Um
sujeito estrambótico que era estrelícia do Ivan fez um garabulho enorme com
suas galimatias a apenas um estepe da rica Mascate. Ora, tudo isso pareceria
muito complicado, a não ser que fosse escrito assim: um sujeito vesgo que era
atirador do Czar fez uma bagunça enorme com suas conversas confusas a apenas um
passo da rica capital de Omã. Seguindo: tudo por causa do meirinho de que era
dono um pária que mascava porrada como se fosse um preito do pretor. Que, por
sua vez, pode ser lido assim: tudo por causa de um sujeito da classe mais baixa
da Índia que era dono do gado que no verão pasta nas montanhas e mascava erva para
temperos como se fosse uma homenagem do comandante do exército.
Deonísio da Silva |
Deixem-me
explicar melhor essa estória surreal acima. É que estou me divertindo com o
livro “de onde vêm as palavras – origens e curiosidades da língua portuguesa”,
do amigo Deonísio da Silva (17ª edição, Rio de Janeiro. Lexicon: 2014). Catarinense
que adotou o Rio, doutor em Letras pela USP, tem várias academias no currículo,
34 livros publicados, um programa apresentado pelo Ricardo Boechat em que ele
fala da língua portuguesa na Rádio Bandnews FM 94,90 RJ, “Sem papas na língua”.
Considerado um dos nomes mais respeitados em etimologia (origem e evolução das
palavras) e filologia (estudo das sociedades e suas literaturas) do país, é um
pesquisador incansável. (O blog do Deonísio pode ser lido em https://deonisio.blogspot.com.br/).
Na brincadeira acima, inspirei-me em uma postagem dele.
Hemingway e um de seus merlins: um hobby, uma paixão |
São
quase quinhentas páginas de verbetes os mais diversos, incluindo um enorme
número de palavras que falamos ou escrevemos no cotidiano sem pensar de onde
vêm e os mistérios que há por trás delas. Quem gosta de entender nossa língua,
lê ou escreve, vai achar o livro de grande utilidade. Pinço ao acaso uma
palavra que todos conhecem e já devem ter usado: “anzol”, que teve origem no
latim vulgar “amiciolus” diminutivo de “hamus”, gancho, podendo também designar
a proteção do cabo da espada. “Anzol” se presta à descrição da luta individual
travada entre o homem e o peixe, ao contrário da rede, que leva o homem a
pescar no atacado (obs.: sobre a luta homem contra o peixe, é leitura
obrigatória “O velho e o mar”, de Hemingway). “Como os primeiros discípulos
fossem homens que viviam no mar, Jesus prometeu transformá-los em ‘pescadores
de homens’”.
Este
é um único exemplo “pescado” aleatoriamente (do grego “alea”, dado de jogo da
sorte) entre incontáveis outros. Deonísio é um preciosista, desce aos mínimos
detalhes e encontra variações na aplicação das palavras, não se limitando, no
mais das vezes, a apenas um significado ou um uso em nossa rica língua
portuguesa. As palavras podem formar um quadro que pode ser lindo de se ver, mas
por trás dele há um universo de histórias e visões riquíssimas a serem descobertas.
É preciso ousar conhecê-las, e fazer do aprendizado do dia a dia uma coisa
prazerosa e desafiadora, porque nunca terá fim. E o livro do Deonísio pode ser
lido saltando páginas, de trás para frente, várias por dia, ou – mais uma vez –
aleatoriamente, fora consultas.
Se
conhecer a etimologia das palavras é uma instrução e uma diversão, não quer
dizer que devamos escrever sempre com as mais rebuscadas erudições. De vez em
quando coloco em um texto meu uma palavra para ver o leitor se dar ao trabalho
de ir ao dicionário, ao menos isso. (Meu pai contava que uma senhora disse que
o livro dele era muito difícil – o que não era – e que ela teve de ler duas vezes.
Ele: “mas eu escrevi mais de vinte!”) Adoro a simplicidade com que certos grandes
autores usam as palavras, tecendo um jogo lindo e de grande sabedoria, como
Drummond e Fernando Pessoa, d’além mar. Do primeiro, os versos de Para Sempre:
“Fosse eu rei do mundo, / baixava uma lei:/ Mãe não morre nunca, mãe ficará
sempre junto de seu filho e ele, / velho embora, será pequenino / feito grão de
milho”. Do Pessoa, acho geniais os versos de Liberdade: “Mais que isto / É
Jesus Cristo, / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse
biblioteca”.
Estátua do Drummond, no Rio |
Entre
os nossos poetas, há lugar para o bardo Vinicius de Moraes – “Que não seja
imortal, posto que é chama / Mas que seja infinito enquanto dure”, do Soneto da
Separação. Vinicius é outro mestre da simplicidade (nas palavras), mas os
versos são mais bordados em João Cabral, de Morte e Vida Severina: “E se somos
Severinos / iguais em tudo na vida, / morremos de morte igual, mesma morte
severina: / (...) (de fraqueza e de
doença / é que a morte severina / ataca em qualquer idade / até em gente não
nascida”). Tem de ler e reler, compreender sem procurar um sentido de redação
de escola. Melhor é sentir.
Região da enfiteuse, no Rio de Janeiro |
O
livro de Deonísio nos dá a dimensão mais profunda das palavras, desde as mais
simples, como ‘outono’, até ‘laudêmio’, que tem origem no italiano e carrega em
si a ‘enfiteuse’, que até hoje é cobrada no Rio pela orla do mar, e em
Petrópolis, paga à Família Real! Fiquei tão indignado com essa cobrança feita
na venda de um imóvel do espólio de meus pais que escrevi o artigo “Você sabe o
que é enfiteuse, mas não sabe o que é extorsão?” (tem um link do lado direito, em cima), sobre o absurdo número de
impostos pagos na venda de imóveis nas duas cidades (dizem que em Salvador é
ainda pior). Na verdade, fiz uma brincadeira com o Mário de Andrade, em “Você
sabe o francês ‘singe’ / Mas não sabe o que é guariba? / - Pois é macaco, seu
mano / que só sabe o que é da estranja”. Obrigado, Deonísio, e salve a Língua
Portuguesa!
Nenhum comentário:
Postar um comentário