Memorial. E sua "mão" |
(Cont...) Maravilha arquitetônica parece ser, também,
o Memorial da América Latina. Situado na Barra Funda, em São Paulo, o enorme
complexo de formas arredondadas foi projetado por Niemeyer e custou uma fortuna
em dólares aos cofres estaduais. Entrando nos aspectos musicais propriamente
ditos do Memorial, continua a despertar espanto o fato de que (a exemplo do
Centro Cultural e outros equívocos arquitetônicos) para sua construção
governantes ou arquitetos parece terem se esquecido de consultar um técnico com
conhecimentos de física acústica e elementos musicais ou, na falta desses, um
músico ou alguém provido de certo bom senso. Cascatas de dinheiro público
foram consumidas nessas obras, inaugurando-se espalhafatosamente salas de
espetáculo de características acústicas simplesmente medonhas.
Diz o amigo
jornalista Danilo Leite Fernandes que a Filarmônica de Israel se apresentou no
Teatro Nacional de Brasília no início dos anos 70. O grande regente Zubin Mehta
ficou impressionado com a péssima qualidade da acústica do teatro. Questionou o
diretor, que lhe disse: "Reclama com o Niemeyer, que vai estar na plateia
hoje à noite". Após o concerto, Mehta foi apresentado ao “famosão”
Niemeyer e, humildemente, perguntou-lhe: "Quais estudos acústicos foram
feitos durante a confecção do projeto do teatro?". Niemeyer: "Nenhum.
Acústica é bobagem, não acredito nisso. O que me interessa é a beleza
estética". Mehta mudou de assunto.
A linda "Capela" da Pampulha |
Nada contra Niemeyer, de quem devemos nos orgulhar por
muitas obras. Para mim, a mais linda é a Capela da Pampulha (oficialmente,
Capela Curial São Francisco de Assis, de 1959), com obras de Portinari, um
museu de arte em si, da fachada à via crucis interna. Curioso que Niemeyer,
comunista e ateu convicto, tenha duas igrejas entre suas obras de grande
criador: essa linda da Pampulha e a imponente Catedral de Brasília.
Como não deveria deixar de ser, o palco do Memorial -
que, supõe-se, foi feito entre outras atividades para abrigar orquestras, shows
e balés - não é exceção à regra. Seria excelente para gravações de programas de
auditório de TV. É que o palco fica no meio de duas enormes alas de cadeiras,
os artistas exatamente entre elas.
Na primeira vez que pisou no palco do Memorial, à frente da Orquestra
Sinfônica do Estado (OSESP), o Maestro Eleazar de Carvalho brincou não saber se
deveria reger de frente, dando as costas para a metade direita do público ou
para a esquerda; terminou por colocar-se diagonalmente a ambas as seções da plateia,
prejudicando o público. Essa, uma revolução impossível: já havia demorado
alguns séculos para que algum tipo de disposição da orquestra sobre o palco e
certos princípios acústicos fossem consagrados universalmente. (Após inúmeras experiências,
recai-se em algumas variações do modelo antigo da orquestra clássico-romântica na
construção de espaços modernos).
Boston Symphony Hall |
Assim foram gestados o Carnegie Hall de NY e o Boston
Symphony Hall (aliás, o primeiro pensado por meio de física acústica, baseado
nas teorias de um gênio chamado Wallace). No passado, já houve a mesma
preocupação com o Opéra de Paris e o
Gewandhaus, de Leipzig... Aqui mesmo no Brasil, em Manaus, no apogeu do Ciclo
da Borracha (1900-1920) e em pleno Amazonas, foi erguido um belo teatro para
abrigar as grandes companhias europeias de ópera no roteiro de suas passagens
pelas Américas. Empresários e governantes, assim como em sua maioria
engenheiros e arquitetos, no passado orgulhavam-se de sua sensibilidade de
maneira especial.
Teatro Santa Isabel, de Recife |
O Teatro Santa Isabel de Recife, que foi concebido
como uma miniatura do Opéra de Paris, teve seu telhado construído de forma a
aliviar para o público o calor medonho que faz na cidade - para tanto, foram
feitas algumas aberturas laterais na parte superior, de forma a permitir a passagem
de correntes de ar. O problema é que junto com a brisa fresca entravam por ali
toda sorte de “visitantes”, de andorinhas e pombos a morcegos. Em 1931, em sua
única vinda ao Brasil, o venerável violinista Jasha Heifetz apresentava-se no
Santa Isabel quando foi surpreendido pelo voo rasante de um daqueles
quirópteros, que quase raspou-lhe rosto. Pálido e sem inspiração, parou de tocar
e exigiu que devolvessem os ingressos ao público. A direção do teatro, em
pânico, conseguiu convencê-lo de que o prédio seria evacuado, as luzes apagadas
e os eventuais morcegos recolhidos, garantindo que depois de algum tempo não
haveria mais um daqueles animais sequer. Após uma hora Heifetz voltou, executou
com certa esperada frieza o restante do programa e, traumatizado, nunca mais
voltou ao Brasil.
Já o violinista Lambert Ribeiro, antigo catedrático da
Escola Nacional de Música e autor de diversos métodos, aproveitou a deixa do
acontecido com Heifetz, e à primeira investida do morcego do Santa Isabel -
quem sabe os bichos seriam amantes da melhor audição musical? – reagiu como Heifetz
sem sê-lo: parou de tocar e gritou para os bastidores: "ou eu ou o morcego!".
A plateia, rapidamente: "o morcego, o morcego!"
Posição tradicional de uma Sinfônica |
Voltando ao auditório do Memorial, uma vez resolvido
no tapa o problema da colocação da orquestra, restava ainda solucionar um outro
maior, o de natureza acústica: em primeiro lugar, conjuntos musicais são
organizados em função das características acústicas de seus Instrumentos. Em segundo,
existe uma disposição tradicional dos naipes sobre o palco que leva em consideração
princípios elementares, e ela vem sendo aprimorada através dos séculos, consolidando-se
no romantismo e pouco mudando de teatro para teatro.
Uma trompa e sua campana voltada para trás |
Por causa desses enganos, no Memorial o som das trompas
(que, pela sua construção, é projetado para trás, uma vez que sua campana fica
em posição invertida) parece demorar uma eternidade para chegar ao público. Instrumentos
de som grave (bumbo, tuba, contrabaixos, trombones), que são geralmente distribuídos
entre laterais e fundos para melhor se aproveitarem do espelho acústico das
paredes dos auditórios, no Memorial se perdem indefinidamente, sufocados pelos
agudos dos oboés, violinos, flautas e clarinetas - que parecem escapar, como
fogos-fátuos, pelo vácuo do enorme pé-direito da sala. (Cont.)