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sábado, 18 de novembro de 2017

A MÚSICA A SERVIÇO DO PODER – PARTE I

Príncipe Carl Lichnowsky
Mozart foi compositor da Câmara Imperial de Viena, recebeu encomendas de Leopoldo II, encantou Francisco I e esnobou cargos de Guilherme II; Beethoven conviveu com a entourage do Príncipe Lichnowsky, seu protetor, e Cherubini compôs para Carlos X e o bondoso Dom Luis. E foi após a morte ou abandono de seus mecenas que Beethoven caiu em desgraça, sina de tantos outros compositores. É enorme a lista dos músicos que mamaram nas tetas dos grandes soberanos, mas também é certo que a música dos velhos tempos sobrevivia entubada no mecenato da nobreza, e com a decadência desta sofriam os músicos que ela consagrara.
Brinde na Revolução Francesa: o charme discreto da burguesia
A Revolução Francesa, que com a ascensão da burguesia abriu caminho para a transformação da música em meio de curtição e lazer, atraiu o interesse geral pela nobre arte. Cidadãos comuns passaram a fruir da música em audições pagas, frequentando locais como o Covent Garden londrino com a mesma “elegância e educação” com que bebiam cerveja e vinho nas tabernas - informalidade que nada ficava a dever aos nossos atuais pagodes de boteco. Por obra e graça dos ventos liberais soprados pela Revolução Francesa, em um curto período de meio século começaram a surgir na Europa conservatórios como os de Viena, Milão, Paris e Praga. Passou a ser elegante ouvir e fazer boa música.
Charles Guizot
O historiador francês Guizot (1787-1874) dizia que a Música é, para a alma, ver­dadeira cultura íntima, e deveria ser obrigatória para a educação do povo. Bem antes dele, William Shakespeare foi radical: achava que o homem que não possui música em seu íntimo é capaz de intriga, vandalismo e traição, merecendo desconfiança. A se compro­var a observação do dramaturgo, pode-se concluir que falta música de verdade nos gabinetes de muitos dos nossos mandantes de hoje.
Esterházy
Na ausência de outras diversões - não havia rádio, TV, cinema, Internet, que maravilha! -, a nobreza podia se dar ao luxo de ter, entre seus súditos, compositores da grandeza de um Franz Joseph Haydn (1732-1809), que foi protegido do Príncipe Esterházy desde que o nobre se apaixonara por um sinfonia do compositor. Ao convidar o músico para um encontro em seu palácio, o Príncipe se deparou com um homem franzino, quase tísico. O nobre teria mandado trazer roupa nova, sapatos de salto e peruca, para que o maestro se impusesse melhor, à altura de sua nobre arte. O compositor gostou da ideia e nunca mais deixou de se produzir e “montar” todos os dias.
Frederick I, rei da Prússia
Haydn também trabalhou para o Conde Von Morzin, que concordou em ampliar a orquestra local de doze para sessenta músicos (na época não falavam em corte de gastos públicos, “música não é prioridade” e inchamento da máquina administrativa). Haydn também foi comissionado pelo Barão Von Fürnberg, para quem compôs nada menos do que 12 quartetos de cordas. Já os 6 quartetos Opus 50, por sua vez, foram escritos para Frederick William, Rei da Prússia, ele próprio um violoncelista, para quem Haydn caprichou na dificuldade de algumas partes – puxa-saquismo ou vingança, a depender das habilidades musicais de seu protetor. Haydn escreveu 83 quar­tetos e mais de 100 sinfonias, entre 800 obras. Despertou tanta inveja que corriam rumores em Viena sobre tramas para matá-lo. Em uma de suas cartas, a amada Luigia escreveu: "Ele morrerá. Um inimigo perseguiu-o em Londres para matá-lo".
Haydn entregue à pena e pautas
Toda a volúpia composicional de Haydn deve ter­-lhe custado caro, além de muito trabalho aos seus familiares. Sabe-se que o compositor, apesar de feio e franzino, tornou-se extremamente vaidoso após aquele banho de loja na corte do Príncipe Esterházy: passou a iniciar seus trabalhos somente com a casa impecavelmente arrumada, prata polida, sempre bem vestido e com uma casaca de bordados, cabeleira empoada (Beethoven chamava-o Papá Haydn), espada na cinta e sinete na mão. Dizia não sentir a menor inspiração sem seu anel favorito, de grande valor. E não faltavam sais. (Haydn escreveu a Aloísia Polzelli, sua paixão temporã, informando que lhe deixaria uma pensão de 300 florins. Após o casamento da amada com outro pretendente, foi sucessivamente baixando o valor até que desaparecesse).
Joe Maneri (dir.) recebe homenagem de Hankus Netsky (NEC)
Tamanho preciosismo também era refletido na obra de Haydn: o compositor foi responsável por diver­sas modificações estruturais na forma e na harmonia, especialmente quanto à anexação de um terceiro movi­mento, o minuetto, às suas sinfonias. Criou as bases formais da composição sinfônica a partir daquele período, passando por Beethoven e os românticos e chegando até mesmo aos modernos. (Um de meus professores de composição, Joseph Maneri, um velhinho maluco que estudou com Alban Berg e às vezes se ajoelhava diante de aplausos calorosos, insistia jocosamente que Paul Hindemith (1895-1963) não pas­sava de um Haydn com notas engraçadas – querendo dizer com isso que, quanto à forma e estrutura rítmica, o moderno compositor alemão fincava os pés no mais tradicional classicismo.

Rachmaninoff
Talvez Hindemith pensasse como Drummond: "Cansei de ser moderno, agora quero ser eterno". Ou como Schönberg, que dizia não ser moderno - suas músicas é que costumavam ser mal tocadas. Esse troço de modernidade é mesmo relativo: há muitas décadas o conservador Francisco Braga encontrou-se, dizem as más línguas, com o compositor Claudio Santoro na portaria da Escola Nacional de Música do Rio de Janeiro e para fazer média disse que ouvira no rádio uma música moderna de que finalmente havia gostado muito: era a então já tradicional Rapsódia Sobre um Tema de Paganini, de Rachmaninoff. (Continua na próxima semana).

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