Onde
convivem tradições, culturas e religiões
Diáconas em Bristol |
Custa-me
entender como uma nação que vive sob uma monarquia - aos olhos externos conservadora
- possa avançar tanto dentro de seus próprios princípios e raízes. A Igreja
Anglicana diverge das demais cristãs (assim como as outras entre si), mas já se
distanciava do Vaticano antes da Reforma de Lutero. Com o tempo, a Igreja
deixou de prevalecer sobre o Estado. Modernamente, foi concedido às mulheres o
direito de exercer o sacerdócio em todas as suas prerrogativas canônicas. Este
ano, no simbólico 14 de julho – data da Tomada da Bastilha, marco da Revolução
Francesa -, elas adquiriram também o direito de serem ordenadas bispas. A
vitória, nessa segunda tentativa, se deu por esmagadora maioria. A repercussão
foi imensa, e os defensores da mudança acham que a inovação atrairá mais
mulheres para seus cargos e fieis para seus quadros. Claro, entre os opositores
há uma minoria em desacordo com essas inovações. Citam a Bíblia, mas os
liberais entendem que as Escrituras datam de milênios atrás, devendo, portanto,
serem compreendidas sob a ótica dos dias de hoje, argumentando que não há,
assim, desrespeito aos textos.
A
questão feminina tem outros focos muito interessantes. Ora, o aborto é legal no
Reino Unido há mais de 40 anos, enquanto outros países o empregam em parte e
ainda o discutem (EUA) ou o eliminam das discussões (não cabe aqui analisa-lo sob
o ponto de vista brasileiro, multifacetado como um caleidoscópio). No RU o
aborto, à exceção de quando à mulher ou ao feto há risco de morte de um ou
ambos, também é permitido por declarado impedimento de uma gestação ser levada
adiante por incapacidade de a mãe cuidar de um filho, e casos são analisados um
a um (reitero aqui minha advertência impessoal no início deste texto!). Há que
se ouvir assistente social, psicólogo e obter dois laudos diferentes de médicos
independentes. Obviamente, se por motivo de crença religiosa – já ficou claro
aqui que o Reino tolera todas as religiões, as quais respeita em seus
princípios particulares -, é facultada à gestante a decisão final, resguardados
os citados casos em que o risco é iminente, quando prevalece a decisão dos
médicos.
1965: os Beatles recebem da Rainha a Ordem do Império |
Nessa
Inglaterra tida conservadora nasceram quatro rapazes em uma cidade portuária da
grande Londres, Liverpool (coisa de uns 25 minutos de trem). Chamavam-se John,
Paul, George e Ringo Starr, e fizeram uma revolução de costumes, sofisticaram o
rock’n’roll americano e mudaram a música do mundo; lançaram moda e se tornaram
heróis do Reino Unido, recebendo uma das mais altas condecorações das mãos da
Rainha (OBE, Ordem do Império Britânico). Houve algum reboliço (mas nenhum
problema) quando eles declararam que antes da cerimônia fumaram maconha em um dos
banheiros palacianos. Mas tratava-se dos Beatles, grupo que o lendário maestro
Leonard Bernstein afirmou ser a maior conquista da música popular mundial do
século 20, e uma revolução na música vocal.
Londres nos tempos das minissaias |
Naqueles
anos 1960, uma estilista inglesa chamada Mary Quant, a bordo dessa pacífica
revolução de costumes, inventou uma peça chamada minissaia, que deu à modelo
Twiggy o status de uma das maiores estrelas de sua década (de tão magra, em São
Paulo a chamariam ‘pau de virar tripa’, para quem sabe como se faz uma
linguiça). As garotas usavam a minissaia em três tamanhos: bem curtas,
curtíssimas ou extremamente curtas. Pois na Londres de hoje ainda as vemos nas
ruas, ônibus, metrôs, minissaias e microvestidos, shortinhos às vezes
sumaríssimos, elegantíssimos, cada uma a seu modo. (Curioso: eu, vindo de um
país ‘moderno’ e ‘avançado’ – afinal, o
Brasil é uma república plena de balneários, praias e mulheres lindas -,
perguntei a alguns jovens do hotel se aquelas roupinhas não causavam algum
mal-estar, gracejos ou revelavam olhos arregalados de estupradores em
potencial).
Segundo
pesquisa infeliz feita pelo Ipea entre homens no Brasil, para 58,5%, depois
corrigidos para uns ainda ridículos 24%, roupinhas assim incitariam nos machões o desejo de
estuprar quem as veste. A turma inglesa afirmou que nunca, nunca havia visto
nada assim. Olhar, apreciar a beleza, sim, mas instinto animalesco é outra coisa. Lembro-me agora de um livro de contos do Fernando Sabino (meu exemplar
traz um autógrafo carinhoso do “tio”), chamado “A Inglesa Deslumbrada”. Nele,
Sabino conta que durante um voo sentou-se ao lado de uma inglesinha, puxou
assunto e logo sua companheira de viagem não resistiu à curiosidade: delicadamente,
perguntou-lhe se era verdade que no Brasil pessoas andavam sem roupas (com
certeza, deve ter visto fotos de indígenas brasileiros). Sabino respondeu que
sim, os índios por tradição e os demais por causa do enorme calor, o que fez a moça
esbugalhar os olhos, assustada.
Saias, minissaias e shorts |
Foi um
pouco assim que eu reagi ao pensamento do grupo londrino: cada um se veste como
quer, e o costume individual, de roupas e manias a preferências afetivas, é
assunto particular que não diz respeito aos demais cidadãos. Depois dessa, senti-me
um “brasileiro deslumbrado” diante daquela maneira livre de ver os outros, e puxei outro
assunto para não prosseguir. Quanto à tal ridícula pesquisa do Ipea, fiz bem em não comentar: evitei
passar a vergonha de ser visto como uma caricatura de latino vulgar vindo de um
país machista e reacionário. (Continua no próximo artigo).
Garotas em shorts no metrô: uniforme de verão |
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