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sexta-feira, 22 de agosto de 2014

FAUSTO DE SANCTIS, A MÚSICA E O STF



Desembargador Fausto Martin De Sanctis
Fausto Martin De Sanctis é um paulistano de 50 anos formado em direito que cedo ingressou na carreira de magistrado e se notabilizou pelo caráter, inteligência, propósitos, inovação, obstinação e perspicácia, tudo isso aliado à sensibilidade musical e social, conforme contarei adiante.

 
Doutor em Direito Penal pela USP, entre outros títulos, especializou-se em uma das áreas mais carentes da justiça brasileira: desmantelar o arcabouço de ilegalidades perpetradas contra os cofres públicos e a lavagem de dinheiro, manobra de 10 entre 10 crimes de colarinho branco, aqueles praticados por senhores de terno - ou vestidos elegantes de grife, tanto faz. Como juiz, ordenou a prisão de um notório campeão do tráfico, um grande especulador financeiro e um conhecido banqueiro - sem falar em um ex-chefe de executivo, sem que seja necessário citar nomes.


Gráfico: resumaoconcursos.com.br
Defende publicamente a revisão do processo penal brasileiro que permite que processos contra indiciados importantes sejam arrastados para muito além dos limites impostos a qualquer cidadão indiciado por crime. Como nós, eleitores, ele também entende que o excesso de recursos estende injustificadamente qualquer julgamento. Sabemos que hábeis e caríssimos advogados trabalham com o sistema e acabam por alongar ou exterminar prematuramente os processos. Imunidade rimaria com impunidade na poesia, mas na sua essência são prosa e verso do pior estilo 'chicano' de defender cidadãos privilegiados. 
TRF SP: foto: aprovaconcursos.com.br
Fausto ingressou na carreira de magistrado aos 25 anos de idade, em 1990, e tornou-se desembargador do Tribunal Regional Federal da 3ª Região aos 46 anos, após longa missão dedicada à magistratura, exercida na sua plenitude, jamais se esquecendo do caráter público e neutro da função judicial, em área delicada, que envolve pessoas de ‘altos coturnos’.

Excerto da sentença determinando a transferência dos recursos
Por uma feliz coincidência, um dia pude conhecer o Dr. Fausto De Sanctis em uma recepção em São Paulo, e ele, amante da música e pianista amador, propôs incluir alunos carentes do Conservatório de Tatuí entre os beneficiados por uma sentença que também colaborava com projetos que tratam de crianças deficientes, vítimas de paralisia cerebral e inclusão social. A verba malversada pelos réus foi destinada também à compra de instrumentos musicais. (Fausto omitiu a origem do confisco e quem era o condenado, pois outra de suas virtudes é a discrição: apenas o final da decisão com os termos da doação me chegaram às mãos). Feitas as cotações em fábricas e importadoras, nossa equipe encontrou bons descontos e a compra foi destinada a 11 alunos selecionados por professores: instrumentos como oboé e fagote, trompa, trombone, contrabaixo e violoncelo, entre outros.

 
Fausto De Sanctis apresenta os alunos agraciados
(Foto: Kazu Watanabe)
Rigoroso, comme il faut, Fausto criou um termo de ajuste nosso com a 6ª Vara Federal: os alunos deveriam comprovar carência e boa performance, além de concordar que a posse dos instrumentos era provisória e que, em caso de reprovação, eliminação ou abandono do Conservatório, teriam de devolvê-los aos cuidados da escola, para serem repassados a novos pretendentes. Ao se formarem, abre-se o sinal verde para os termos de doação dos alunos serem  sacramentados.


foto: analisedeconjuntura.blogspot.com
Uma vez recebidos aqui todos os instrumentos, Fausto veio conhecer o Conservatório na cerimônia de entrega, no palco do Teatro Procópio Ferreira. Sereno, avesso a estrelismos, participou até timidamente de fotos com aqueles que, emocionados, nunca antes poderiam estudar em instrumentos de alta qualidade, de valor sempre muito alto. (Cabe ressaltar que o magistrado veio dirigindo seu carro particular, sem a segurança que imaginávamos natural para um prócere da justiça exercida em terreno mais do que arenoso: lidar com condenados graúdos é campo de areia movediça pura).

Rafael Frazzato, um dos agraciados, concluindo o curso da UNESP
(Fotografia: Mayara Piovezan e Giovana Nunes)
Foi essa a única visita de Fausto ao Conservatório, e deixou aqui as felizes lembranças de sua passagem. Vários dos alunos agraciados estão avançando em suas carreiras, e em alguns casos até já ajudam suas famílias, sem compreender bem que a reversão dos valores apreendidos que possibilitou adquirir os instrumentos deveu-se a uma sentença criminal, graças à sensibilidade de um magistrado moderno. Um dia, esses jovens vão saber compreender plenamente e dar valor ainda maior à decisão que os beneficiou.

Mesa-redonda: 14 de agosto de 2011. Foto: Kazu Watanabe
Uma mesa-redonda acontecida durante a visita de Fausto ao Conservatório atraiu olhos atentos do público presente: “O Magistrado e a Comunidade”, em parceria com o juiz da comarca de Tatuí, Dr. Marcelo Salmaso. Destaco o diálogo abaixo: “O objetivo principal esperado da Justiça Criminal é obter a condenação ou o reconhecimento da inocência do acusado, mas o foco não se restringe a isso. O homem visto enquanto ser social não pode ser esquecido". Todos nós devemos valorizar a geração futura, mantendo um compromisso com o passado e o futuro”, afirmou o desembargador De Sanctis. “Hoje vivemos um mundo novo, com problemas novos e precisamos de soluções novas, pois as antigas não são mais suficientes”, completou Salmaso. (Dos arquivos do Conservatório de Tatuí, 2011).

STF (foto pt.wikipedia)
Há alguns dias, a imprensa noticiou que o Desembargador Federal Fausto estava em uma lista tríplice da AJUFE – Associação de Juízes Federais – a ser oferecida à Presidente da República para indicação ao cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal, na vaga de Joaquim Barbosa, recém-aposentado. Foi uma grata surpresa, assim como para qualquer um que conhece a trajetória do magistrado. Já é um reconhecimento, mas merece ser celebrado com a aprovação e a devida e esperada posse no cargo.

sexta-feira, 15 de agosto de 2014

NA INGLATERRA, TAL QUAL OS INGLESES (final)

O "Commonwealth" (em verde)
PARTE V – MONARQUIA, GOVERNO, CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA


Uma monarquia parlamentarista democrática em nação de tradições milenares cujos costumes progressistas convivem com a Igreja oficial do Estado? Há uma história: a Inglaterra agregou o Principado de Gales em 1536, e em 1707 o Reino da Escócia. Inclui também a Irlanda do Norte, perto de 100 ilhas e países em que Elizabeth II (coroada em 1953) é rainha regente (o Commonwealth), como o Canadá, o Paquistão, o Ceilão, a Austrália, a Índia, a Nova Zelândia e a África do Sul, entre outros.


A suntuosa House of Lords
O legislativo é constituído de duas casas: a dos Lordes e a dos Comuns, algo como nossos Senado e Câmara dos Deputados.  A dos Lordes tem 774 assentos, divididos principalmente entre os partidos Conservador, Trabalhista e Liberal-Democrata. Até 2009, quando foi criada a Suprema Corte, era a Câmara dos Lordes que tomava as decisões judiciais de última instância. A Câmara dos Comuns é a segunda casa, possui 650 assentos e, como a dos Lordes, também se reúne no Palácio de Westminster. Os congressistas recebem cerca de R$ 22 mil mensais (salário de um médico do sistema público) sem demais mordomias.

Baroness Frances D'Souza, Lord Speaker
O uso de automóvel oficial pela Lord Speaker (cargo mais alto), a Baroness D’Souza, é registrado e publicado periodicamente, discriminando o auto, destino de cada viagem e o gasto estimado. Presentes cujo valor excedem R$ 550,00 devem ser recusados ou a autoridade é obrigada a devolver a diferença aos cofres públicos. São 17 os ministérios no Reino Unido, contra 39 no Brasil, incluindo Secretarias com status oficial de ministérios. No Reino Unido, há 5.665 servidores públicos federais para uma população de 64 milhões de habitantes, o que perfaz um funcionário para cada 11.300 pessoas. No Brasil, são mais de 2 milhões de funcionários para 201 milhões de pessoas, ou seja, um servidor para cada 100,5 cidadãos, perto de dez vezes mais do que no RU.

O poder executivo é exercido pelo primeiro-ministro. A famosa “Dama de Ferro”, Margareth Thatcher, governou por 21 anos, até 1990, quando renunciou por problemas de saúde e após tentar lançar um imposto adicional.
 

O premiê Tony Blair e sua guitarra Stratocaster
Também marcou época o trabalhista Tony Blair, guitarrista de rock amador, famoso defensor da chamada “terceira via” seu conceito de um novo socialismo, que intitulava “novo trabalhismo”. A “Terceira Via”, foi gestada na Austrália e encampada por Blair, e consiste em uma conjunção de socialismo democrático com o livre-mercado, tendo amealhado entusiastas como Fernando Henrique Cardoso e Bill Clinton.

O premiê David Cameron saindo de sua residência
O atual premiê David Cameron, do Partido Conservador, conta com a simpatia da monarca, e também tem seu estilo: recusa-se a residir com sua esposa em aposentos palacianos, preferindo a townhouse londrina típica, deixando arrepiados os cabelos dos responsáveis por sua segurança, cujo custo de R$ 33 mil mensais é alvo de protestos. Mas envolve gastos com serviço de inteligência, policiais, atiradores de elite e tudo o que deve proteger a residência pessoal de um chefe de executivo. Apesar de filiado ao Partido Conservador, Cameron, o mais jovem premiê a tomar posse na história, aos 46 anos, foi o responsável por atos de perfil às vezes curiosamente socializante e progressista: uma redistribuição proporcional no sistema de moradias populares; na educação, mudanças na gestão escolar e financiamento do ensino superior; na saúde, a injeção de quase R$ 300 bilhões e mudanças na gestão do sistema.

Celebração da vitória inglesa: o referendum das Ilhas Falkland
Tudo isso sem falar no referendo sobre a soberania das Ilhas Falkland (reivindicada pela Argentina), consagrando ali o domínio britânico com mais de 90% dos votos, e o recente apoio ao referendo pela independência na Escócia, em setembro 2014. Antes ainda, o 'conservador' legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Página do texto constitucional principal
A Constituição do RU trata da relação entre indivíduo e Estado e os poderes executivo, legislativo e judiciário. Diferentemente da maioria dos países, ela não consiste em um único diploma legal: engloba documentos escritos, jurisprudências, tratados, doutrinas e tradições verbais que vêm de longa data. Aí reside o mistério: o valor da palavra no direito anglo-saxônico, e mais ainda no de bandeira inglesa, como documento respeitado de suma importância. O Legislativo cria poucas leis e uma emenda constitucional é tarefa tão difícil quanto um dos mitológicos 12 trabalhos de Hércules. (Enquanto isso, no Brasil, há dezenas e dezenas de Propostas de Emendas Constitucionais na fila e 80 Emendas já aprovadas pelo Congresso – muitas das quais não podem ser aplicadas porque não foram regulamentadas por lei).

Dia de protesto na Piccadilly Circus (1968)
Em 1968, no Brasil, o AI-5 caía como uma bomba sobre os direitos básicos dos cidadãos, houve muitas prisões, mortes e desaparecimentos, e a revolta recrudesceu com a luta armada. Na França, Dani, o Vermelho (Daniel Cohn-Bendit, autor de “Nós que Amávamos tanto a Revolução”), pregava a tomada do poder, e todo o resto do mundo ocidental clamava por mudanças. Nos EUA, a revolução dos costumes transformou o mundo com Woodstock, sob o hoje surrado “Paz e Amor”, e os protestos contra  a Guerra do Vietnã foram o mote maior dos protestos. Já na Inglaterra, fora alguns conflitos entre jovens e policiais, qualquer um podia subir em um caixote ou armar um palanque em Piccadilly Circus ou um parque movimentado para falar mal da Rainha, criticar a monarquia, propor a república e o que mais quisesse.

Deixo inconclusa esta série de artigos, por não ter eu mesmo chegado a um ponto formal de pensamento. E até mesmo porque não é o sistema de governo, o nome da ideologia e muito menos as cores da bandeira levantada e os 'gritos de guerra'; não são sequer a velha república pensada por Platão (IV a.C.) ou a greco-romana símbolos por si de progresso, como chegou de fato a acontecer nas revoluções francesa e americana. Ela também foi o sistema sobre o qual se levantaram Stalin e Hitler, entre inúmeros exemplos em que distorções no regime republicano terminaram trucidando a democracia. Houve e há monarquias absolutas truculentas e cruéis, como a própria Inglaterra de um passado mais distante, assim como há diversos exemplos além do Reino Unido, como a Bélgica, a Noruega, os Países Baixos e outros, respirando democracia plena, alto padrão de vida, medicina socializada  e distribuição de renda invejável. Difícil mesmo é vislumbrar daqui, ao longe, uma fresta de luz num átimo que seja de uma concepção moderna e pragmática que proponha mudanças realmente transformadoras e definitivas - a 'revolução dentro da paz', como pregava um religioso brasileiro do passado -, que realmente aponte um o futuro melhor para nosso país. Mas antes disso é fundamental destruir a enorme rede de tubulações e ralos de dinheiro público que são parte da cultura política da nação. Se isso não for feito com coragem, de nada adiantará esforço algum.

sábado, 9 de agosto de 2014

NA INGLATERRA, TAL QUAL OS INGLESES - Parte IV


Transporte, Renda e Qualidade de Vida



O preço da gasolina no Reino Unido é exorbitante: por volta de R$ 5,20, quase o dobro do que é praticado no Brasil. Já o diesel custa mais de R$ 5,50, mas com ele um carro econômico faz 25 quilômetros por litro. Há um efetivo controle da poluição e, paralelamente, estímulos sem precedentes para aquisição de autos com reduzidíssima emissão ruídos e poluentes: isenção do imposto equivalente ao nosso IPVA, desconto para pedágio eletrônico na região central de Londres e estacionamentos. Estimulam essa renovação da frota, paralelamente, um crédito pessoal de 3,9 a 4% ao ano (isso mesmo, ao ano) e juros de 1% ao mês nos cartões de crédito – taxa que lá é considerada escorchante. E anda-se muito a pé ou no enorme complexo de metrô, ônibus e trens disponível na capital.

A enorme malha metroferroviária de Londres
São 417 Km (igual à distância entre Guarulhos e Rio de Janeiro de carro) de linhas de metrô distribuídas entre 270 estações, a rede mais extensa do mundo. A malha metroviária de São Paulo tem 75,5 Km e 73 estações. Há interligações com as linhas de trens e com o sistema de ônibus, como os chamados ‘duplo decks’, com um andar superior para passageiros.

O 'double-decker'
São veículos bastante agradáveis e atrativos aos turistas, que podem ver a movimentação nas lojas e ruas por uma perspectiva de cima. Não há, em geral, qualquer sistema de acessibilidade para deficientes e carrinhos de bebês, já que os ônibus param nos pontos a uma altura ligeiramente acima do meio-fio: levantar um pouco as rodas dianteiras ou traseiras de cadeiras e carrinhos é suficiente. Colabora especialmente um asfalto quase sempre absolutamente liso e sem desníveis. Com tudo isso, um sistema chamado ‘oister’ faculta ao usuário usar um cartão que permite o uso ilimitado do transporte integrado, por prazos variáveis.

Zona de baixa emissão de poluentes: descontos e isenções
Tudo o que se faculta ao cidadão, em especial esses descontos de impostos nos automóveis, pedágios, estacionamentos, e especialmente a impressionante rede pública de saúde é, claro, custeado pelo imposto de renda. Não há mágica nem proselitismo político: desde a implantação do Serviço Nacional de Saúde, em 1948, a página de abertura do ato que criou o projeto diz claramente: “não é caridade, tudo é pago com os impostos de todos”.

Investimentos nas áreas sociais: 67% do total
O cidadão tem sua renda taxada por faixas, sendo a máxima de 45%, para quem recebe acima de R$ 50 mil mensais, os mais altos salários. Há ainda bonificações por faixa etária e outros, e o sistema de saúde gratuito e previdência são mantidos exclusivamente pelos impostos, e não correm por conta de uma entidade própria e uma máquina monumental à parte, como é o caso do INSS brasileiro, dono de uma população enorme de servidores. O cidadão que no Brasil ganha de R$ 3.743, 19 ou acima disso mensais é taxado em 27,5%, mais o desconto do INSS de 11%, o que perfaz um total de 38,5%, perto dos descontos dos maiores salários da Inglaterra, valores acima de R$ 50 mil. Existe uma taxação básica de 10% até o salário de R$ 11.500,00 mensais e daí em valores crescentes. 

Há flexibilidade na contratação de trabalhadores, como acordos temporários de duração variável com remuneração horária geralmente mais alta do que a dos contratos fixos. O salário mínimo é de R$ 25,50 por hora, o que proporciona ao trabalhador perto de R$ 5 mil ao mês. Por R$ 1.200,00 mensais pode-se alugar um apartamento razoável de um ou dois dormitórios em bairros tranquilos. Uma refeição simples não é cara, e o custo de roupas e objetos de uso é razoavelmente baixo para o padrão salarial.

Caixas eletrônicos públicos
Pensando já em introduzir o assunto do próximo e último artigo desta série, que versará sobre Monarquia, Constituição e todo o pensamento britânico, penso em encerrar com o valor da palavra, que é presumida verdadeira assim como a presunção de inocência e honestidade existem de fato (e não apenas formalmente, como no Brasil - perdoe-me o leitor pela ironia, aquelas coisas ‘pra inglês ver’). Há caixas eletrônicos para saques de dinheiro nas esquinas, nas estações, nos hotéis e em lojas que podem ser usados a qualquer hora. Em drogarias ou supermercados é comum ver uma placa sobre um caixa especial informando que, se você não tem dúvidas e sua compra está escolhida, basta passar os produtos no ‘scanner’, o cartão de crédito ou débito no leitor, ensacar suas compras e ir embora.

Eu, ao fazer o ‘check-out’ no hotel, perguntei se estava tudo certo, e a atendente disse “sim, boa viagem”. Curioso, quis saber se o quarto estava em ordem, pensando nas usuais vistorias dos hotéis brasileiros feitas nas toalhas, fronhas e frigobar enquanto você paga a conta da estadia. A inglesinha pareceu surpresa e me perguntou se havia alguma coisa errada no quarto, sem entender minha preocupação, e ante minha negativa despediu-se e desejou-me novamente boa viagem.

A tradição dos EUA vem da inglesa: para obter meu visto permanente, fui ao Serviço de Imigração em Washington. Ante uma agente da Polícia Federal, levantei a mão sobre uma bíblia, em juramento, e respondi a uma série de perguntas, advertido de que minha palavra era expressão da verdade, e que falsas informações são crime. Como na Inglaterra, a palavra, antes de tudo ela, é a verdade. Sem as firmas reconhecidas e carimbos que fazem nossa nação ser conhecida como o país das ‘red tapes’ (‘fitinhas vermelhas’), toda vez que no exterior requeremos documentos para aqui serem registrados. Talvez seja este último parágrafo uma boa introdução para a próxima e última parte desta série.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

NA INGLATERRA, TAL QUAL OS INGLESES - PARTE III

Parte III - O Sistema Nacional de Saúde

"Mas não é 'caridade'. Todos estão pagando por isso"
 
O NHS (National Health Service), Serviço Nacional de Saúde, é a versão Reino Unido do nosso SUS. Trata-se do mais abrangente e antigo sistema de saúde custeado por fundos públicos existente. Consultas e a maioria dos atendimentos e procedimentos são prestados gratuitamente a todos os residentes no RU. Desde 1948 os residentes passaram a receber um número NHS, para acesso a atendimentos rotineiros e emergenciais. O Serviço é mantido com o dinheiro dos impostos, que não são baixos, aliás como os nossos, como veremos em um próximo artigo -, e é considerado muitíssimo bem aplicado. Hospitais e clínicas dispõem de um “Reclame para Mudar”, sistema que visa a aperfeiçoar o atendimento. Mais do que simples medicina, entende-se o NHS de forma bastante ampla, por abranger também o bem-estar, o meio ambiente e a saúde psicológica dos cidadãos.

Página do "Reclame para Mudar"
O “Reclame para Mudar” inclui “dez dicas importantes” para sua reclamação. Pergunta, em primeiro lugar, a identificação completa do reclamante, o assunto de sua queixa, quando e onde aconteceu o fato, nomes e cargos dos envolvidos e o porquê de sua insatisfação. Oferece um serviço de ajuda para os que têm dificuldade de ler, escrever ou se expressar. Vale conhecer por dentro: estive com minha filha Marta e meu netinho Thomas em duas clínicas: uma para acompanhamento pediátrico e outra para vacinação (o sistema usa uma rede de Internet específica que permite acompanhamento em qualquer unidade médica do país, sempre com horários marcados). Fomos a um prédio moderno onde você encontra desde mulheres chegando a pé vestidas de burca e outras carregando ou amamentando seus bebês até alguns chegados em seu Audi A-8 ou Mercedes-Benz.
Estacionamento da clínica do NHS

Banheiro: Clínica de Brent
Duvidei da hora agendada para a consulta, procedimento padrão no NHS. Pois adiantaram nosso horário em exatos sete minutos. Antes, uma atendente ofereceu água para quem aguardava. A médica era uma senhora que já havia ido à casa de minha filha para uma visita, e até se lembrou de familiares que lá estavam na ocasião. O Sistema entende o atendimento médico como uma cobertura de saúde completa, incluindo dentistas e acompanhamento de gestações.  O banheiro público (foto acima) é equivalente ao de um bom hotel brasileiro, limpíssimo e acessível pelo saguão onde há uma recepção agradável, leituras e um mobiliário moderno.
Uma "Midwife" do NHS 
Nada melhor do que a experiência própria de ter acompanhado, mesmo que de início à distância, mas quase que diariamente, a gravidez e o parto de minha filha. Em primeiro lugar, há uma concepção filosófica de saúde pública como um todo, que envolve a proteção imunológica, os aspectos psicológicos e o fazer a gestante sentir-se bem até após o parto. Assim que confirmada a gravidez, começa o acompanhamento residencial da gestante com as chamadas ‘obstetrician midwives’, enfermeiras especializadas em procedimentos de obstetrícia. São elas que acompanham a gestação, tomam a pressão sanguínea da futura mamãe, e avaliam sua dieta nos meses que antecedem o parto, conversando e aconselhando.

Tal qual hoje acontece em diversos países da Europa, estimula-se o parto doméstico – claro, quando há condições para tal por parte da gestante e a depender das condições assépticas possíveis na residência da parturiente. As gestantes fazem visitas ‘didáticas’ em turmas ao hospital, onde as salas de parto são chamadas “teatros”, cenários limpos e muito bem aparelhados. Há cursos especializados que visam a dar às gestantes maior segurança e naturalidade no processo que vai culminar com o momento mais importante de suas vidas, a concepção. E vital é o estímulo ao aleitamento materno como única fonte de alimentação saudável enquanto possível, desde que não haja restrições médicas.

Pediatra e prontuário online
O NHS dá preferência absoluta ao parto natural, tendo em vista a criança e sua mãe, e somente procede à cirurgia cesárea em último caso, quando em risco a gestante ou o bebê. O prazo final de maturidade para a gestação no NHS é de 41 semanas, ao fim do qual ainda se tenta a indução e outros estímulos. Não havendo sucesso, cirurgia. O acompanhamento do bebê, após o parto e durante a fase mais delicada da criança, pode ir até os cinco anos. Exames de rotina e vacinações são feitos, após um mês de idade, em qualquer clínica do país, via um sistema de informações online completo. Casos mais específicos devem ser remetidos para o médico pediatra preferencial da criança.

Passeio matutino no Regent Park
A proteção ao bebê, ressalvadas intempéries como chuvas frequentes, neve ou frio intenso, se dá nos primeiros contatos com a natureza: havendo tempo bom, os rápidos passeios começam já após semanas de vida da criança. Depois, a partir de um mês, os lindos parques são ambiente para um divertido trânsito de carrinhos de bebês.

Atendimento de acidentes, emergência e urgência
Oito por cento dos ingleses também usam convênios e seguros particulares, porém mesmo a grande maioria desses se utilizam da rede pública do NHS a maior parte do tempo: um sistema criado e concebido para todos, fundeado por impostos bem distribuídos e uma organização impecável. [Prometi-me não tecer comparações diretas com o Brasil, deixando-as para o leitor. Porém, no assunto saúde pública, não resisto a alguns números: o Reino Unido gasta R$ 436 bi anuais em saúde pública, e o Brasil 25% disso. Com 64 milhões de habitantes em todo RU, a despesa anual per capita é de R$ 27.250,00. Já aqui, com 201 milhões de habitantes, gasta-se R$ 542,00 anuais per capita, menos de 2% do que o NHS].