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sexta-feira, 27 de março de 2015

DE COMO O PRIMO BASÍLIO PASSOU A GOSTAR DE MÚSICA CLÁSSICA







Primo Basílio é um daqueles sujeitos folgazões, sempre na moda, no passado conhecidos como playboys. Gostava de estar ‘na onda’, conhecia os barzinhos da Vila Madalena, bancava o filho de família aristocrata paulistana, apenas um disfarce para o burguesinho com um passado fútil do qual conserva hábitos como frequentar coquetéis sem convite, arrumar uma boquinha em recepções para sair em coluna social e ser assunto da gente fina paulistana.

Sobre música clássica, o primo desconversava. Gostava da pior pagodagem da TV nos fins de semana, programas de calouros, até esse suposto 'funk', qualquer coisa em alto volume. E dizia que curtia Elis Regina, para não passar por inculto (sua preferência era o que a mídia lhe enfiava na cachola). Sobre cinema, disse-me que adorava. Assistiu a quase todos os últimos vencedores do Oscar, os lançamentos de Hollywood e grandes sucessos. Também gosto de alguns, disse-lhe eu, e cutuquei: mas você gosta de 2001, uma Odisseia no Espaço, do Stanley Kubrik, primo? Adorei e veria de novo, disse ele. Pois vou armar uma arapuca, pensei comigo. Vamos então assistir ao filme, convidei, e Basílio disse lá em casa. Prometeu salgados, alguma bebida, uísque anda caro demais, deixou entrever.

Passo de valsa
No sábado, o grupo se juntou na casa de Basílio, com modestos tira-gostos (não deu tempo para fazer compras, desculpou-se ele) e cerveja que já trazia da cozinha nos copos, para não mostrar a garrafa. São copos gelados, disse para justificar. Ligou seu belo home theater, luxo de que ele não abria mão, enquanto todos se serviam, peguei o DVD e coloquei no aparelho. Mal começou o filme, Basílio exclamou: esse é um dos meus favoritos, sempre atual! Ao final, perguntado sobre a música, Basílio disse que adorava a trilha do filme, mas a única música que reconhecia era uma valsa cujo nome não sabia – era O Danúbio Azul, de Johann Strauss II, que ele dançou em festas de debutantes. E o resto da trilha, a do começo, você gosta? Impressionante, uma trilha de impacto. Agora você me deve uma, Basílio. Vamos a um concerto na Sala São Paulo semana que vem. (Assim, armei a arapuca).

OSESP (foto: pt.wikipedia.org)
Na Sala, após uma abertura que não despertou a menor emoção no primo, a Osesp mostrou um imponente Assim Falou Zaratustra, de Richard Strauss. Basílio quase se levantou da cadeira, e cochichou aos meus ouvidos “a música do 2001!”. Eu apenas sorri. Deleitou-se até o fim, aplaudiu de pé. Saímos para um drinque à nossa amizade e no papo, disse-lhe eu, sabe que ‘a música do 2001’, de 1968, do Stanley Kubrick, não é bem um trilha de filme, na verdade é uma obra-prima de Richard Strauss chamada Assim Falou Zaratustra. E é de 1896, bem mais de um século atrás! Pois adorei, disse Basílio. E eu convidei: por que então não vamos na terça, assistir a outro concerto na Sala? Tenho convites!


Orquestra e Coro Sinfônico do Conservatório de Tatuí
e Coral Vivace, com solistas, na Sala SP
Sala cheia, na terça estávamos lá. Era uma apresentação completa, com solistas, da 9ª de Beethoven com a Orquestra Sinfônica e Coro do Conservatório de Tatuí. Basílio parece que só se animou no último movimento, após o recitativo. Mas isso é daquele filme maluco, o Laranja Mecânica, disse, e eu, psiu! À noite, cumprindo o ritual, juntamos o grupo para assistir ao filme Laranja Mecânica, de 1971, também do Stanley Kubrick, e, no meio da loucura, psiquiatria, violência e crimes, Basílio logo sorriu ao identificar a música que ouvira na Sala no dia anterior: e Beethoven havia composto a obra em 1824, tanto tempo atrás! A música adorei, mas o filme é muito violento, disse Basílio. Eu propus assistirmos então a um desenho animado fenomenal para descontrair. Concordou, apesar de ter torcido o nariz. Coisa de criança, mas depois do ‘Laranja’, muito violento, até aceitaria, disse. (Abaixo, Beethoven, 9ª Sinfonia, Finale. Leonard Bernstein e Filarmônica de Viena. Para ver e ouvir). 


The Philadelphia Orchestra, em Fantasia
Outra sessão de cinema, outro sábado à tarde, e coloquei para rodar o fenomenal desenho animado Fantasia, de Walt Disney, de 1940! Montado quadro a quadro, 24 quadros por segundo, cada precioso movimento do desabrochar das flores em sintonia tão perfeita que nem Steven Spielberg ousaria imaginar, foi antes de ele nascer. Basílio delirou. Mas isso não é para crianças, disse, e respondi que sim, era para crianças de todas as idades. A Orquestra da Philadelphia soava deslumbrante sob a batuta de Stokowsky. À noite, novo encontro na Sala São Paulo. A Osesp brilhou com A Sagração da Primavera, de Stravinsky, e logo ao lindo solo de fagote inicial Basílio lembrou-se do filme e olhou-me de soslaio, sem precisar comentar é do filme, é do Fantasia, primo Henrique! E a orquestra soou como nunca, montada em dos cavalos de batalha mais duros do repertório, com destaque para o solo de fagote de Alexandre Silvério e a precisão da timpanista Elizabeth. E metais, madeiras, cordas, tudo!
Sala São Paulo (salasaopaulo.art.br
Terminado o concerto, despedimo-nos, e Basílio agradeceu-me pelo passeio no mundo clássico. Passamos muitos meses sem nos vermos e, um dia desses, parou junto ao meu carro sua velha Harley Davidson, resto dos tempos de bon-vivant, da gorda mesada. Disse-me que comprara uma assinatura da Osesp, havia virado frequentador. Deu adeus e saiu roncando sua máquina, deixando-me com os olhos cheios de felicidade. Pena. Queria ter dito a ele que as pessoas só não gostam daquilo que é bom quando não conhecem, elas gostam apenas do que re-conhecem.


Eça de Queiroz
[O Primo Basílio é um romance de 1878 do escritor português Eça de Queiroz, texto de verdadeira crítica à decadência burguesa da época. Basílio era um dândi, um transviado, diriam nos anos 1950. Daí, tomei do Primo Basílio de Eça o perfil de meu primo imaginário, com a devida licença do além.]

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