Haddih homens e mulheres se cobrem, para enfrentar vento e temperaturas oscilantes. Mulheres não usam a burca, embora as idosas ainda mantenham a tradição dos longos mantos; vê-se jovens com roupas refrescantes, no verão, e, como em qualquer lugar, à mão um copo de vinho fresco ou cerveja, de tradições milenares. Há raros automóveis, mesmo porque não são necessários, a não ser em caso de emergência. Há carroças, triciclos para aluguel e muitas bicicletas. O costume do naguilé também é permitido, embora não generalizado, pois trata-se de tradição antiga de alguns desses povos abraçados a uma vida contemplativa e sem extravagâncias. Os haddihitas produzem pão sem fermento, usando o próprio trigo e a cevada que também lhes permite fazer em pequena escala uma cerveja escura, encorpada, admirada nos países limítrofes por seu gosto forte e particular. Frutas da região, como tâmaras, além de arroz e carne ovina ou suína são a base da alimentação local.

Sábio Haddihita
Para quem vê de fora, Haddih parece uma cultura não-capitalista, e longe de feudal ou monarquista. Seria uma pequena república. Surpreende a liberdade e a forma de governo essencialmente democrata, e cujos representantes são eleitos para cargos voluntários pela comunidade por sufrágio universal, entre os mais sábios indicados pelos eleitores, sem campanhas eleitorais, apenas discussões coletivas. Como seria natural, já há algumas gerações de várias origens casando-se entre si, e não há prevalência de uma religião ou origem sobre outras, apenas convivência. Um ancião de amplos conhecimentos e estudos é eleito uma espécie de magistrado, cuja palavra é acatada por todos. Cometer algum ilícito em Haddih, embora fato raríssimo, é algo tão malvisto pela sociedade que se torna impossível para o cidadão continuar vivendo no povoado, o que o leva a procurar outro local, outro país, às vezes por convencimento dos próprios cidadãos.

Carroças abastecem as feiras de rua, onde se compra batatas, tâmaras, nozes, carne seca, roupas, calçados e bijuterias de cobre com pedras coloridas. Os negócios são fechados com produto contra produto, na base da troca, e se alguma rara moeda surgir no negócio, como o ryial árabe e o shekel israelense, são negociadas simbolicamente apenas para troca, já que não há um câmbio oficial. Trocas com moedas são usadas quando o transporte da mercadoria à feira, como ovelhas e porcos, é difícil e inconveniente. Há também pequenos leilões, em que os cidadãos se aglomeram, em clima de festa, e fazem suas ofertas.

Shofar
A cultura é muito rica, dadas as origens que compõem o povo de Haddih, sendo bastante comum o uso de instrumentos musicais milenares, como o shofar e o kinnor judaicos, lado a lado como o qnanun, a pandora  e o tambura árabes. Mas não se espante se em um desses grupos encontrar instrumentos bem ocidentais, como o violino, costurando melodias em comum com os demais.

Dança persa
Logo, casais levantam-se a dançar e, para alegria geral, a debka árabe se junta a danças pastoris dos kibutz israelenses. Pequenas sanfonas de poucos baixos ajudam a animar a festa, e se algum violão surgir, também será bem-vindo. As representações teatrais frequentemente encenam motivos cívicos, como o surgimento de Haddih, seus fundadores, precursores e história, assim como o culto ao Deus de todos os povos, à fertilidade da terra, ao sol de todos os dias e agradecimento por mais um dia.

Energia eólia
Em Haddih há eletricidade apenas à noite e onde necessária, antes movida por geradores e cada vez mais pela energia eólica, em franco desenvolvimento, mas durante o dia as janelas e portas são generosamente amplas e permanecem abertas. Tentativas de se vender televisores com parabólicas ou internet, nos últimos tempos, não lograram êxito: o estilo de vida dos haddihitas é refratário por natureza às inovações espetaculosas da cultura ocidental moderna. Os pais educam as crianças para profissões necessárias, como medicina, que elas deverão estudar com afinco com algum ancião desde cedo. Já a música é parte de grande importância para a comunidade, assim como as artes cênicas e plásticas.

E para entender o mundo ao redor e melhor se comunicarem entre si, o hebraico, o árabe, o persa, o armênio e o grego são linguagens comuns. É notável ver as crianças desenvolvendo dois ou mais vocabulários e alfabetos, mesclando-os no que poderá ser um dia a linguagem particular da pequena comunidade.


Caro leitor, agradeço por ter compartilhado comigo esta alegoria. Haddih não existe nem nunca existiu. Apenas criei um lugar imaginário para vermos que o mundo vem trilhando muitos caminhos equivocados, consumido pela tecnologia desenfreada, o culto ao capital e ao consumismo e pelo ódio insano entre os povos, ao invés de se preocupar com o futuro e o bem estar de seus filhos. 

[Agradeço a inspiração em Luís Carlos Magaldi, autor de "O Grito do Cordeiro". SP: Editorial 25, 2013, assim como as reflexões de Barenboim e Said, em "Parallels and Paradoxes"]

sábado, 11 de janeiro de 2014

E O BREGA VENCEU O MEDO

Wando
Com a morte do cantor Wando (1945-2012), no ano passado, a breguice voltou a ser assunto. Rei dos shows em subúrbios e cidades de todos os estados do país, foi orgulhoso possuidor de quase 20 mil calcinhas, jogadas no palco por suas exageradas fãs. Compunha música de dor de cotovelo, paixões enlouquecidas (“Vulgar e comum é não morrer de amor”), pitadas eróticas (“Obsceno” e “Tenda dos prazeres”). Era o brega-pop, com um pouco de cada gênero, da jovem-guarda a Nelson Gonçalves, da balada americana a Cauby Peixoto.

Francisco Petrônio
Esses astros do vozeirão eram imbatíveis mesmo para os ídolos da MPB. Tanto é que Caetano, ao gravar com Nelson Gonçalves, pediu para o menestrel que subisse um pouco o tom, já que para ele, Caetano, estava um pouco baixo (grave) demais. Respondeu Nelson: “vai falando, como faz o João Gilberto...” Desses vozeirões lembro-me bem do Carlos Galhardo, dos versos deslumbrantes: “num salão grená / paira pelo ar / nota esmaecida / o perfume teu / resto da canção / que foi minha vida” (essa foi trilha de uma peça de teatro, no Rio, em que atuei como músico). E tinha Francisco Petrônio (1923-2007). 25 LPs de baladas, boleros, canções, deixando sua voz de peito junto às vitrolas dos saudosistas (que ainda guardam essas engenhocas giradoras).

Mas o que vem, exatamente, a ser brega? Diz o Houaiss: “que ou quem não tem finura de maneiras; cafona”. Os mais finos podem usar a palavra Kitsch, que em alemão designa “objeto inútil”, muito em voga na Bauhaus (escola e tendência de arquitetura e design da primeira metade do século 20), mas que também queria dizer o que chamamos cafona. O símbolo do Kitsch seria o pinguim de geladeira – mas o bichinho, a depender do ambiente, pode ser até chique, como em uma casa modernamente decorada de uma dama da alta sociedade. E pode virar, diria a socialite, "conversation piece", puxador de assunto: "querida, que ideia genial! Esse pinguim ficou ultra-pop em cima do teu piano. Chique!" Pois então, o brega dependeria do ambiente em que está e de quem usa ou canta? Afirmo que sim.

Pois a Jovem Guarda era brega, malvista pelos conservadores da bossa/MPB por incluir guitarras elétricas em seu instrumental, mas foi guindada a cult pela mescla de influências de todos os lados, com Gil e Caetano, Mutantes, guitarras e plumagem pop. Então Roberto subiu ao trono. Pelas mãos dos tropicalistas, também transformaram em “cult” um dos suprassumos do brega, o Chacrinha.

Disco de telefone na barriga saliente, buzina para calouros, calças listradas. E com seu discurso único e sua vestimenta brega foi louvado pela ‘baianidad’. Cantou Gilberto Gil: “Chacrinha continua balançando a pança / e buzinando a moça e comandando a massa / e continua dando as ordens no terreiro / alô, alô, seu Chacrinha / velho guerreiro”.

Milhões cultuaram a cafonice americana, desde Elvis Presley (de vozeirão sedutor) até Madonna, de poucos dotes, além de alguns novos pequenos tipos, como Justin Bieber e Miley Cyrus. A riqueza se confundiu com a breguice nos estados americanos mais ricos, nos quais picapes superluxo com chifres de touro no teto e rifle pendurado atrás são o luxo e a beleza artificial aliados ao poder comprá-la e exibi-la.  Ser brega nunca foi pecado nos EUA, é luxo.

Cauby Peixoto: insuperável
Quem não se lembra do Cauby Peixoto (1931) de “Conceição”? Pois há muitos, muitos anos, precisando de uns trocos, surgiu-me um convite para tocar no Tijuca Tênis Club (se não me engano). Seria um grande show, paga boa. Mulheres à beira de um ataque de nervos, balzaquianas e pós-balzaquianas, o canhão de luz rodando em busca do Cauby, até que uma voz de locutor levanta os aplausos: “senhoras e senhores, Cauby Peixoto”. Muito simpático, beijou (sem tocá-las, como manda a etiqueta) as mãos de todas as madames desesperadas da primeira fila e outras mais atiradonas. Blazer bordado em flores, cabelo “afro”, sombrancelha feita, pancake, recebeu pedidos escritos em papeizinhos que eram colocados em uma cesta. Ia de Beatles a Aznavour, árias de ópera a Nico Fidenco, Ataulfo Alves a Jobim. Ouvido absoluto, dramático de arrebatar lágrimas, uma memória gigante... e está por aí, para quem quiser vê-lo, ouvir e aproveitar.

Há alguns dias, faleceu Nelson Ned, mineiro de Ubá (1947-2014), cantor e compositor, autor de “Tudo Passará”, talvez o maior sucesso de sua carreira – canção que mereceu 40 regravações na voz de outros cantores. Era portador de deficiência (nanismo), distúrbios neurológicos que foram se agravando com o tempo, até o início do mal de Alzheimer e a paraplegia. Superou de verdade, o resto dos que vendem falso sofrimento são puro marketing. Sofreu, amargou tantas doenças, abria o jogo sobre sua vida particular sem precisar de biografia: tormentos pelo vício em drogas, alcoolismo, depressão profunda, infidelidade... nada ele escondia, tudo era parte de sua imagem. Só não se conformava em ter muito dinheiro e se achar no fundo do poço. Vendeu 48 milhões de discos, a maior parte no mercado latino do exterior.

Em Boston, aliás na vasta região da New England (e, com certeza, na Flórida e Califórnia), o nome de Ned era muito conhecido. Basta dizer que em qualquer mercadinho de produtos latinos comprava-se feijão preto, Ypioca, Goiabada Cica, torresmo, carne seca, guaraná, comida e pimenta mexicana (jalapeños) e malagueta – na saída, junto ao caixa, um estande de discos: Roberto Carlos e Nelson Ned. E Ned vendia.

Um subproduto bem brasileiro, a doença maior que Nelson Ned não conseguiu superar, foi o preconceito: era brega porque cantava romântico, invejado porque tinha um vozeirão, e como Nelson Gonçalves, Cauby e Petrônio, objeto de ciúme dos que fazem (ou tentam) sucesso com suas vozinhas diminutas. Deixou uma lição em seus versos: “Mas tudo passa, tudo passará / e nada fica, nada ficará / só se encontra a felicidade / quando se entrega o coração”.