Olivier Toni!
Meu caro amigo leitor músico, atribulado
em seu trabalho ou estudo, não pense que vou aqui falar de semibreves, mínimas,
semínimas, colcheias, semicolcheias e afins. Mesmo que eu volta e meia adote um
tom didático em meus textos, devo ao leigo algumas pausas para descanso, para
que pequenos excessos não lhe atrapalhem a leitura. Assim como na ciência, na
música e na vida (ou na arte da guerra, diria Napoleão) é sempre importante dar
um passo atrás, que não significa retroceder, mas recapitular para avançar e
concluir.
Falo de figuras humanas, gente cujo caminho
cruzei vez por outra, por breve ou mais longamente no caminho da vida. São
pessoas que moldaram minha formação como profissional e pessoa; por enquanto, devo
concentrar-me nos que fizeram a história da música no Brasil, os que tive o
privilégio de conviver ou conhecer, às vezes mesmo sem ter estado em uma de
suas salas de aulas, de olho na ‘pedra’ (como se chamava lousa, antigamente). E mesmo
a certa distância, foram eles meus professores de vida.
Capa do CD, pintura de O. Toni em foto de Heloísa Bortz |
Florestan Fernandes |
Toni voltou ao seu caminho, que
também teve como preparador o grande mestre austríaco Martin Braunwieser, trazido
ao Brasil por Mário de Andrade. Mostrou-se coerente em sua obra e pensamento
político, cria que foi da Faculdade de Filosofia da USP, orientado por Gilles
Grangér, Otto Klineberg e o grande Florestan Fernandes.
Pesquisou a música brasileira, mas não
quis passar para a história como musicólogo. Lecionou, mas era mais polêmico do
que mero repaginador de surrados compêndios do passado. Discutia, questionava,
fazia germinar o espírito investigativo e questionador tão necessários à vida
na universidade – no caso, a USP, de cujo Departamento de Música foi fundador e
chefe.
Matéria recente de João Luiz Sampaio para O Estado |
É compositor, tem um técnica bastante pessoal, mas nunca aspirou a um busto de bronze na academia. É regente, trabalhou à frente de alguns dos melhores conjuntos orquestrais do país, mas não foi contaminado pela vaidade do estrelato. E foi um bandeirante musical: fundou a Orquestra Sinfônica Jovem Municipal de São Paulo (1968), até hoje mais viva do que nunca, a Escola Municipal de Música (1969), orquestras e festivais como os de Prados (MG), em que reunia poucos e bem selecionados alunos.
Willy Corrêa de Oliveira: o gênio do aluno |
Gilberto Mendes: vanguardista e revolucionário |
Em um de seus diversos cartões, que recebo e coleciono, a marca de sua personalidade (aliás, mais parecem declarações de amor paternal): “Teve o destino que afastar-nos, mas tenho você sempre presente...” Ele havia também se esquecido de outra vez em que nos 'apartamos', apenas ignorou-a com sabedoria. Refiro-me à primeira ocasião, quando rompemos por alguns anos por conta de certos vícios acadêmicos, coisa rotineira intramuros. Porém, mesmo sendo chefe, nunca me importunou, menos ainda perseguiu-me. Tenho obrigação que deixar esse registro. Da segunda vez que nos distanciamos, quando Natal de 2013 me enviou o cartão acima, ele se referia à distância física mesmo.
CCSP: entrada, na R. Vergueiro |
Grata surpresa foi em um certo dia no
Centro Cultural São Paulo, enquanto eu fazia a abertura das comemorações do 25º
aniversário da fundação da Escola Municipal de Música, e percebi o próprio fundador
sentado na plateia. Após minha fala, bem ao meu lado, estava o Toni, pedindo para
si o microfone. Em público, desculpou-se por ter se oposto a mim como diretor
da escola que ele fundou, fez o ‘mea culpa’ e passou a tecer-me rasgados
elogios – esse é e sempre foi o Toni: sabe tanto atacar sem papas na língua quanto
retroceder com a humildade que é exclusiva dos grandes homens. Aquela noite foi
a de um reatamento informal. Toni, quatro meses mais novo do que meu pai, ainda
é um amigo à distância, elogioso mas sempre desinteressado estimulador. Aqui retribuo
ao mestre, com carinho.
"Só isso e nada mais" |
Na capa do CD, algo abstrato. Apenas
na parte interna, uma discreta foto, em pleníssima forma e jovem aos seus 88
anos, mais lúcido do que nunca, desenhou com sua caligrafia peculiar: “Pra meu
caríssimo Henrique Dourado, exemplar músico e amigo, com o abraço do Olivier
Toni. 22/10/14”. Uma figura, como disse, de enorme importância na música
brasileira do século 20 e até hoje. Suas palavras do passado ainda ecoam em meus ouvidos –
e se ontem eu as achava 'caretas' ou quase sem sentido (coisa de jovem profesor), hoje as vejo como a lição de um
mestre que permanece na memória, sabedoria que levei uma década para assimilar. O CD, lançado recentemente pelo SESC, tem a abertura do incansável Danilo Miranda, ministro sem pasta da cultura desde sempre, e um texto saborosíssimo do Willy que, só pelas citações, para mim nem precisaria estar assinado: cada letra tem seu perfil estampado! A obra do Toni ali gravada é moderna, mas querendo ser eterna, como diria o Drummond, e mostra um apreço especial pela voz humana, com Caroline de Comi, e o talento do pupilo de sempre, o grande Claudio Cruz, na voz do violino. Acabamos de completar os 30 anos de nossa amizade! Um abraço para
você também e longa, longa vida, Toni!
muito bom artigo. Parabéns!!
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