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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

FIGURAS MUSICAIS QUE CONHECI II – JOE MANERI

Joe Maneri, sem a peruca
Joseph Maneri (1927-2009) era uma figuraça e tanto. Baixinho, peruca meio cor de acaju, meio louco. Minto, inteiramente louco, mas tinha seu fã-clube, pela figura quase mítica que representava. Falava besteiras com seriedade, como chamar o compositor austríaco Schubert (1797-1828) de “Galochabird” (‘pássaro galocha’). Toda semana, prometia contar sobre o ‘chapéu de Wagner’, grande compositor de óperas alemão, promessa nunca cumprida que lembrava a peça de teatro de Samuel Becket, ‘Esperando Godot’ – Godot era ‘o’ personagem que nunca aparecia, deixando os demais à sua espera (em Becket, Godot seria o apelido de ‘Gotter’: Deus, em alemão). Voltando ao Joe Maneri, nada de chapéu de Wagner, ele sempre adiando o assunto. E não era isca de pescador para a prender a atenção dos alunos, sua figura carismática já bastava!

Leinsdorf à frente da Sinfônica de Boston: temperamento impossível. 
Sentia-se à vontade em todas as linguagens, de Bach a Stravinsky, ele mesmo um dos herdeiros de Alban Berg, da chamada ‘Segunda Escola de Viena’, com Schönberg e Webern, dos mais importantes compositores do século 20.  Maneri recebeu encomenda do grande Erich Leinsdorf para compor para a Boston Symphony Orchestra, uma das maiores do mundo, e a peça chegou a ser ensaiada, mas nunca executada, devido aos costumeiros severos atritos com a orquestra. Maneri temperava seu gosto bastante eclético com sua origem jazzística, gênero em que foi exímio clarinetista. Lembro-me de um improviso que a plateia aplaudiu de pé, emocionada, aos gritos e urros, um delírio. Cansado de se curvar para agradecer, Maneri prostrou-se de joelhos diante do público, como que se ofertasse em humildade sua arte aos que ouviram sua música com tamanha emoção.

Piano de 1/4 de tons, dois teclados
Foi com Joe Maneri que tive um contato mais sério com a técnica dodecafônica (um sistema que emprega doze sons – teclas brancas e pretas do piano – em séries de combinações matemáticas). Compus uma ou duas peças, apenas como necessidade acadêmica: afinal, acho difícil alguém produzir alguma coisa razoável com aquilo. E se os ‘doze sons’ foram uma curta experiência necessária ao meu estudo, logo Maneri ingressou-me em outro universo, dividindo os sons não apenas entre aqueles 12 das teclas pretas e brancas do teclado do piano: ele procurava de início dividir cada tom não em meios-tons (teclas brancas e pretas), mas sim em ¼, ou seja, cada teclado de piano, a se seguir esta teoria, teria não as 88 teclas-padrão, mas 176 (houve exemplares, ver foto acima). E não parou aí. Introduziu o 1/6 de tom, que forçaria um piano eventualmente preparado para essa técnica ter 528 teclas! Porém, maluquice das maluquices, chegou a 1/12 de tom, o que faria um virtual pianista usar 1.056 teclas, e do afinador de instrumento um sujeito maluco a passar dias inteiros em um único instrumento, caso ele existisse.


Monocórdio moderno, para microtons. 
Para essas aulas Maneri usava o monocórdio, que, como se pode deduzir do nome, possui apenas uma corda. Algumas marcações na madeira permitiam criar essas divisões menores, e ele tentava fazer com que cantores, flautistas e violinistas executassem algumas ‘peças’ (leia-se: poucas notas!) com essas migalhas de tons (chamadas microtons); mesmo ao ouvido mais treinado, divisões de 1/12 são praticamente imperceptíveis. Ele confessava que executar aquilo era impossível, mas o fato era que, segundo ele, essas partículas sonoras estavam dentro de todos nós (por isso, a crítica o tinha como ‘o gênio que desafinava’, mas Maneri não lhes dava a mínima). O monocórdio era o instrumento que o grego Pitágoras (770 a 495 a.C.) já empregava em suas aulas e estudos, há mais de 2.500 anos! (Em arte, toda vez que ‘avançamos’ longe demais, ainda mais temos que retomar o passado para uma revisão). Progresso em arte, dizia meu pai, não existe. Ela está acima do tempo, apenas se transforma. E volta.
Esperando Godot
O 'chapéu de Wagner' talvez fosse o ‘Godot’ do Joe Maneri, aquele que nunca vinha. Décadas após deixar Boston, recebi um documento sobre o compositor. Qual não foi minha surpresa, não era apenas eu que usava o nome dele em meu currículo: na lista dele, eu figurava entre seus discípulos - e não imagino o porquê da distinção. Encheu-me de orgulho e de boas lembranças daqueles tempos, tempos repletos de grandes artistas e suas músicas. Mas a memória nos trai, e sempre que revolvida, como a terra, aflora algo como uma semente de nosso próprio crescimento interior, que germina revivida.

Louis Krasner, gravação com a BBC: Berg, "À memória de um anjo"
2009 foi um ano especial para mim: voltei a Boston, escala de uma visita a mais de duas dezenas de instituições musicais, a convite do Departamento de Estado dos EUA. Mas vou me deter apenas sobre a parte que me levaria a reencontrar Joe Maneri. Após o primeiro dia de visitas em Boston, recebi no hotel um telefonema do violista Renato Bandel, dando conta que Aírton Pinto havia morrido. Fomos amigos na Osesp, onde Aírton fora spalla (solista dos violinos e líder da orquestra), e ambos, com trajetórias semelhantes, respeitadas as diferenças de idade: na New England, Aírton havia estudado com Louis Krasner (à minha época uma lenda, apesar de já bem velhinho), simplesmente o responsável pelo mesmo Alban Berg de Joe Maneri ter escrito seu único – e lindíssimo – concerto para violino e orquestra, intitulado ‘À memória de um anjo’ (para Manon Gropius, a filha de Alma Mahler e o grande Walter Gropius, da Bauhaus, falecida de polio aos 18).

Wagner e seu chapéu, 'nosso Godot'
Aírton também foi professor da NEC e músico da Sinfônica de Boston por muitos anos. Mas ao indagar sobre Joe Maneri, olhares entristecidos me contaram que se ele acabara de nos deixar. Talvez tenha ido em busca de seu ‘Godot’, que nunca lhe apareceu em vida, encontro que deve ter acontecido lá no céu, três meses antes daquele mesmo dia da triste notícia. Fiquei sem ver o mestre e com ele o mistério do chapéu de Wagner.

(Veja e ouça abaixo a interpretação exclusiva e louca de Joe Maneri, em excertos de concertos em sua homenagem em Cambridge, MA)


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