Mestre Mané |
No campinho da General Severiano, batíamos uma bolinha para
esperar a saída do treino dos jogadores, verdadeira ‘seleção brasileira’. Simples,
batiam papo ou bolinhas conosco, era a glória! E no passado teve “a alegria do
povo”, o maior driblador de todos os tempos, o botafoguense Garrincha. Um gênio
que, quando ia visitar sua cidadezinha natal (Pau Grande, interior do Rio),
batia bola no velho campo de várzea e depois tomava sua cerveja com os amigos
que nunca largou. Vi uma dezena de vezes o documentário “Garrincha, Alegria do
Povo”, de Joaquim Pedro de Andrade, uma declaração de amor ao herói maior, o ‘anjo
de pernas tortas’.
A "vitória de Pirro" do período Médici |
Assisti a quase todos os jogos do Brasil nas Copas desde
1970, ano do fabuloso tricampeonato brasileiro, troféu nas mãos do ditador Gen.
Garrastazu Médici, na esteira de seus ‘pra frente, Brasil’ e afins, cobertura para seus
atos insidiosos (‘a ferro e fogo, em carne viva’). Hoje não há mais simplicidade
e a humildade em nossos jogadores, apenas exibicionistas milionários, donos do
kit fama – corrente de ouro, carro importado
loira na cama. Ou quem se ache ‘sentado à direita de Deus Pai’, a
‘julgar os vivos e os mortos’, afogado na soberba e na obsessão de um reinado de
página virada.
Desenho a lápis de Howard Dubois (claro, eu não chegava aos pés disso) |
Meu tio Augusto Maciel era um excelente desenhista. Eu lia
seus livros de arte, observava os traços cirúrgicos que ele dominava, a ponta
de lápis fino a esboçar contornos e sombras. Minha mãe me deu papel, crayons,
carvão, e passei a retratar cavalos, meus modelos favoritos. Desculpem-me, mas já que disse ‘traços cirúrgicos’,
aproveito o corte para a medicina (mas retorno ao desenho mais adiante).
Também gostava dos livros de meu tio médico Marcelo Campos
Christo (aquele de química, H2S04, NaCl2 , mais pela
beleza plástica do que por qualquer sentido que fizessem). E tanto lhe enchi a
paciência que, aos 12 ou 13 anos, um dia ele me levou para assistir a uma
cirurgia. Fascinante: corpo e cabeça do paciente separados por um pano branco
na vertical, e eu, ‘auxiliar mirim’, de pé sobre um banco alto a pulsar uma
bolsa de borracha, auxiliar de respiração durante o procedimento, a admirar
de soslaio a enorme máquina coração-pulmão.
Separador cirúrgico |
Vem o bisturi elétrico, e um ruído agudo seguiu o fio de faca
quente na manteiga, as camadas de pele se abrindo. Introduziram o separador cirúrgico
para afastar as costelas para serragem, rumo ao coração e a caminho da válvula
mitral. Foi quando eu, meio tonto, regurgitei na máscara. Meu tio grita pelo
amor de Deus, carrega esse menino para fora, se ele cai nessa mesa eu vou
preso! Naquele dia desisti da medicina. Depois, alternando minha vida com a música, o vestibular me levou ao
desenho industrial. Gestalt, Bauhaus, Milão, e muitas dúvidas ainda. O curso de design tranquei
depois de um ano, e fiquei direto na música, na Fefierj, começo de logo caminho.
Volto à coisa do talento, retornando ao futebol: outro dia surgiu um talentosíssimo garoto, quase adolescente, uma grande
esperança que atende pelo nome de Neymar. De origem pobre, da Santos das praias, cais e
estivadores, desde cedo tornou-se a estrela que ilumina os passos de seus colegas em
campo. Brincalhão, mas sério em jogo, o garoto mestiço de olhos claros que lançou moda com seus mutantes cortes
de cabelo trouxe um jeito pessoal de jogar, tanto quanto as rígidas regras do chamado
‘futebol moderno’ permitem.
Acidente? |
Agora, posso comentar aqui o que não foi azar nem acidente. Revisitei
dezenas de fotos e filmagens, e vi a face do colombiano Zuñiga sob vários
ângulos, os olhos cravados na nuca do nosso menino como um abutre a abater sua
presa (perdoem-me a rude comparação). O golpe fraturou a 3ª vértebra de Neymar,
tirando-o da Copa. A saída de campo foi muito triste, não foi como antigamente,
maca e médicos de branco. Foi mórbida, aquela maca de retirar corpos soterrados
ou vítimas de chacinas, um cortejo de maus presságios. Mas passado o primeiro susto, Neymar está muito bem,
logo volta a jogar futebol como nunca. Rico? Muito, hoje não é mais o tempo do
Manga e do Garrincha, assim como não é o do Cauby e da Emilinha. Jogadores e cantores
tiveram seus salários e cachês catapultados ao longo dos anos. Dinheiro não fez
de Neymar maior ou melhor, seu salário é a paga do mercado por sua habilidade e pontaria com os pés.
Noah Bendix-Balgley, 29, novo spalla da Filarmônica de Berlim |
Em música (e retomo o assunto, agora para
finalizar), quando o maestro não demonstra segurança à frente de sua orquestra o
grupo se ‘desconcerta’ (com ‘c’ mesmo), mas o spalla, o violino solista, quando
exímio líder, usa seus movimentos para conduzir o grupo diante de um regente
inseguro - e até na ausência dele. A seleção brasileira ficou desfalcada de seu
spalla, e mostrou-se claudicante sob um técnico desorientado e nervoso, instigando nos atletas sua insegurança.
Nossa seleção, um céu de estrelas pinçadas pelo mundo, foi orquestra montada de
última hora, para alguns concertos e ‘até logo mais’. Ao contrário, a esquadra alemã
é montada com jogadores que formam um conjunto coeso de velhos companheiros. Assim também
acontece com a Filarmônica de Berlim, que não reúne todos os melhores solistas
do mundo, mas é seguramente o melhor conjunto porque seus músicos tocam impecavelmente
juntos. Nosso spalla saiu do palco e o maestro inocula incerteza em seus artistas,
que deverão sucumbir ante um time orgânico, compacto e preparado para vencer, tal
qual a Filarmônica de Berlim. (Texto
para o jornal O Progresso, concluído às 15h46, antes do jogo).
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