Vladimir e Estragon esperando Godot, que nunca chegará |
Antecipando-se ao inevitável
distanciamento da Música do jugo dominante das Igrejas, movimento que viria a favorecer
o surgimento de novas técnicas e formas de composição, como as proibições pelas
todo-poderosas autoridades eclesiásticas do passado tenham evitado intervalos
dissonantes, especialmente certas duas notas instáveis ao ouvido humano, sendo
o “pior” deles o então proscrito trítono, uma quarta aumentada como em dó-fá
sustenido, que angustiadamente pede uma resolução para o repouso, que por si nunca virá.
Tal qual em Esperando Godot, do Samuel Becket, peça em que os personagens
sofriam a angústia de nunca ver Godot chegar. Por causa dessa dissonância nunca
resolvida, maldisseram o trítono como sendo do diabo, reputado coisa do cão, do
demo, perturbador da fé! No Renascimento, o maldito intervalo foi denominado “diabolus
in musica”, certamente porque, com grande dissonância, aquelas duas notinhas
desfrutavam do poder de subverter a estabilidade espiritual, aquela profunda
contemplação a que induziam os homofônicos cantos de antanho (as vozes em sons
iguais na melodia).
Palestrina oferece música ao (a um dos) Papa(s) |
A Igreja do passado, verdadeiro
Estado com exércitos e armas, utilizava muito os serviços dos bons compositores
em seu favor. Giovanni Pierluigi da Palestrina (1526-1594), em 1536, ainda
moleque foi admitido no Coral Pontifício do Vaticano. Casou-se com a filha de
um rico mercador que vendia couro e peles para a corte papal: peles eram parte
essencial nas vestimentas, assim como o couro nos sapatos, cintos, etc.
Palestrina ficou em seu cargo sobrevivendo a longuíssimos onze papados, o que
lhe proporcionou dindim no cofrinho e tempo para compor nada menos do que 115
missas, mais de 1000 motetes e uma longa coleção de obras diversas.
Catequese jesuíta |
No Brasil, a partir de 1549, época
da chegada dos primeiros missionários jesuítas, o trabalho de catequese começou
com a astúcia do colonizador usando o poder da música como elemento sedutor
aliado, apesar de aquelas melodias europeias parecerem aos nativos um pouco estranhas,
coisa diferente de tudo que tinham ouvido nas tribos. Nos autos católicos, para
melhor comunicação com seus catequizados, os religiosos costumavam embutir em
ladainhas de contornos melódicos gregorianos diversos elementos indígenas, e mais
tarde mesclou-se o lamento dos escravos - daí não ser mera coincidência a
semelhança de certo tipo de melodia do nosso cancioneiro com modalismos
eclesiásticos (tipos de escalas de notas não alteráveis, diferentemente das
nossas tradicionais).
Torneio de cururu do Conservatório de Tatuí. Cenário de Jaime Pinheiro |
Nas missões, seduziam os índios agregando
princípios religiosos à cultura nativa na catequese (do latim, significando ‘a
serviço de inculcar suas pregações nos espíritos’). Daí foi surgindo, aos
poucos, um gênero chamado cururu. A palavra seria uma corruptela de cruz, era o
jeito que os índios falavam (diz o dicionário que corruptela é ‘pronúncia ou
escrita da palavra, expressão, etc., distanciada da linguagem de maior
prestígio social’). Alguns acham que o nome cururu teria vindo da dança do
mesmo nome de uma região do Mato Grosso, outros ainda atribuem a palavra à lenda
do sapo cururu. Na região onde o cururu é cantado, prevalece a ideia da
corruptela de ‘cruz’. Mas de que se trata esse gênero? É o desafio cantado,
riquíssimo, cheio de rimas e regras, acompanhado por uma ou duas violas
caipiras, maravilha que se espalhou pela região do Médio Tietê paulista, em
especial Piracicaba, Tatuí, Conchas, Tietê, Laranjal, Sorocaba, Votorantim, Pardinho
e Porto Feliz, entre outras.
Os curureiros improvisam rimando em ‘carreiras’
pré-combinadas ou sorteadas, ou seja, regras estabelecidas para as duplas casarem
rimas nas improvisações. Como exemplo, existe a carreira a do A (casá, chegá),
do Sagrado (falado, coitado), a do Divino (fino, arrimo), a temida e restrita carreira
de Santa Inês (fez, vez) e a de Santa Rita (frita, aflita), entre outras. E
assim, desde que os jesuítas catequizaram os indígenas, usando sua música, foram
incorporando alguns elementos dos próprios nativos, até o dia em que os matutos
terminaram por absorver a tradição do cururu de vez às suas raízes artísticas, passando
a alçar voos próprios. Esse gênero era tão poderoso que ao se desligar das
missões criou vida própria, passando a fazer parte da cultura de raiz do Médio
Tietê paulista e se tornando uma tradição inconfundível pela sua riqueza melódica,
poética e de criatividade nos improvisos.
La tarantella napoletana, de Bartolomeo Pinelli |
Léguas atrás, no distante século
XVII, prova dos poderes quase alquímicos da música, anunciava-se um ritual de
cura pela música para nada menos do que mortais picadas de tarântulas! Diziam que,
quando executado, certo ritmo dançante agitado e colorido por melodias rápidas
e intricadas tinha o poder de salvar os que caíam enfermos, vítimas das picadas
que inoculavam o poderoso veneno daqueles aracnídeos. Daí surgiu a denominação
tarantela - que talvez por ser dança de caráter extremamente agitado acreditavam
conseguir expulsar dos corpos das vítimas os males trazidos por aqueles
peçonhentos animais. Tal qual, a Dança Ritual do Fogo do balé “El Amor Brujo”
(1915), bela composição do espanhol Manuel De Falla, teria sido criada para
espantar os maus espíritos, fazendo-os desaparecer na noite misteriosa. E
alguns diziam até que a dança ressuscitava os mortos!
Honoré de Balzac |
Pode-se encerrar esta série com uma
constatação genérica de quem tem visão própria do poder da música: o escritor
francês Honoré de Balzac (1799-1850) afirmou que a música é uma outra vida
dentro da vida.
(Final da série)
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