Algumas vezes conversei
com amigos, artesãos da escrita ou amantes das letras, sobre a questão da
tradução. Um mau tradutor pode destruir o significado do texto, corromper o sentido,
às vezes já desde o título. O deste artigo, aliás, não é por acaso: segue o
provérbio italiano traduttore, traditore.
Traduzi literalmente, porque cabe justo em nossa língua, também latina; não
haveria outra forma de fazê-lo. Tenho sérias objeções a muitas traduções de
títulos de livros no Brasil e, claro, de seus conteúdos, e não haveria de ser
diferente no cinema, na música ou em outras artes.
Ben Jelloun |
Com o francês, também
idioma latino, dá-se o mesmo, é menos difícil traduzir. É célebre a frase “As
traduções são como as mulheres. Quando são belas, não são fiéis. Quando são
fiéis, não são belas” - Les traductions sont comme les femmes.
Lorsq’elles sont belles, elles ne sont
pás fidèles. Et lorsqu’elles sont
fidèles, elles ne sont pás belles (Ben Jelloun). Tomei ali a liberdade de
retirar o excesso do pronome “elas”, comum em francês, mas cuidei de respeitar
o sentido da frase, assim como o nosso idioma.
JK e seus escribas: Autran e Schmidt |
Recentemente, minha
irmã começou a digitalizar importantes documentos dos mais de 2 mil do acervo deixado
por meu pai. Todos irão, por vontade expressa dele, para a UFMG, onde se
formou, juntamente com 5 mil livros em diversas línguas. Em “notas à margem de
uma tradução”, de meu pai, lê-se: “o escritor é livre, conforme as exigências
de seu estilo, de aceitar ou rejeitar as prescrições gramáticas que regem a
língua, e que as únicas leis às quais é preciso se submeter são as leis da
harmonia” (Flaubert, segundo Maxime Du Champ).
Gustave Flaubert |
Esta é uma tradução
por meu pai - que eu até há pouco desconhecia - do grande mestre da literatura
francesa, Gustave Flaubert (1821-1880), que, ao lado do norte-americano William
Faulkner (1897-1962), lidos sempre no original, alinhavam-se com Machado de
Assis entre suas grandes influências. Ora, se Flaubert se permitia assim usar o
idioma, que dirá de um mortal tradutor, tentando não ser traidor? Por isso,
quando faço a versão de alguma frase, costumo avisar, entre parênteses: “Trad.
Livre do A.”
Cito dois
dos inúmeros atentados já cometidos. Darkness
Visible (literalmente, ‘Escuridão Visível’), de William Styron, foi
traduzido para “Perto das Trevas”, em português. Por quê? Era um relato da luta
de Styron contra sua depressão, que quase o levou ao suicídio. Chegou,
portanto, à “escuridão visível”. Outro impagável é Why this World, da nossa Clarice Lispector, por Ben Moser, que aqui
saiu... “Clarice, uma Biografia”. Esse título em português bem que poderia ser
o da biografia de um animador de TV ou cantora de “funk carioca”. Ora, a foto
de Clarice na capa do original, com as mãos cobrindo o rosto, e o título “Por
que este mundo” (assim mesmo, com “por que” separado, como em uma pergunta, mas
trocando o derradeiro ponto de interrogação por um ponto final). Bem ao jeito de
Clarice, entre suas angústias, inquietudes e passeios pela depressão.
O "Poetinha" |
Tradutor
eletrônico? Nem pensar. Faço aqui uma brincadeira com versos do Soneto de
Separação (1939) do poetinha Vinicius de Morais, genial como sempre: “De repente da calma fez-se o vento / Que dos
olhos desfez a última chama / E da paixão fez-se o pressentimento / E
do momento imóvel fez-se o drama”. Primeiro, usei o tradutor para o
inglês, dele para o alemão, de lá para o francês e, de volta, ao português. Resultado:
“De
repente se torna vento calmo / o que os olhos derrotou a última chama / e a
paixão tornou-se um sentimento / e a propriedade consiste atualmente drama”. Não
é piada!
Autran Dourado, perto da estante de seus prediletos |
O
que faziam as pessoas no passado, até recentemente? Ora, estudava-se, lia-se,
falava-se outras línguas. Meu colégio – difícil imaginar, nos dias de hoje - tinha
francês e inglês (com as respectivas literaturas) e ainda um tanto de latim. E
não era diferente da maioria das boas escolas. Meu pai aprendeu línguas com algumas
aulas, livros e LPs - lembro-me dele repetindo metodicamente as frases das lições
na cadeira de balanço. E assim fez não só para entender seus prediletos no
original: precisou muito no período em que foi Secretário de Imprensa da
República de JK (foi o 1º a ocupar tal cargo, criado para ele), fosse para acompanhar
o esquema de segurança em visita de Eisenhower, ou um release para André Malraux. O que acontece hoje? Busca-se o mais
fácil, quando muito, ou não se busca nada. Servem os tradutores da Internet.
Mário Quintana |
“A
preguiça é a mãe da invenção”, outra frase recorrente de meu pai, lembrando
Mário Quintana, mostra que ao lado do progresso tecnológico há o retrocesso
cultural. “Tristes Trópicos”, diria eu, repetindo o título de um livro de
Lévi-Strauss (1955) com reflexões sobre suas vivências entre índios
brasileiros.
Bob Dylan |
Por
acaso, a indicação, em 2016, ao Nobel de Literatura do Bob Dylan, que às vezes
parecia mais recitar do que cantar, chama a atenção novamente para a
impossibilidade de se traduzir poesias. De uma das mais conhecidas, Like a Rolling Stone (poema originalmente
com 10 páginas), pinço um pequeníssimo exemplo: How does it feel /to be without a home / like a complete unknown / like
a rolling stone. Rimas chamadas ricas, difíceis em inglês, língua com possibilidades
bem mais limitadas do que nosso português: home
(‘lar’, recesso da família), unknown
(‘desconhecido’, adjetivo) e stone
(‘pedra’, substantivo). Quem vai tentar traduzir esse trechinho, e ainda sair achando
rimas? Boa sorte, estou fora!
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