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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

GILBERT KAPLAN, O MAESTRO

...que só regia uma peça e não lia partitura

Nascido Gilbert Edmund Kaplan em 1941, em NY, era um poderoso empresário, jornalista (um “tycoon”, à maneira do Cidadão Kane, do Welles), e tinha uma paixão: reger. Conto logo a seguir, meio a algumas explicações, a história é muito saborosa. Ainda bem jovem, aos 26, Kaplan fundou a revista “Institutional Investor”. Vendeu-a 17 anos depois por 75 milhões de dólares – US$ 171 milhões, em dinheiro de hoje, ou R$ 684 milhões.

Como hobby e paixão obcecada longe dos negócios, passou a ouvir incessantemente a 2ª Sinfonia ("Ressurreição") de Gustav Mahler (1860-1911), uma das maiores obras de todos os tempos, e começou a fazê-lo vinte anos antes de regê-la! Como adorava desafios, pagava aulas particulares a um professor da afamada Juilliard School de NY, mas não queria estudar teoria, solfejo, contraponto, harmonia, essas coisas chatas de escola: só queria aprender a reger a 2ª de Mahler!

Avery Fisher Hall
Alugava o afamado Avery Fisher Hall, casa da Filarmônica de NY, e pagava músicos para que pudesse treinar a batuta no comando de sua peça, a única, a “sua” sinfonia. Com muito dinheiro, criou a Fundação Kaplan, que dava bolsas de estudos e promovia a música de Mahler. Estreou em público em 1982, regendo a obra, e apenas cinco anos depois a gravava, sob sua direção, com a Sinfônica de Londres. Três anos após, a afamada Filarmônica de Viena.

Publicação de Kaplan
Adquiriu partituras e manuscritos de Mahler, que estão sob a custódia da Morgan Library & Museum de NY. Deu aulas na Juilliard School em curso noturno para aficionados – por Mahler. E girou o mundo, regendo a sinfonia mais de 100 vezes, incluindo orquestras estelares como as filarmônicas de Nova Iorque, São Petersburgo e Los Angeles, a Royal Philarmonic de Londres e o La Scala. Após sua performance à frente da orquestra de Melbourne, foi saudado em jantar por um discurso de ninguém menos do que o primeiro-ministro da Austrália, Paul Keating, também mahleriano.

Crítica e músicos se dividiam. Membros da Filarmônica de Nova Iorque faziam coro contra Kaplan (coisa nada incomum, tratando-se de orquestra refinada), enquanto o rigoroso The New York Times publicou uma avaliação espetacular, comentando sobre a precisão, os detalhes, a clareza do regente. Por essas e outras, ele foi convidado a reger a Philarmonia Orchestra de Londres com o coro da Ópera Estatal de Viena na abertura do festival de Salzburg, um Panteão da música. Ao final, dez minutos de aplausos de pé, já era uma grande atração musical.

Joseph Brooks (nascido Kaplan) e seu Oscar
A paixão de Kaplan pela música veio de seu irmão mais velho, Joseph Brooks, compositor que levou o primeiro prêmio da Academy Award de 1977, com a canção You light up my life, e suicidou-se antes de julgamento por 11 estupros de jovens atrizes e 82 denúncias de abuso sexual. Antes da perda, mesmo atormentado pelos problemas que demonizavam o irmão, Kaplan levou adiante sua obsessão, publicando livros sobre a própria interpretação de Gustav Mahler para a segunda sinfonia, entre vários outros. Bancou a edição do manuscrito original da “Ressurreição” e gravou a obra mais de cinco vezes com grandes orquestras do mundo.

Mahler compôs o primeiro movimento desta sinfonia em 1888, como poema sinfônico à parte, chamado Totenfeier, celebração funeral. Em 1897, a obra completa teve sua primeira edição impressa pela Hoffmeister. A orquestração é tão monumental quanto a obra: 4 flautas, 4 oboés, 4 clarinetas, 4 fagotes, 1 contrafagote, 10 trompas, 10 trompetes, 4 trombones, sete percussionistas, sendo dois deles timpanistas, com um enorme arsenal de teclados e instrumental miscelâneo, mais tuba, conjunto offstage (atrás do palco), órgão, vozes soprano, contralto e enorme coro misto, 2 harpas, cordas em grande número, com primeiros e segundos violinos, violas, violoncelos e contrabaixos, alguns com uma 5ª corda grave. Ou seja, um palco cravejado de músicos.

Em 1986, com tudo isso na cabeça, Gilbert Kaplan veio ao Brasil, onde regeria nossa orquestra, a Osesp, à época comandada pelo grande Eleazar de Carvalho, em concerto do Teatro Sérgio Cardoso, sede temporária do conjunto. Trouxe consigo uma equipe enorme, e para tanto reservou um andar inteiro de um hotel de luxo em São Paulo para acomodá-la, sem falar em restaurantes finíssimos e aluguel de vans de primeira. Veio também com sua equipe de filmagens e equipamentos, coisa para ninguém botar defeito.

A apresentação foi um sucesso, embora Kaplan não pudesse responder a perguntas básicas dos músicos. No intervalo do primeiro ensaio, alguns de nós, eu entre eles, subimos ao pódio para ver, na partitura, que diabos Kaplan lia. Surpresa: vários stick-ons, aqueles papeizinhos autocolantes, na partitura dele, diziam: “entrada à direita, violoncelos”, em azul; “entrada à esquerda, violinos”, em verde, e por aí vai. Ninguém do meu tempo de Osesp se esquece desse concerto, especialmente os colegas com quem ainda mantenho contato, como o Edmilson Nery, clarinetista, e Ozéas Arantes, trompista, Jed Barahal, violoncelista, Beth Del Grande, percussionista, Joel Gisiger, oboé, José Ananias e Rogério Wolf, flautas, entre tantos outros.

Foi uma bela experiência, a despeito de Kaplan não ser, exatamente, um maestro, mas provou que para se tornar um regente é preciso antes de tudo conhecer profundamente a música que se deve reger, entender sua história, ter o controle da batuta, mais do que se aprofundar em erudições acadêmicas. Estudo, claro, é indispensável, mas sem música antes, nada feito. Dedico este texto a essa figura, que faleceu há pouco mais de um mês, dia primeiro passado, pouco antes de completar 75 anos. Deixa um exemplo de obsessão e paixão musical que pode mover montanhas.

(Ouça, abaixo, o 5º movimento - "Reerga-se" - da 2ª de Mahler, com Gilbert Kaplan à frente da Filarmônica de Viena, gravado para a Deutsche Grammophon)



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