Músicos da Orquestra de Minnesopolis em discussão salarial |
A convivência diária entre os integrantes de uma
orquestra, apesar de frequentemente permeada de neuroses, é social e musicalmente
muito sadia. Pouco importam as intrigas de fundo de seção, discussões sobre
salários, quem senta na frente ou atrás, as escorregadas do regente, o vestido
da violoncelista e outros assuntos que sempre surgem, de uma ponta à outra do
grupo. Tudo é parte do cotidiano, e justificável porque durante horas músicos
trabalham, como outros poucos profissionais, em silêncio. Mas a própria
natureza acústica dos instrumentos, a origem, a sonoridade e a aparência física
estimulam certa natural competição, entre os mais diversos deles.
Trompa de caça (corno da caccia) |
As origens de cada um são diferentes, como vimos em artigo anterior. Discorri sobre as origens dos oboés, dos trombones e dos
trompetes, em suas tarefas sociais. Mas a percussão teve origem nos tempos mais
longínquos, e somente começou a ver o mundo das classes mais bem aquinhoadas por
intermédio dos trovadores, entre outros, acompanhando grupos populares para
deleite dos mais ricos. A trompa teve origem em um instrumento empregado na
caça, com seu tubo enrolado em uma única longa volta, sendo levada no cavalo a 'tiracolo', para que o trompista pudesse executá-la com o sopro, ao tempo em que uma das mãos
(não havia válvulas, como hoje) segurava o instrumento e a outra manobrava as rédeas do
animal (Raynor, Henry: A Social History of Music).
Ravanastron |
Entre os instrumentos de cordas que antecederam os
nobres violinos de hoje, muito antes de aportarem na Europa Ocidental, havia antecedentes mouriscos, além de ancestrais indianos e em culturas do Oriente Médio
e Extremo Oriente. Naquelas plagas, cordas e arco ajudavam, entre outras
coisas a meditar ao som das ragas,
como fazia o ravanastron, tocado com
arco, e o sitar (dedilhado), indianos, elevando
a alma e obedecendo a sistemas musicais e princípios espirituais próprios.
Um rebab mourisco |
O rebab, de
onde a nossa rabeca, não aportou no Ocidente, como pensam muitos, pelas mãos
poderosas do mercador veneziano Marco Polo (1252-1324), a quem se atribui a introdução
na Europa da pasta, ou seja, o macarrão, espaguete e suas variações. E nem
foi o instrumento entregue de mãos beijadas aos italianos, como muitas das boas
invenções da vida foram. O primeiro destino foi a Península Ibérica, de onde,
em sua longa ocupação pelos mouros (711-1492), foi enfim aproveitado pelos
italianos, que no início do século 16 criaram instrumentos como o violino e
sua família, e logo aperfeiçoando-o nos limites que o conhecemos hoje -
pouquíssimo, além do material das cordas, foi alterado e tudo indica que assim permanecerá, sem maiores novidades. Uma arte de meio
milênio que pouco ou nada mudará.
Felini em ação |
Quem observou com argúcia as diferenças e particularidades
entre os músicos foi o cineasta Federico Felini 'da Rimini', cidade de
Francesca (por isso mesmo), a jovem imortalizada pela ópera homônima de
Tchaikovsky, escrita sobre um dos cantos da Divina Comédia, de Dante. A visão do
cineasta está no filme Ensaio de Orquestra, que recomendo (ver link abaixo), e nele fica evidente
que cada músico considera seu instrumento o mais importante, de som mais lindo:
o contrabaixo teria a voz dos deuses, a flauta o som mais puro, o piano seria o mais
completo, o violoncelo, ah, o da voz humana, cada músico enaltecendo as qualidades e
virtudes de sua escolha, frequentemente ironizando a dos colegas. Mas tudo
isso, acredite, com amizade, coleguismo e, sempre, muito humor.
(Link para o filme: https://www.youtube.com/watch?v=wBX1NQYRwhU)
(Link para o filme: https://www.youtube.com/watch?v=wBX1NQYRwhU)
Uma trompa (shofar) vai ao Paraíso |
O que é que o
dedo do violista tem em comum com um raio? É que nenhum deles cai duas vezes em
um mesmo lugar. E há a charada: jogado do 20º andar de um prédio, qual chegaria
primeiro, o violista ou a viola? A resposta maldosa é ‘quem se importa?’
Democratizando, há a do trompista que, chegado à porta do Céu, aguardava seu
julgamento. Junto a ele, estavam um agiota e um gigolô. Ao agiota, foi dito que
praticou a usura, explorou, deixou famílias na pendura, sem carro e telefone.
Inferno! Ao gigolô, que havia destruído famílias, levado boas meninas ao mau
caminho, trazido doenças. Inferno! Na vez do trompista, sem pestanejar, o
encarregado da triagem disse: passa, você vai para o Céu! O gigolô e o
agiota, inconformados, foram tomar satisfação. Ouviram que, se um estragou
vidas e famílias, o outro as deixou na miséria. Mas aquele feliz trompista, que
já longe subia, fora agraciado com o Paraíso porque, muito antes de morrer,
havia cem músicos rezando por ele.
E as diferenças entre o músico chamado erudito –
expressão que não existe em outro lugar no mundo, e no Brasil não vou perder tempo em longas explicações sobre o
porquê – e o chamado popular não fogem à regra, apesar de que há clássicos tão
populares... (lembro logo três, a Carmina Burana, de Orff, o Bolero, de Ravel, e a
5ª Sinfonia de Beethoven!). Talvez o tipo de músico que vivia pelos cabarés da
Lapa, o Beco das Garrafas de Copacabana, berço da bossa-nova ao vivo, não se
preocupa em tocar de sandálias havaianas, se inglês meias brancas sem sapatos, como o
baterista Charlie Watts, dos Rolling Stones, smoking cor de rosa ou furta-cor,
camisa social ou de meia já rota, se americano. Transita pela boemia e gandaia com a mesma
tranquilidade que, entrando pela porta dos fundos, convive com as castas mais
abastadas – como os trovadores, de quem falei no início do artigo. O chamado
“erudito”, ou melhor, clássico, padece das agruras da vida, assim como seu
irmão das noites e shows. E divide com ele um bocado de preconceito e
necessidades. Mas no palco, ah, na hora da estrela, abre-se em um rosário de
felicidades!