Era costume
entre os luteranos dos tempos de Johann Sebastian Bach que os enfermos se
despedissem da família, amigos e vida terrena no recesso de suas próprias
casas. Não foi diferente com ele em 1750, no segundo andar da Thomasschule, em sua
cama. Suas condições físicas já estavam comprometidas pela apoplexia,
ele sequer enxergava, apenas imaginava a estrada terminando logo à sua frente.
Confortavam-no orações, pequenos corais, um cravo ou clavicórdio, instrumentos
de sons suaves e celestiais. Não se tem certeza sobre se a obra que citarei foi
apenas uma revisão ou uma composição ditada pelo mestre a um de seus filhos ou
genro, nota por nota, linha por linha, ritmo por ritmo.
A letra é de pura devoção ao Pai, e a autoria é de Lutero. Leva o título
de Vor deinem Thron tret ich hiermit. (Ouça
essa maravilha no clipe abaixo deste parágrafo, gravado na Capela de Leipzig, onde Bach foi diretor musical. Sugiro deixar a música como fundo durante esta leitura). O texto pode ser livremente
traduzido como “Diante de vosso trono eu agora me apresento, ó Deus, e
humildemente vos suplico que não afaste vosso generoso rosto de mim, pobre
pecador".
Katharien Fuge, soprano; Nathalie Stutzmann, contralto; Christoph Genz,
tenor; Gotthold Schwarz, baixo. Coral Monteverdi. Regência: John Eliot Gardner
[“Nasci com a minha
morte / dela não vou abrir mão / não quero o azar da sorte / nem da morte ser
irmão / da sombra eu tiro o meu sol / e do fio da canção / amarro essa certeza
/ de saber que cada passo / não é fuga nem defesa / não é ferrugem no aço". Letra de Ruy Guerra para a música Canto Latino, de Milton Nascimento]
Bem antes
disso, Bach havia composto outro coral, intitulado Alle Menschen müssen sterben, ou “Todos os homens deverão morrer”.
Aceitação do destino, do inexorável, da única certeza que temos quando vivos, que
é a pergunta maior do fundo da alma humana, vazio em que todas as filosofias
pecam por gerar mais dúvidas do que certezas: o que é a existência? Nascer é a
condição maior sem a qual nada existiria.
Nos corais de Bach, há o sentido de devoção e resignação, diante do
verdadeiro porquê da vida. O pessimismo de apenas se viver (Schopenhauer), o
ser para não deixar de existir (Sartre), a vida pelo prazer, o bem supremo (hedonismo),
ou a negação de tudo (niilismo). Mas ainda se pode servir a Deus, deixar uma
contribuição para o mundo, entre tantas outras razões de se viver.
Maria Lucia
Christo Autran Dourado nasceu em 1928, em Belo Horizonte. Filha de um militar
sistemático e ultracatólico, reformado como general, José Carlos Campos
Christo, revolucionário constitucionalista como seu pai, o Cel. Vieira Christo,
oficial auxiliar direto do ex-governador e ex-presidente Artur Bernardes, que com
ele foi exilado posteriormente. Minha mãe odiava Getúlio desde que, criança,
ficara um ano e meio longe de seu pai, deportado e depois exilado na Europa. Sua
irmã Lourdinha só viria a conhecer o pai aos dois anos de idade, pois nascera
após a prisão de meu avô, com minha avó grávida.
À direita, o Coronel Christo (vovô Juquinha) |
Minha avó
Lilia era uma pessoa dócil mas igualmente rigorosa, talvez um pouco áspera
pelos anos durante os quais, sozinha, foi chefe de família com a prole de quatro
filhos: Lígia, minha mãe, Marcelo e Beatriz. E Lourdinha, nascida depois da partida de meu avô.
Seguiram-se José Carlos, Carminha e Ângela, nascidos após o retorno de meu avô,
fora duas meninas falecidas ainda pequenas. De meus bisavós maternos,
generosamente, minha mãe herdou os olhos azuis, traço da invasão neerlandesa ao
Brasil no século 17, tempos em que Nassau deixou um legado cultural,
arquitetônico e artístico sem precedentes no Recife. Pois diante daquele azul
fustigante dos olhos maternos não se conseguia mentir, nada escapava, eles tudo
viam! Dela, recebi os olhos mais claros, mas o meu netinho inglês, Tommy, tem o
mesmo azul celeste de minha mãe, joias que, quem sabe, passará a quem o
descender. Profundos como Those ole blue
eyes, “aqueles velhos olhos azuis”, quase-alcunha de Frank Sinatra.
Difícil
dizer o quanto nossa mãe sofreu durante a ditadura de Getúlio, obrigada aos
insuportáveis desfiles cívicos e até discurso de apelo fascista que era
obrigada a enfrentar e ouvir ainda pequena, a saudação forçada ao homem que
tanto fizera sofrer seu próprio pai. Difícil imaginar a labuta de educar seus
filhos com esmero, acompanhando seu marido, jovem e futuro grande escritor,
como as estrelas pareciam ter-lhe escrito desde cedo.
JK, meu pai e o poeta Schmidt |
Logo, iriam
para o Rio de Janeiro, onde meu pai haveria de assumir aos vinte e tantos anos
de idade um alto cargo na República, sendo dele seu primeiro titular na
história. Trabalho estressante, o de Secretário de Imprensa (hoje Porta-Voz) de
JK, respondendo por um mineiro visionário, cercado por artistas, especialmente escritores,
e intelectuais.
Meus pais com o afilhado Roberto Christo (www.robertochristo.com.br) |
Dona de
casa guerreira e intelectualizada, leitora compulsiva quando havia tempo,
compartilhou da melhor intelectualidade do Rio de Janeiro, cidade onde ficou com
meu pai após a mudança da capital para Brasília, em 1960. Minha mãe dedicou-se
a educar os quatro filhos dando de si muito mais do que podia e do que o
salário de meu pai, serventuário da Justiça do estado do Rio, poderia dispor, mas
sabia fazê-lo suficiente para a família.
Não bastasse
a ditadura de Vargas, minha mãe haveria de sofrer de perto uma segunda: 1964.
Com o golpe, o medo. Especialmente após o endurecimento do AI-5, com amigos, parentes
e ex-colaboradores de governo presos - o
próprio JK perdera os direitos políticos e sofrera outras sanções, além de ser
perseguido por ter, supostamente, “sido apoiado por comunistas” (sic), absurdo
dos absurdos. Um dia, o terror bateu à porta de casa. O porteiro avisou que lá
embaixo estava um sujeito que se identificou como policial, e que era para ele
descer. Meu pai avisou minha mãe, imagine a angústia, de que poderia ter
chegado a hora dele – um recatado escritor “formiga” (lembrando a fábula da cigarra), de trabalho artesanal e de
ourivesaria, como bem escreveu o crítico Humberto Werneck, e amedrontado como
tantos brasileiros, apesar de nunca ter segurado uma metralhadora ou participado de grupos
guerrilheiros.
JK: discurso |
Desceu à
portaria, e o policial (do SNI, acho) pediu-lhe que o acompanhasse para uma
volta. Meu pai deve ter se lembrado de uma frase de efeito de inspiração bíblica
que escrevera em um fiapo de papel e colocara no bolso de JK durante um comício
em que o povo estava pouco empolgado. O presidente o leu e bradou “Deus
poupou-me o sentimento do medo!” (Palmas). Voltando ao policial, na breve
caminhada, o sujeito lhe disse que vinha com a missão de prendê-lo, mas que na
verdade o agradecia muito por sua filha. Meu pai não entendeu nada.
Iapetec, no Rio |
É que o
senhor, quando trabalhava no Palácio do Catete, me fez um grande favor, disse
ele. Minha filha estava desempregada, estive com o senhor e lhe pedi uma ajuda.
O senhor lhe conseguiu uma vaga no Iapetec (o antigo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos
Empregados em Transportes e Cargas). Sou-lhe
eternamente grato, continuou, pois então volto e informo que o deixei sob
condições restritas e que o estarei observando. Muito obrigado e adeus,
despediu-se. Imagine agora o que sentia minha mãe, lá de cima. Que aflição! Outra
vez, Senhor, primeiro meu avô e meu pai, agora o pai de meus filhos? Eu mesmo só
vim a saber dessa história depois, em uma conversa com ele e lendo mais tarde sobre
o episódio em seu Gaiola Aberta (Ed. Rocco). O fantasma da ditadura trouxera a sombra
do prisioneiro para minha mãe mais uma vez, como descreve várias vezes Cecília
Meireles em seu Romanceiro da Inconfidência.
Carlos Lacerda, no meio, com seguidores |
Voltando um pouco, a
tentativa de golpe antes da posse de JK, as ameaças traiçoeiras do Carlos
Lacerda, sua patrulha udenista e setores militares (“JK, se for candidato, não
será eleito; se eleito, não tomará posse. Se tomar posse, cairá”). Frase, aliás,
tomada emprestada de Artur Bernardes e distorcida conforme sua conveniência). Fora
a posse garantida pelo Marechal Lott, houve ainda duas revoltas da aeronáutica.
Mais tarde, nos chamados “anos de chumbo” Frei Betto, primo de minha mãe, preso,
assim como Hélio Pellegrino, amigo da família, os humoristas do Pasquim, Cony, o
editor Joel Silveira (preso cinco vezes!) para todos tudo era motivo para o medo,
dia e noite. Fora o que ela relatou sobre mim, ano passado, sobre o meu
trabalho em peças teatrais do Chico Buarque, shows do Grupo Universitário de
Música, festivais e outros possíveis desafios à “ordem vigente”. Mas “Dona
Lúcia”, “nossa mãe”, como meu pai a ela carinhosamente se referia, era uma
pessoa de nervos de aço. Mandona, sim, mas extremamente carinhosa.
No dia 23
de novembro passado, data do falecimento de sua mãe Lilia e, consta, no mesmo
horário e em condições absolutamente semelhantes, com o despojamento dos
luteranos de Bach diante do fado inegociável, o destino, terminou por
entregar-se. Aos filhos, sozinhos e novamente crianças, restou a serenidade
diante do que seria um desejo já manifesto, e àquela altura obviamente
irreversível e já maturado pelo tempo. Para quem lutou energicamente uma vida
inteira sem conhecer fraqueza ou vacilo, restou-lhe tão somente aceitar os
impenetráveis desígnios de Deus. E assim a respeitamos na hora da despedida da
sua presença física, e apenas esta, pois sua chama de vida restará acesa em
todos os que tiveram com ela a enorme bênção de conviver.
Gonzaguinha |
Peço vênia
ao Gonzaguinha para citar uma de suas letras mais inteligentes, que
bem exemplifica o mundo que nossa mãe nos deixou, e no final evocar as palavras
do poeta carioca, uma reverência aos memoráveis anos de que todos com ela
desfrutamos: “Nas avenidas as buzinas gritam alto a nova explosão / numa
vitrine está à mostra seu novo tipo de coração / é o progresso em nossa mão,
viva a civilização! / Um abraço terno em você, viu, mãe?"
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