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sexta-feira, 11 de julho de 2014

NEYMAR E A FILARMÔNICA DE BERLIM

Toda criança um dia sonhou ser jogador de futebol. Eu também, mas desde o colégio percebi que não havia talento em meus pés, e ao desistir nasceu mais um torcedor do glorioso Botafogo. Por dois anos fui ao Maracanã com meu primo Paulinho nos dias de nosso time, campeão invicto de quatro taças (Guanabara e Carioca - o tempo me concede justas concessões à inexatidão da memória).

Mestre Mané
No campinho da General Severiano, batíamos uma bolinha para esperar a saída do treino dos jogadores, verdadeira ‘seleção brasileira’. Simples, batiam papo ou bolinhas conosco, era a glória! E no passado teve “a alegria do povo”, o maior driblador de todos os tempos, o botafoguense Garrincha. Um gênio que, quando ia visitar sua cidadezinha natal (Pau Grande, interior do Rio), batia bola no velho campo de várzea e depois tomava sua cerveja com os amigos que nunca largou. Vi uma dezena de vezes o documentário “Garrincha, Alegria do Povo”, de Joaquim Pedro de Andrade, uma declaração de amor ao herói maior, o ‘anjo de pernas tortas’.

A "vitória de Pirro" do período Médici
Assisti a quase todos os jogos do Brasil nas Copas desde 1970, ano do fabuloso tricampeonato brasileiro, troféu nas mãos do ditador Gen. Garrastazu Médici, na esteira de seus ‘pra frente, Brasil’ e afins, cobertura para seus atos insidiosos (‘a ferro e fogo, em carne viva’). Hoje não há mais simplicidade e a humildade em nossos jogadores, apenas exibicionistas milionários, donos do kit fama – corrente de ouro, carro importado  loira na cama. Ou quem se ache ‘sentado à direita de Deus Pai’, a ‘julgar os vivos e os mortos’, afogado na soberba e na obsessão de um reinado de página virada.

Desenho a lápis de Howard Dubois (claro, eu não chegava aos pés disso)
Meu tio Augusto Maciel era um excelente desenhista. Eu lia seus livros de arte, observava os traços cirúrgicos que ele dominava, a ponta de lápis fino a esboçar contornos e sombras. Minha mãe me deu papel, crayons, carvão, e passei a retratar cavalos, meus modelos favoritos. Desculpem-me, mas já que disse ‘traços cirúrgicos’, aproveito o corte para a medicina (mas retorno ao desenho mais adiante).

Também gostava dos livros de meu tio médico Marcelo Campos Christo (aquele de química, H2S04, NaCl2 , mais pela beleza plástica do que por qualquer sentido que fizessem). E tanto lhe enchi a paciência que, aos 12 ou 13 anos, um dia ele me levou para assistir a uma cirurgia. Fascinante: corpo e cabeça do paciente separados por um pano branco na vertical, e eu, ‘auxiliar mirim’, de pé sobre um banco alto a pulsar uma bolsa de borracha, auxiliar de respiração durante o procedimento, a admirar de soslaio a enorme máquina coração-pulmão.

Separador cirúrgico
Vem o bisturi elétrico, e um ruído agudo seguiu o fio de faca quente na manteiga, as camadas de pele se abrindo. Introduziram o separador cirúrgico para afastar as costelas para serragem, rumo ao coração e a caminho da válvula mitral. Foi quando eu, meio tonto, regurgitei na máscara. Meu tio grita pelo amor de Deus, carrega esse menino para fora, se ele cai nessa mesa eu vou preso! Naquele dia desisti da medicina. Depois, alternando minha vida com a música, o vestibular me levou ao desenho industrial. Gestalt, Bauhaus, Milão, e muitas dúvidas ainda. O curso de design tranquei depois de um ano, e fiquei direto na música, na Fefierj, começo de logo caminho.

Volto à coisa do talento, retornando ao futebol: outro dia surgiu um talentosíssimo garoto, quase adolescente, uma grande esperança que atende pelo nome de Neymar. De origem pobre, da Santos das praias, cais e estivadores, desde cedo tornou-se a estrela que ilumina os passos de seus colegas em campo. Brincalhão, mas sério em jogo, o garoto mestiço de olhos claros que lançou moda com seus mutantes cortes de cabelo trouxe um jeito pessoal de jogar, tanto quanto as rígidas regras do chamado ‘futebol moderno’ permitem.

 
  
 
Acidente?
Agora, posso comentar aqui o que não foi azar nem acidente. Revisitei dezenas de fotos e filmagens, e vi a face do colombiano Zuñiga sob vários ângulos, os olhos cravados na nuca do nosso menino como um abutre a abater sua presa (perdoem-me a rude comparação). O golpe fraturou a 3ª vértebra de Neymar, tirando-o da Copa. A saída de campo foi muito triste, não foi como antigamente, maca e médicos de branco. Foi mórbida, aquela maca de retirar corpos soterrados ou vítimas de chacinas, um cortejo de maus presságios. Mas passado o primeiro susto, Neymar está muito bem, logo volta a jogar futebol como nunca. Rico? Muito, hoje não é mais o tempo do Manga e do Garrincha, assim como não é o do Cauby e da Emilinha. Jogadores e cantores tiveram seus salários e cachês catapultados ao longo dos anos. Dinheiro não fez de Neymar maior ou melhor, seu salário é a paga do mercado por sua habilidade e pontaria com os pés.

Noah Bendix-Balgley, 29, novo spalla da Filarmônica de Berlim
Em música (e retomo o assunto, agora para finalizar), quando o maestro não demonstra segurança à frente de sua orquestra o grupo se ‘desconcerta’ (com ‘c’ mesmo), mas o spalla, o violino solista, quando exímio líder, usa seus movimentos para conduzir o grupo diante de um regente inseguro - e até na ausência dele. A seleção brasileira ficou desfalcada de seu spalla, e mostrou-se claudicante sob um técnico desorientado e nervoso, instigando nos atletas sua insegurança. Nossa seleção, um céu de estrelas pinçadas pelo mundo, foi orquestra montada de última hora, para alguns concertos e ‘até logo mais’. Ao contrário, a esquadra alemã é montada com jogadores que formam um conjunto coeso de velhos companheiros. Assim também acontece com a Filarmônica de Berlim, que não reúne todos os melhores solistas do mundo, mas é seguramente o melhor conjunto porque seus músicos tocam impecavelmente juntos. Nosso spalla saiu do palco e o maestro inocula incerteza em seus artistas, que deverão sucumbir ante um time orgânico, compacto e preparado para vencer, tal qual a Filarmônica de Berlim.  (Texto para o jornal O Progresso, concluído às 15h46, antes do jogo).

 

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