Mário de Andrade |
Mas de onde esse amor tão intenso pelo
piano, mais distante de nossa cultura popular do que o violão? O instrumento veio
da Europa, e deve sua origem a Bartolomeo Cristofori (por volta de 1709), com seu
fortepiano, maravilha de maquinário, construção e sonoridade absolutamente
diferentes de seu antecessor, o cravo. No Brasil colônia chegaram os cravos, instrumento
de cordas ‘pinçadas’ e não percutidas por martelos, como no piano, de sonoridade
para lá de agradável, coisa como o dedilhado de uma harpa ou um violão.
Na Minas Gerais colonial, era de
bom-tom as mocinhas exibirem as prendas que fariam delas boas casadoiras aos olhos dos pretendentes às suas cobiçadas mãos
(‘per questa bella mano’, diria um Mozart apaixonado naquela linda ária), além
do ‘dote’ financeiro do patriarca, claro. Isso tudo seduzia o candidato a noivo
a se apresentar ao pai da jovem - de olho, claro, nas melhores posses do
casamento. Esperava-se que as raparigotas soubessem fazer doces, quitutes,
bolos, iguarias; bordar, costurar, serzir; falar bem, vestir-se com discrição
e, por fim mas não por último, tocar cravo, fortepiano (mais tarde, o piano
moderno).
Esses instrumentos chegavam ao Cais
do Porto do Rio de Janeiro em navios, e parte deles iria para Minas em carroças
ou mesmo lombo de burro (até os pianos de armário Pleyel chegaram já em 1911 ao
Teatro Municipal, em vias de ser inaugurado, nas costas de magrelos animais,
como ilustram fotos da época). Ah, no passado cantar também era aquele ‘plus’
para a moça agradar ao ‘senhor seu pai’, como se dizia, e encantar os
pretendentes, que poderiam se deleitar com a melhor música europeia em época em
que não havia em casa qualquer tipo de geringonça reprodutora de gravações.
Steinway Grand Concert D |
Levando o instrumento para seus
novos lares, as filhas das esposas pianistas também eram delicadamente forçadas
a estudarem música, parte de uma boa formação. Após gerações, a febre foi se
consolidando, e vieram os pianos Petrof, Bösendorfer, Bechstein, Grotrian
Steinweg e, finalmente, os Steinway, preferidos por 10 entre 10 estrelas (há
quem diga: “não toco piano, toco Steinway”!). Os últimos estão entre os
melhores, e passaram a frequentar recitais e os conservatórios que iriam surgir
na primeira metade do século (mas raros eram os Steinway, dos quais temos no
Conservatório de Tatuí dois exemplares de concerto, de cauda inteira). E acaso foi
aplacada essa febre da pianolatria? Arrefeceu o ‘mal virtuoso’ que após tanto
tempo contaminou milhares de mocinhas, e depois também rapazes? Já estamos no
século 21, em plena era de teclados eletrônicos, samplers, sintetizadores, pianos
elétricos e eletrônicos, mas o velho e bom teclado de martelos permanece mais
vivo do que nunca.
Boa vitrine foi o VII Encontro
Internacional de Pianistas realizado no Conservatório de Tatuí de 8 a 11 de
outubro deste ano, em tempo integral e ritmo muito intenso. Mais de 300
inscritos vieram de toda parte em busca de troca de ideias musicais e
informações, bons recitais, concerto com orquestra e mesa-redonda que fizeram
desse evento um marco importante também para a constatação de que a
‘pianolatria’ se reproduz, mesmo que, de anos para cá, haja crescido
paralelamente o interesse por tantos outros instrumentos, do violino ao
contrabaixo, da flauta aos metais (trompete, trompa, trombone, tuba e seus
‘parentes’).
Beatrice Berthold |
Todos puderam assistir a um recital
da excelente Luciana Noda (Profª Drª da UFPB) pela manhã, Mauricy Martin (UNICAMP)
à tarde a simpaticíssima Beatrice Berthold (excelente pianista alemã da incensada
PUC do Chile) à noite, e, no dia seguinte, mais dois recitais e um concerto com
orquestra, tendo como solista Fábio Luz, que hoje faz sólida carreira
internacional a partir de sua residência na Itália. Some-se a este seleto grupo
a grande ‘dama do piano’ Eudóxia de Barros, Renato Figueiredo (Teatro Municipal
de SP), Antonio Vaz Leme Sergio Gallo (Univ. Georgia, EUA), Scheilla Glaser
(EMM-EMESP), André Rangel (da Unesp), o badalado Nahim Marum e diversos outros,
como George Boyd, afinador favorito das estrelas, e as excelentes ‘pratas da
casa’ Míriam Braga e Cristiane Blóes, coordenadora do evento. É piano para
ninguém colocar defeito.
E não há antídoto, já que a ‘pianolatria’
não é doença, e assim sendo não carece de cura. Sermos por ela inoculados faz-nos
muito bem e não causa mal algum, fora padecer de amor pela música de alguns
intérpretes. O piano foi o primeiro instrumento que levou o Brasil a ser reconhecido
mundo afora, tal o contingente de virtuoses aqui nascidos. Negar a importância
histórica maior do piano seria de uma burrice homérica. Quem dera tivéssemos
também uma violinolatria, uma cantolatria e afins, todas febres terçãs a contagiar
pelo simplesmente ouvir, coisa de emoção pura! Pois foi aqui, nesses longos
dias em Tatuí, que o piano mostrou a importância que tem em nossas vidas.
Parabéns por esse e pelos demais eventos. Além de preservar obras significativas por meio da sua difusão proprciona um dinamismo essencial entre público e artistas. Parabéns pela administração!
ResponderExcluirObrigado. Sabe que vindo de você é um prêmio! Já temos outro no ar, "pra não dizer que só fali de eleição"
ResponderExcluirhttp://blogdohenriqueautran.blogspot.com.br/