Meu pai volta e meia repetia os versos do Lundu
do Escritor Difícil, do Mário de Andrade: “...não carece vestir tanga / pra
penetrar meu caçanje (obs.: mau português) / Você sabe o francês singe / mas não sabe o que é guariba? /
pois é macaco, seu mano, que só sabe o que é da estranja”.
A enfiteuse (do latim emphyteusis) é uma espécie de arrendamento que vem do direito
romano. No Brasil, refere-se a terras da União, cedidas permanentemente a
particulares. O enfiteuta (cessionário) tem o dever de bem cuidar das terras adquiridas.
No passado, o enfiteuta pagava à União o vectigal,
espécie de taxa anual, como contrapartida pela cessão do imóvel em caráter
permanente por instrumento jurídico (isso, até 1916). O instituto da enfiteuse estava
no Código Civil de 1916, mas em nosso novo Código, de 2003, deixou de ser
considerado um direito real, embora tenha permanecido em plena vigência.
A "Faixa do Laudêmio" |
O curioso é que o novo Código também preservou
o laudêmio (do lat. laudemium), que
não é imposto, não é taxa, não é tributo, não é nada. Querem que pareça a
história do “tem focinho de porco, pé de porco, orelha de porco, mas não é
porco, é feijoada”. O laudêmio de 2,5% deve ser pago pelo vendedor à Marinha, portanto,
à União, pela proximidade do terreno com o mar (rendendo coisa de R$ 153
milhões ao ano). Em 1821, todo aforamento - obrigação de ceder suas terras para
plantio de outrem - das chamadas sesmarias passaram a ser enfiteuses, conforme
determinou o Império de Portugal. O ilustre jurista Pontes de Miranda
(1892-1979) afirmou que a enfiteuse, instituída inicialmente para as terras
próximas ao mar, “para prevenir invasões” (sic), “é um dos cânceres da economia
nacional”.
Pior: a depender do caso, em cidades como
Petrópolis, antiga Residência Imperial de Verão, paga-se 2,5% não à Marinha,
mas aos herdeiros da Família Imperial. Sim, isso mesmo, família que, como se
sabe, caiu do trono há 129 anos, quando Deodoro desferiu-lhe o golpe mortal da
República.
Árvore genealógica da Família Imperial |
A família Orleans e Bragança recebe 2,5% de
cada transação imobiliária em Petrópolis, o que soma – segundo a contabilidade da
própria Família Real – R$ 4,7 milhões no ano, ou seja, R$ 470 mil (atuais) para
cada um de seus dez membros vivos. Para fazer absolutamente nada. O porquê de a
República manter a benesse para a família real 129 anos depois do fim do
Império, não descobri. Há um Projeto de Lei protocolizado em 2014 para
extingui-la, na Câmara dos Deputados, mas que sequer chegou à CCJ, primeira
comissão. Algo me diz que ficará onde está.
Assustou-se? Calma, tem mais, seu mano (como
diria Mário): o laudêmio também pode ser devido, em lugares como a Bahia e pelo
menos parte da cidade do Rio de Janeiro, à Igreja Católica – isso mesmo, à
Igreja! Caymmi cantava “365 igrejas, a Bahia tem”, mas ficam de fora os orixás,
os cultos afro-brasileiros e demais religiões? Que dizer dos ateus e
agnósticos? Simplesmente porque a lei “pegou”, e continua vigente mesmo em um
país dito laico, cuja Constituição determina expressamente que não há distinção
de raça, credo, etc.?
O cidadão que receber por herança ou por doação
um imóvel vai pagar também o ITCMD (Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doações)
ao cartório de imóveis, em taxas que variam conforme o estado: em São Paulo, cobra-se
4%, e no Rio de 4,5% a 5% na avaliação estabelecida por uma tabela especial, e
não o mais modesto valor venal, claro. Isso significa que, só de ITCMD, o
herdeiro de um imóvel de 1 milhão (os preços no Rio estão na estratosfera) tem
de pagar R$ 50 mil para registrá-lo em seu nome. E não é só. Some 2% do ITBI (Imposto
sobre Transmissão de Bens Imóveis) municipal, que acompanha o valor da tabela do
ITCMD, e o total já salta para R$ 70 mil. No Rio, onde há ainda o laudêmio e
outros tantos impostos, o achaque é tão absurdo que o número de imóveis em
situação irregular é alarmante. Herdeiros ficam na posse precária do imóvel, alugam
ou passam adiante assim mesmo. Mas não para aí.
Ao registrar um imóvel, o cidadão fluminense
paga também o PMCMV, que nada mais vem a ser que uma contribuição para o Minha
Casa, Minha Vida, a cerejinha do governo federal, bonita para os ilustres
governadores e presidente de plantão inaugurarem, com direito a casquinha dos
prefeitos. Mas espere, como a molecada hoje diz, você ainda “não sabe de nada,
coitado!”
Paga-se 20% para o FETJ (Fundo
Especial do Tribunal de Justiça), assim distribuídos: 5% para o FUNPERJ (Fundo Especial da Procuradoria
Geral), mais 5% do FUNDPERJ (Fundo
Especial da Defensoria Pública Geral), 4% do FUNARPEN/RJ (Fundo de Apoio aos Registradores Civis das Pessoas Naturais),
e uma caixinha de R$10,86, por cada ato praticado, sejam quantos forem, divididos
igualmente para a Mútua dos Magistrados
do Estado, a Caixa de Assistência do Ministério Público, a Caixa de Assistência
dos Procuradores do Estado, a Caixa de Assistência
aos Membros da Assistência Judiciária, a ANOREG/RJ (Associação dos Notários e
Registradores), ACOTERJ (Associação dos Conselheiros dos
Tribunais de Contas do Estado e dos Munícipios). Paga-se ainda R$15,63
para cada consulta ao BIB (Banco de Indisponibilidades de Bens). Ficam assim
todas as entidades fornidas e satisfeitas!
Meu pai dizia - sabia do que falava, pois trabalhou
muitos anos no Palácio da Justiça do Rio e conhecia bem o assunto - que o
Brasil não tem governo, tem tributo. Uma de suas “sacações” geniais, seu jeito de trançar os sentidos com um humor muito pessoal. Sábias
palavras!!!