Está
aberta a sessão do repente. Quem é do canto falado, da palavra cantada, que se
apresente na roda.
O som da voz, luz criada por Deus de presente aos homens e
animais, veio no princípio, mas logo depois do Verbo, servia para os seres se comunicarem,
fazer amigos ou apavorar inimigos e maus espíritos, além de conquistar terras e
fêmeas, é a mais antiga e completa forma de expressão.
Safo |
Canto Gregoriano |
O canto gregoriano, meio falado (ad
occasum laudabile nomen Domini), usava melismas que traduziam dúvida,
súplica e elevava ao estado de contemplação, com longos vaivéns tricotados em poucas sílabas
sobre os sons. O responsório da
missa católica romana resistiu meio cantado em belíssimo latim, até tempos
recentes. Dominus vobiscum; (resp): et cum spiritu tuum.
Encenação do Pierrot Lunaire |
Schönberg, liquidificando a palavra, revelou-a em sua fase abstrata, mas traduziu para a língua de Goethe o texto escrito por Albert
Giraud originalmente em francês. Os pontilhismos do Sprechgesang do Pierrô Lunar, de 1912: J'ai les vers luisants pour fortune / Je vis en tirant,
comme toi / ma langue saignante… (“Tenho os versos brilhantes por sorte / eu vivo mostrando, como você / minha
língua cáustica...”)
B´Boying |
Esse canto falado e a palavra cantada, de antes da época de nossos vovôs, é desconhecido das
gangues b-boying e MC de
N.York e da molecada do Vidigal carioca ou Capão Redondo paulistano. Adotam o rap (Rythm And Poetry, “Ritmo
E Poesia”), hoje "musiscigenado" até mesmo entre os rappers brasileiros sem
conhecer-lhe significado e raízes. Gêneros similares sempre existiram.
Caymmi (Ag. JB) |
O rap
americano não usa mais do que duas ou três notas. Já o suposto criador do rap que
alguns creditam ao Jair Rodrigues “deixem que digam, que pensem, que falem”, é uma balela - depois da introdução segue uma elaborada melodia, que desfila quase uma escala inteira (sem falar no fato de que os autores eram Alberto Paz e Wilson Menezes. É assim mesmo, Jair era o "canário", daí...Virou "dono" da música, outro vício brasileiro). Até “Águas de Março”, do Jobim, também teria sido precursora do rap,
ou o divertido Caymmi do “João Valentão é brigão / pra dar bofetão / não presta
atenção...”
E os brados populares, como aquele depois da vitória contra a Inglaterra, Copa de 1970? ? (“é canja, é canja, é
canja de galinha / a nossa seleção...” – cujo final me abstenho de reproduzir). Ou o marketing político de “Getúlio, Getúlio, Getúlio e João
Pessoa”, quem sabe ainda o mais recente “o povo unido jamais será vencido” e afins?
Tecem loas até para o rap branco de
classe média alta do Gabriel Pensador: “Existem mulheres que são uma beleza / mas quando abrem a
boca (...) Lôrabúrra!”. Aquilo é poesia mesmo, e bem construída.
Kid Morengueira |
Moreira da Silva, o Kid Morengueira, frequentador
contumaz do bas-fond da
Lapa Carioca, era rei da palavra, da métrica perfeita, e contava estórias faladas entremeando partes cantadas em seus sambas de breque. Em “Olha o Padilha” (1952), Kid lembra o delegado
carioca “caçador de playboys”. Prenderam o Kid, e, levado de camburão à chefatura, um
barbeiro o aguardava. Ordem do “delega” Padilha: “raspa o cabelo desta fera”, humilhação mortal para o malandro “Chico cabeleira”. Para a música e ele entra com o breque: “Ah, ele quer ver minha caveira. Eu, hein?
Se eu não me desguio a tempo ele me raspa até as axilas. O homi é de morte”.
Ilustração para L'Histoire du Soldat |
Sublimes são os Rezitativ das “Paixões” (João e Mateus, entre 1724 e 1727) de Bach,
narrados por um tenor. Canto falado é “A
História do Soldado” (1918), de Stravinsky, com texto de Charles Ramuz. Um
Fausto travestido de soldado entrega seu violino mágico para o capeta, tudo com
direito a princesa, embalado em marchas, tango e ragtime, com tempero de folclore
russo.
Aqui no Brasil, temos baiano, que mineiro diz
que fala cantando, e temos mineiro, que baiano diz que fala cantando. E os
cantadores, os repentistas que cantam falando e falam cantando: “triste ô feliz
é o cantadô / qu’eu apanhá prá dá o castigo” (Elomar).
Sly and the Family Stone |
E o “funk
carioca”, modismo que nada tem a ver com o funk verdadeiro, como o do histórico Sly and the Family Stone?
A dança dos piores bailes cariocas é pura catarse, com raras ou quase nenhuma nota, um
vomitar de palavras no jargão das gangues de bandidos e traficantes, como no “Tchu Tchuca” do Bonde do
Tigrão ("vem aqui com seu tigrão / vou (...) te dar muita pressão"). E
há o “proibidão”, linha dos MCs Catra e Sabrina, de apologia à droga, ao
crime e ao sexo versão XXX. MC, para quem não sabe, rapaziada, quer dizer Master of
Ceremony: made in USA, Yes, Sir!
É hábito brasileiro “criar verdades” a partir
de ilações. Essas, como dizia Goebbels, repetidas muitas vezes tornam-se reais
para quem as comprar. Essas “verdades” não têm prazo de validade, infelizmente. Uma
das mais curiosas delas fala do forró. Afirmam firme e forte que seriam bailes dos gringos, na Base Aérea
de Natal, festas aberta para todos – os for all, de onde teria surgido o termo
forró, garantem. É? Mas muito antes disso Chiquinha Gonzaga compôs seu “Forrobodó”,
palavra que desde a segunda metade do século XIX dividia com forrobodança o nome dos bailes de maxixe (de “sô macho, ixe”), os forrós.
Meu povo, estamos “à vontademente” redimidos. Em música nada se cria, nada
se rejeita, derrepentemente tudo se aproveita. E termina aqui esse desafio de repentista, para
que o Congresso Nacional, “no uso das atribuições e atribulações”, decrete, revogadas
disposições em contrário: “fica
abolido a partir desta data, a bem público da péssima saúde mental do imaginário nacional, o
rigor científico da nossa lorotada musical”. Estão encerrados desafio e sessão e, concordando
ou não, salve o jeito que sempre cantou e falou o bardo Bob Dylan.
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