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sábado, 26 de julho de 2014

NA INGLATERRA, TAL QUAL OS INGLESES - PARTE II

Onde convivem tradições, culturas e religiões

[Antes de iniciar, devo esclarecer que não serei a favor ou contra uma ou outra coisa que passarei a narrar. Minhas opiniões guardarei para mim, já que o caro leitor deve ter suas próprias. Os assuntos nesta breve série se entrelaçam e se entretecem como uma peça de tapeçaria, impossível pensa-los isoladamente].

Diáconas em Bristol
Custa-me entender como uma nação que vive sob uma monarquia - aos olhos externos conservadora - possa avançar tanto dentro de seus próprios princípios e raízes. A Igreja Anglicana diverge das demais cristãs (assim como as outras entre si), mas já se distanciava do Vaticano antes da Reforma de Lutero. Com o tempo, a Igreja deixou de prevalecer sobre o Estado. Modernamente, foi concedido às mulheres o direito de exercer o sacerdócio em todas as suas prerrogativas canônicas. Este ano, no simbólico 14 de julho – data da Tomada da Bastilha, marco da Revolução Francesa -, elas adquiriram também o direito de serem ordenadas bispas. A vitória, nessa segunda tentativa, se deu por esmagadora maioria. A repercussão foi imensa, e os defensores da mudança acham que a inovação atrairá mais mulheres para seus cargos e fieis para seus quadros. Claro, entre os opositores há uma minoria em desacordo com essas inovações. Citam a Bíblia, mas os liberais entendem que as Escrituras datam de milênios atrás, devendo, portanto, serem compreendidas sob a ótica dos dias de hoje, argumentando que não há, assim, desrespeito aos textos.

A questão feminina tem outros focos muito interessantes. Ora, o aborto é legal no Reino Unido há mais de 40 anos, enquanto outros países o empregam em parte e ainda o discutem (EUA) ou o eliminam das discussões (não cabe aqui analisa-lo sob o ponto de vista brasileiro, multifacetado como um caleidoscópio). No RU o aborto, à exceção de quando à mulher ou ao feto há risco de morte de um ou ambos, também é permitido por declarado impedimento de uma gestação ser levada adiante por incapacidade de a mãe cuidar de um filho, e casos são analisados um a um (reitero aqui minha advertência impessoal no início deste texto!). Há que se ouvir assistente social, psicólogo e obter dois laudos diferentes de médicos independentes. Obviamente, se por motivo de crença religiosa – já ficou claro aqui que o Reino tolera todas as religiões, as quais respeita em seus princípios particulares -, é facultada à gestante a decisão final, resguardados os citados casos em que o risco é iminente, quando prevalece a decisão dos médicos.

1965: os Beatles recebem da Rainha a Ordem do Império
Nessa Inglaterra tida conservadora nasceram quatro rapazes em uma cidade portuária da grande Londres, Liverpool (coisa de uns 25 minutos de trem). Chamavam-se John, Paul, George e Ringo Starr, e fizeram uma revolução de costumes, sofisticaram o rock’n’roll americano e mudaram a música do mundo; lançaram moda e se tornaram heróis do Reino Unido, recebendo uma das mais altas condecorações das mãos da Rainha (OBE, Ordem do Império Britânico). Houve algum reboliço (mas nenhum problema) quando eles declararam que antes da cerimônia fumaram maconha em um dos banheiros palacianos. Mas tratava-se dos Beatles, grupo que o lendário maestro Leonard Bernstein afirmou ser a maior conquista da música popular mundial do século 20, e uma revolução na música vocal.

Londres nos tempos das minissaias
Naqueles anos 1960, uma estilista inglesa chamada Mary Quant, a bordo dessa pacífica revolução de costumes, inventou uma peça chamada minissaia, que deu à modelo Twiggy o status de uma das maiores estrelas de sua década (de tão magra, em São Paulo a chamariam ‘pau de virar tripa’, para quem sabe como se faz uma linguiça). As garotas usavam a minissaia em três tamanhos: bem curtas, curtíssimas ou extremamente curtas. Pois na Londres de hoje ainda as vemos nas ruas, ônibus, metrôs, minissaias e microvestidos, shortinhos às vezes sumaríssimos, elegantíssimos, cada uma a seu modo. (Curioso: eu, vindo de um país ‘moderno’ e ‘avançado’  – afinal, o Brasil é uma república plena de balneários, praias e mulheres lindas -, perguntei a alguns jovens do hotel se aquelas roupinhas não causavam algum mal-estar, gracejos ou revelavam olhos arregalados de estupradores em potencial).

Segundo pesquisa infeliz feita pelo Ipea entre homens no Brasil, para 58,5%, depois corrigidos para uns ainda ridículos 24%, roupinhas assim incitariam nos machões o desejo de estuprar quem as veste. A turma inglesa afirmou que nunca, nunca havia visto nada assim. Olhar, apreciar a beleza, sim, mas instinto animalesco é outra coisa. Lembro-me agora de um livro de contos do Fernando Sabino (meu exemplar traz um autógrafo carinhoso do “tio”), chamado “A Inglesa Deslumbrada”. Nele, Sabino conta que durante um voo sentou-se ao lado de uma inglesinha, puxou assunto e logo sua companheira de viagem não resistiu à curiosidade: delicadamente, perguntou-lhe se era verdade que no Brasil pessoas andavam sem roupas (com certeza, deve ter visto fotos de indígenas brasileiros). Sabino respondeu que sim, os índios por tradição e os demais por causa do enorme calor, o que fez a moça esbugalhar os olhos, assustada.

Saias, minissaias e shorts
Foi um pouco assim que eu reagi ao pensamento do grupo londrino: cada um se veste como quer, e o costume individual, de roupas e manias a preferências afetivas, é assunto particular que não diz respeito aos demais cidadãos. Depois dessa, senti-me um “brasileiro deslumbrado” diante daquela maneira livre de ver os outros, e puxei outro assunto para não prosseguir. Quanto à tal ridícula pesquisa do Ipea, fiz bem em não comentar: evitei passar a vergonha de ser visto como uma caricatura de latino vulgar vindo de um país machista e reacionário. (Continua no próximo artigo).

Garotas em shorts no metrô: uniforme de verão

sábado, 19 de julho de 2014

NA INGLATERRA, TAL QUAL OS INGLESES - PARTE I


PARTE I - ONDE CONVIVEM LIBERDADES INDIVIDUAIS E RELIGIÕES


Mapa do Metrô de Londres
Ninguém conhece um país senão após anos de lá viver, dominar-lhe a língua, poder ler seus jornais e entender notícias da TV, e, claro, compreender lugares e coisas. Há que se conhecer um país por sua origem, seus antecedentes, suas mesclas raciais, costumes, alimentação, valores estéticos, culturais, leis, religiões, enfim, a cultura em forma mais ampla possível. A curto prazo, quem conhece bem o idioma deve passar sem guias ou grupos de turnês, por menor que seja tempo de viagem: é preciso sentir-se um a mais na multidão das ruas e avenidas. Pegar ônibus, metrô, andar a pé – costume sadio em todas as grandes cidades do mundo -, fazer compras, conversar, criar amizades e ver ao vivo, em cores e odores qual a fatia com que contribui para a nossa enorme sociedade ocidental.  

Há aparentes contradições, na verdade grandes contrastes, particularidades dos países que visitamos. E se falamos da Inglaterra, que visitamos neste artigo, trata-se de mais de quinze séculos, sem contar todo um passado que remonta ao período paleológico superior e várias civilizações, entre elas a conquista alemã. Quando, logo ali no parágrafo anterior, referi-me à ‘nossa sociedade ocidental’ quis dizer o ‘nosso mundo americano e europeu’ (nas Américas, os livros das escolas se esquecem propositalmente de nossas verdadeiras e longínquas origens indígenas). Voltando às ‘contradições’, devem-se à visão belicista: nações em permanentes conflitos, radicalismos e fanatismos decorrentes da sede pelo poder, de fundamentalismos religiosos e disputas raciais arraigados lado a lado sob profundos vincos históricos.

Em Londres a convivência é inegavelmente sociável e pode começar na sua própria vizinhança: na esquina da ‘townhouse’ onde estou, nessa breve temporada, fica o Central Mosgue (foto acima), mesquita muçulmana paquistanesa, com direito a vestes e burcas. A poucos metros, na estação de metrô Willesden Green, há uma comunidade judaica ortodoxa – homens de chapéu preto usam suas ‘tranças de Sansão’ sobre as costeletas: querem ‘repovoar o mundo’ aumentando-lhe a participação judaica. É comum vê-los todos enfurnados em seus livros sagrados, cristãos lado a lado com judeus e muçulmanos, a bordo, cada um, de sua Bíblia, ou Torá ou Alcorão.



E essa confluência pode acontecer até mesmo em frente a uma Igreja Anglicana do porte da linda Westminster Abbey (foto ao lado),  construção cristã de 1245, às ordens do rei Henry III. É uma cidade de imigrantes, acrescida de um contingente enorme de negros e todos os que contribuem para seu progresso – às avessas do maior mal dos povos radicais e fanáticos, apegados à ira, à inveja, à cobiça e ao orgulho, ditos pecados capitais. A xenofobia (do grego ‘Ksénos’, estranho, e ‘fóbos’, medo) é a amante manteúda dos radicalismos, supostamente em nome da segurança de nações a povoados que precisam manter seus dogmas de superioridade. É o medo de perder espaço, ver ameaçada a supremacia de suas propriedades pessoais, seu pequeno poder, resquícios de eras pré-históricas.

Para um brasileiro, pode parecer estranho um estado livre declaradamente religioso, que adota por lei a fé da Igreja Anglicana. Pela constituição do Império, a rainha é Chefe de Estado e de sua Igreja, uma ordem social em que as duas coisas se confundem e quase nunca são questionadas (como veremos em um próximo artigo). A monarquia não se imiscui em questões de outras religiões. Enquanto isso, ainda se discute se o Brasil é país constitucionalmente laico (aquele  “sob a proteção de Deus” do preâmbulo, é apenas a introdução, o discurso inicial (A Constituição em si começa no Título I). O preâmbulo fala em Deus (ver imagem acima), mas não do Deus de qualquer religião). Curioso: mesmo laico, o Brasil, cada vez mais, é vaca de muitas tetas para grandes conchavos políticos de bastidores e dos mais pérfidos acordos com ‘igrejas’ (em sua maior parte, seitas) com fictícios ideais de fé e fortemente seduzidas por chicanas partidárias, enriquecimento ilícito e corrupção.

 

("É tão difícil e perigoso tentar libertar um povo que quer permanecer servil, assim como o é escravizar um povo que quer permanecer livre")
 
Afinal, no Brasil de hoje quando se conquista o poder é preciso mantê-lo mesmo que loteado no executivo e legislativo, descomprometido com quaisquer fundamentos de ordem ideológica ou fé religiosa que, iludindo fieis, ajudam-lhe a carrear votos. (Nicolò Machiavelli explicou com sua máxima sabedoria sobre a necessidade de manutenção do poder pelo Príncipe sobre um povo sobre o qual impôs seu domínio).

(Pub e barzinho do século 17 às margens do rio Tâmisa)
 
A Inglaterra é equivocadamente tida como um país extremamente conservador, pecha que vamos refutando por aqui aos poucos. Ela é uma monarquia democrática e permissiva a um limite do sociável, por outro lado com limites permeáveis da liberdade individual em vida comunitária (falarei sobre mais esse ‘contraste’ político em um próximo artigo). Em Londres, como em qualquer cidade turística por excelência, pessoas sentam-se nas mesas de pequenos bares nas calçadas tomando cerveja no centro, bairros ou nos aprazíveis entornos do rio Tâmisa. (Nos EUA, um dos países com maior contingente de alcoólatras nas ruas, tomar chopp ao ar livre é ilegal, há que ser sempre às escondidas, prova de que não adianta nada).

 

Piccadilly Circus

 
 No coração do centro londrino, jovens de todas as gerações e origens sentam-se ao redor do lindo Piccadilly Circus, ouvindo músicos de rua sem sequer se distraírem com casais de diversas opções pessoais que passeiam de mãos dadas. Um país religioso é extremamente conservador e reacionário por causa de uma fé ‘oficial’? A Inglaterra de Londres prova que absolutamente não.  (O assunto Inglaterra segue no artigo do próximo número)

sexta-feira, 11 de julho de 2014

NEYMAR E A FILARMÔNICA DE BERLIM

Toda criança um dia sonhou ser jogador de futebol. Eu também, mas desde o colégio percebi que não havia talento em meus pés, e ao desistir nasceu mais um torcedor do glorioso Botafogo. Por dois anos fui ao Maracanã com meu primo Paulinho nos dias de nosso time, campeão invicto de quatro taças (Guanabara e Carioca - o tempo me concede justas concessões à inexatidão da memória).

Mestre Mané
No campinho da General Severiano, batíamos uma bolinha para esperar a saída do treino dos jogadores, verdadeira ‘seleção brasileira’. Simples, batiam papo ou bolinhas conosco, era a glória! E no passado teve “a alegria do povo”, o maior driblador de todos os tempos, o botafoguense Garrincha. Um gênio que, quando ia visitar sua cidadezinha natal (Pau Grande, interior do Rio), batia bola no velho campo de várzea e depois tomava sua cerveja com os amigos que nunca largou. Vi uma dezena de vezes o documentário “Garrincha, Alegria do Povo”, de Joaquim Pedro de Andrade, uma declaração de amor ao herói maior, o ‘anjo de pernas tortas’.

A "vitória de Pirro" do período Médici
Assisti a quase todos os jogos do Brasil nas Copas desde 1970, ano do fabuloso tricampeonato brasileiro, troféu nas mãos do ditador Gen. Garrastazu Médici, na esteira de seus ‘pra frente, Brasil’ e afins, cobertura para seus atos insidiosos (‘a ferro e fogo, em carne viva’). Hoje não há mais simplicidade e a humildade em nossos jogadores, apenas exibicionistas milionários, donos do kit fama – corrente de ouro, carro importado  loira na cama. Ou quem se ache ‘sentado à direita de Deus Pai’, a ‘julgar os vivos e os mortos’, afogado na soberba e na obsessão de um reinado de página virada.

Desenho a lápis de Howard Dubois (claro, eu não chegava aos pés disso)
Meu tio Augusto Maciel era um excelente desenhista. Eu lia seus livros de arte, observava os traços cirúrgicos que ele dominava, a ponta de lápis fino a esboçar contornos e sombras. Minha mãe me deu papel, crayons, carvão, e passei a retratar cavalos, meus modelos favoritos. Desculpem-me, mas já que disse ‘traços cirúrgicos’, aproveito o corte para a medicina (mas retorno ao desenho mais adiante).

Também gostava dos livros de meu tio médico Marcelo Campos Christo (aquele de química, H2S04, NaCl2 , mais pela beleza plástica do que por qualquer sentido que fizessem). E tanto lhe enchi a paciência que, aos 12 ou 13 anos, um dia ele me levou para assistir a uma cirurgia. Fascinante: corpo e cabeça do paciente separados por um pano branco na vertical, e eu, ‘auxiliar mirim’, de pé sobre um banco alto a pulsar uma bolsa de borracha, auxiliar de respiração durante o procedimento, a admirar de soslaio a enorme máquina coração-pulmão.

Separador cirúrgico
Vem o bisturi elétrico, e um ruído agudo seguiu o fio de faca quente na manteiga, as camadas de pele se abrindo. Introduziram o separador cirúrgico para afastar as costelas para serragem, rumo ao coração e a caminho da válvula mitral. Foi quando eu, meio tonto, regurgitei na máscara. Meu tio grita pelo amor de Deus, carrega esse menino para fora, se ele cai nessa mesa eu vou preso! Naquele dia desisti da medicina. Depois, alternando minha vida com a música, o vestibular me levou ao desenho industrial. Gestalt, Bauhaus, Milão, e muitas dúvidas ainda. O curso de design tranquei depois de um ano, e fiquei direto na música, na Fefierj, começo de logo caminho.

Volto à coisa do talento, retornando ao futebol: outro dia surgiu um talentosíssimo garoto, quase adolescente, uma grande esperança que atende pelo nome de Neymar. De origem pobre, da Santos das praias, cais e estivadores, desde cedo tornou-se a estrela que ilumina os passos de seus colegas em campo. Brincalhão, mas sério em jogo, o garoto mestiço de olhos claros que lançou moda com seus mutantes cortes de cabelo trouxe um jeito pessoal de jogar, tanto quanto as rígidas regras do chamado ‘futebol moderno’ permitem.

 
  
 
Acidente?
Agora, posso comentar aqui o que não foi azar nem acidente. Revisitei dezenas de fotos e filmagens, e vi a face do colombiano Zuñiga sob vários ângulos, os olhos cravados na nuca do nosso menino como um abutre a abater sua presa (perdoem-me a rude comparação). O golpe fraturou a 3ª vértebra de Neymar, tirando-o da Copa. A saída de campo foi muito triste, não foi como antigamente, maca e médicos de branco. Foi mórbida, aquela maca de retirar corpos soterrados ou vítimas de chacinas, um cortejo de maus presságios. Mas passado o primeiro susto, Neymar está muito bem, logo volta a jogar futebol como nunca. Rico? Muito, hoje não é mais o tempo do Manga e do Garrincha, assim como não é o do Cauby e da Emilinha. Jogadores e cantores tiveram seus salários e cachês catapultados ao longo dos anos. Dinheiro não fez de Neymar maior ou melhor, seu salário é a paga do mercado por sua habilidade e pontaria com os pés.

Noah Bendix-Balgley, 29, novo spalla da Filarmônica de Berlim
Em música (e retomo o assunto, agora para finalizar), quando o maestro não demonstra segurança à frente de sua orquestra o grupo se ‘desconcerta’ (com ‘c’ mesmo), mas o spalla, o violino solista, quando exímio líder, usa seus movimentos para conduzir o grupo diante de um regente inseguro - e até na ausência dele. A seleção brasileira ficou desfalcada de seu spalla, e mostrou-se claudicante sob um técnico desorientado e nervoso, instigando nos atletas sua insegurança. Nossa seleção, um céu de estrelas pinçadas pelo mundo, foi orquestra montada de última hora, para alguns concertos e ‘até logo mais’. Ao contrário, a esquadra alemã é montada com jogadores que formam um conjunto coeso de velhos companheiros. Assim também acontece com a Filarmônica de Berlim, que não reúne todos os melhores solistas do mundo, mas é seguramente o melhor conjunto porque seus músicos tocam impecavelmente juntos. Nosso spalla saiu do palco e o maestro inocula incerteza em seus artistas, que deverão sucumbir ante um time orgânico, compacto e preparado para vencer, tal qual a Filarmônica de Berlim.  (Texto para o jornal O Progresso, concluído às 15h46, antes do jogo).

 

sexta-feira, 4 de julho de 2014

NOVO FADO: A VOZ JOVEM DA VELHA MELANCOLIA PORTUGUESA



O bom e velho fado
Dia desses que passou entrevistou-me um periódico de Santos acerca do revival (‘renascimento’) do fado, do belo e velho fado português. O mote da matéria foi a linda voz da portuguesa Cuca Roseta, que lá se apresentou com sucesso imenso. Era a voz do ‘novo fado’, pois que o tenho cá comigo, charmoso sotaque lusitano se revela no canto e na poesia. Com ela, Carminho, Ana Moura, Raquel Tavares, a banda Deolinda e a bela voz de Antonio Zambujo (destaque entre as novas masculinas), soma-se uma geração que reacende nos corações lusitanos a chama da ‘terrinha’.

Carminho: a jovem beleza do velho fado
Carminho, fadista de lindíssima voz, é enamorada da tradição, aquilo que cá no Brasil chamaríamos ‘fado de raiz’, com seus melismas (espécies de arabescos melódicos virtuosísticos), riqueza das rimas e a rememorança do velho xale e do leque que abana o rosto sofrido das antigas fadistas. Zambujo, de voz suave e encorpada, dispensa os melismas (tais ornamentos) e se apaixona pela simplicidade sem românticos volteios e vibratos, oscilações que dão colorido à voz. (Veja e ouça abaixo Carminho, em “Meu Amor Marinheiro).

 


Os Argonautas
São caminhares diferentes para os mesmos destinos - aliás, literalmente o fado, palavra que vem de ‘fatu’, do latim ‘destino’, mesmo, ora pois. Eis quando dizemos ‘estamos fadados’ a alguma coisa, cremos que nosso destino está selado, diante do inevitável. Essa amargura, tão portuguesa, e tão lamentosa melancolia (mesmo se lhe canta em felicidade) faz difícil, ao ouvi-la, dissociar contemplação, belo, amor e tristeza. É o “navegar é preciso”, que Caetano pegou emprestado do poeta luso Fernando Pessoa, buscado no verso em outro escrevinho d’antanho, citando o general romano Pompeo, juntado aos seus versos de fado baiano:

“O barco! / meu coração não aguenta / tanta tormenta, alegria / meu coração não contenta / o dia, o marco, meu coração / o porto, não!... / Navegar é preciso, viver não é preciso...” Tormenta e alegria se confundem, e o barco do início somente se explica ao final: o porto, navegar. Nesses versos de “Os Argonautas”, Caetano lembra o Argo, a embarcação cujos tripulantes saem para conquistar o velo de ouro, preciosa lã doirada do carneiro alado Crisólogo, lá detrás na mitologia grega. A busca da preciosidade, a lã de ouro, tem o sabor do destino, já consagrado pelo grande poeta Camões (1524-1580), o das “armas e barões assinalados”, épico e aventureiro das glórias lusitanas. (Veja e ouça Caetano cantando “Os Argonautas”, ao vivo)

 
 
Maria Bethânia e Elizeth Cardoso em
Esta Noite se Improvisa
“Os Argonautas” coroa não apenas a criatividade de um fado brasileiro, mas também a veia poética de uma das maiores memórias da MPB de que tive notícia. Caê era imbatível em um programa de auditório de TV, daqueles que não se fazem mais, “Esta Noite se Improvisa” (com apresentação de Blota Jr.). Ao menor sinal da campainha da contagem de tempo ele socava o botão para responder primeiro, seguramente muitas vezes sem ter ainda pensado na resposta. Pois marcava seus pontos.  


Lundu, em ilustração antiga
O mundo dá voltas (e a música voltas lhe dá), e desses volteios surgiu o fado. Mourisco? Nunca!!! Cito meu ‘Dicionário de Termos e Expressões da Música’ (SP: Ed. 34): o maior responsável pelo surgimento do fado foi o lundu, música e dança nossa que zarpou à Europa e bem lá se assentou, tanto foi que retornou ao Brasil como “Lundu de Marruá”, do francês Lundum du mon Roi (‘do meu rei’), ‘chula’ na essência: “Ai, rum rum / vence fandangos e gigas / a chulice do lundun”, como bem citou Caldas Barbosa (1739-1800), tido como quem cavou na origem a lusa modinha (Tinhorão, José Ramos. ‘Peq. História da Música Popular’. SP: Círculo do Livro).


Sigismund Von Neukomm
A estreita relação do Brasil Colônia com a matriz portuguesa trouxe contribuições inestimáveis à arquitetura, à escultura e toda a música colonial (dita barroca, mas neoclássica, ora pois) das Minas Gerais, de São Paulo e outras cercanias.  Foi D. João VI, amante das artes, quem abriu os portais do Brasil para Sigismund Neukomm (1778-1858) - austríaco que estudou com Joseph Haydn, de altos coturnos -, que orientou Francisco Manuel da Silva, autor do Hino à Abdicação (1831), de 1889, renomeado Hino Nacional Brasileiro após controvérsias de Deodoro da Fonseca. O Hino é permeado do sabor italiano, como querem tantos, mas desvela a influência austríaca nas terminações femininas de frases, qual fosse um clássico vienense.

Azulejo esgrifatado: Marrocos
Pois tantas trocas luso-brasileiras foram além: daqui saiu a modinha brotada em Portugal! Houve uma reciprocidade cultural que o advento da República, talvez no afã de sepultar a memória lusitana de sua ex-colônia além-mar, passou um apagador no faceiro passado, um belo prejuízo! Tal qual foi com o fado, que, verdade sim, vestiu o lundu de melismas, arabescos (de árabe!) mouriscos, porém mantendo as características tonais e nunca o modelo mouro, totalmente construído em formato modal. (Na música tonal, há um centro, um acorde de atração e repouso, enquanto na modal há uma espécie de escala constante que não se ‘resolve’, apenas flutua entre um número restrito de sons. São coisas totalmente diferentes. Veja e ouça abaixo música mourisca da Andaluzia).

 
 

Amália Rodrigues, divina
Amália Rodrigues (1920-1999) foi a grande dama do fado, a que o gênero ao mundo, a par da nossa Carmen Miranda (curiosamente nascida em Portugal) levando a Holywood nosso samba e marchinhas. Falecida Amália há 15 anos, alguns aqui de cá em santa ignorância pensam que com ela foi ao sepulcro o fado, para o além. Nunca. Brotou um novo fado que não sufocou seu nascedouro, respeitando suas bem-amadas origens (cá no Brasil, seria o ‘fado de raiz”), tal como Tom Jobim não matou o samba nem Piazzolla calou o tango.

Salve o novo fado, pois que é boa música portuguesa, com certeza, ó pá!!!

(Veja e ouça abaixo o fado moderno de António Zambujo: Algo Estranho Acontece)