O bom e velho fado |
Dia desses que passou entrevistou-me
um periódico de Santos acerca do revival (‘renascimento’) do fado, do belo e
velho fado português. O mote da matéria foi a linda voz da portuguesa Cuca
Roseta, que lá se apresentou com sucesso imenso. Era a voz do ‘novo fado’, pois
que o tenho cá comigo, charmoso sotaque lusitano se revela no canto e na poesia.
Com ela, Carminho, Ana Moura, Raquel Tavares, a banda Deolinda e a bela voz de
Antonio Zambujo (destaque entre as novas masculinas), soma-se uma geração que reacende
nos corações lusitanos a chama da ‘terrinha’.
Carminho: a jovem beleza do velho fado |
Carminho, fadista de
lindíssima voz, é enamorada da tradição, aquilo que cá no Brasil chamaríamos
‘fado de raiz’, com seus melismas (espécies de arabescos melódicos virtuosísticos),
riqueza das rimas e a rememorança do velho xale e do leque que abana o rosto sofrido
das antigas fadistas. Zambujo, de voz suave e encorpada, dispensa os melismas (tais
ornamentos) e se apaixona pela simplicidade sem românticos volteios e vibratos,
oscilações que dão colorido à voz. (Veja e ouça abaixo Carminho, em “Meu Amor
Marinheiro).
Os Argonautas |
São caminhares diferentes para os mesmos
destinos - aliás, literalmente o fado, palavra que vem de ‘fatu’, do latim ‘destino’,
mesmo, ora pois. Eis quando dizemos ‘estamos fadados’ a alguma coisa, cremos
que nosso destino está selado, diante do inevitável. Essa amargura, tão
portuguesa, e tão lamentosa melancolia (mesmo se lhe canta em felicidade) faz difícil,
ao ouvi-la, dissociar contemplação, belo, amor e tristeza. É o “navegar é
preciso”, que Caetano pegou emprestado do poeta luso Fernando Pessoa, buscado no
verso em outro escrevinho d’antanho, citando o general romano Pompeo, juntado
aos seus versos de fado baiano:
“O barco! / meu coração
não aguenta / tanta tormenta, alegria / meu coração não contenta / o dia, o
marco, meu coração / o porto, não!... / Navegar é preciso, viver não é
preciso...” Tormenta e alegria se confundem, e o barco do início somente se
explica ao final: o porto, navegar. Nesses versos de “Os Argonautas”, Caetano lembra
o Argo, a embarcação cujos tripulantes saem para conquistar o velo de ouro,
preciosa lã doirada do carneiro alado Crisólogo, lá detrás na mitologia grega. A
busca da preciosidade, a lã de ouro, tem o sabor do destino, já consagrado pelo
grande poeta Camões (1524-1580), o das “armas e barões assinalados”, épico e
aventureiro das glórias lusitanas. (Veja e ouça Caetano cantando “Os Argonautas”,
ao vivo)
Maria Bethânia e Elizeth Cardoso em Esta Noite se Improvisa |
“Os Argonautas” coroa não
apenas a criatividade de um fado brasileiro, mas também a veia poética de uma das
maiores memórias da MPB de que tive notícia. Caê era imbatível em um programa
de auditório de TV, daqueles que não se fazem mais, “Esta Noite se Improvisa” (com apresentação de Blota Jr.).
Ao menor sinal da campainha da contagem de tempo ele socava o botão para
responder primeiro, seguramente muitas vezes sem ter ainda pensado na resposta.
Pois marcava seus pontos.
Lundu, em ilustração antiga |
O mundo dá voltas (e a música voltas lhe
dá), e desses volteios surgiu o fado. Mourisco? Nunca!!! Cito meu ‘Dicionário
de Termos e Expressões da Música’ (SP: Ed. 34): o maior responsável pelo
surgimento do fado foi o lundu, música e dança nossa que zarpou à Europa e bem
lá se assentou, tanto foi que retornou ao Brasil como “Lundu de Marruá”, do
francês Lundum du mon Roi (‘do meu rei’), ‘chula’ na essência: “Ai, rum rum /
vence fandangos e gigas / a chulice do lundun”, como bem citou Caldas Barbosa
(1739-1800), tido como quem cavou na origem a lusa modinha (Tinhorão, José
Ramos. ‘Peq. História da Música Popular’. SP: Círculo do Livro).
Sigismund Von Neukomm |
A estreita relação do Brasil Colônia com
a matriz portuguesa trouxe contribuições inestimáveis à arquitetura, à escultura
e toda a música colonial (dita barroca, mas neoclássica, ora pois) das Minas
Gerais, de São Paulo e outras cercanias.
Foi D. João VI, amante das artes, quem abriu os portais do Brasil para Sigismund
Neukomm (1778-1858) - austríaco que estudou com Joseph Haydn, de altos coturnos
-, que orientou Francisco Manuel da Silva, autor do Hino à Abdicação (1831), de
1889, renomeado Hino Nacional Brasileiro após controvérsias de Deodoro da
Fonseca. O Hino é permeado do sabor italiano, como querem tantos, mas desvela a
influência austríaca nas terminações femininas de frases, qual fosse um clássico
vienense.
Azulejo esgrifatado: Marrocos |
Pois tantas trocas luso-brasileiras foram
além: daqui saiu a modinha brotada em Portugal! Houve uma reciprocidade
cultural que o advento da República, talvez no afã de sepultar a memória lusitana
de sua ex-colônia além-mar, passou um apagador no faceiro passado, um belo
prejuízo! Tal qual foi com o fado, que, verdade sim, vestiu o lundu de melismas,
arabescos (de árabe!) mouriscos, porém mantendo as características tonais e
nunca o modelo mouro, totalmente construído em formato modal. (Na música tonal,
há um centro, um acorde de atração e repouso, enquanto na modal há uma espécie
de escala constante que não se ‘resolve’, apenas flutua entre um número
restrito de sons. São coisas totalmente diferentes. Veja e ouça abaixo música mourisca da Andaluzia).
Amália Rodrigues, divina |
Amália Rodrigues (1920-1999) foi a
grande dama do fado, a que o gênero ao mundo, a par da nossa Carmen Miranda
(curiosamente nascida em Portugal) levando a Holywood nosso samba e marchinhas.
Falecida Amália há 15 anos, alguns aqui de cá em santa ignorância pensam que com
ela foi ao sepulcro o fado, para o além. Nunca. Brotou um novo fado que não sufocou
seu nascedouro, respeitando suas bem-amadas origens (cá no Brasil, seria o ‘fado
de raiz”), tal como Tom Jobim não matou o samba nem Piazzolla calou o tango.
Salve o novo fado, pois
que é boa música portuguesa, com certeza, ó pá!!!
(Veja e ouça abaixo o
fado moderno de António Zambujo: Algo Estranho Acontece)
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